Garantias do Consumo

Regulação do consumo global e digital: acesso à Justiça e eleição de foro

Autor

  • André de Carvalho Ramos

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (largo São Francisco) professor titular e coordenador de mestrado em Direito stricto sensu da Escola Alfa Educação e procurador regional da República.

21 de março de 2024, 13h11

No Dia Internacional do Consumidor (15 de março) é importante destacar a valorização do consumidor no contexto globalizado atual, em que os fornecedores buscam atrair consumidores em todo o mundo, promovendo relações transfronteiriças de consumo com apenas um clique.

Essa sociedade de consumo global e digital faz nascer duas questões regulatórias da ordem econômica e que podem dificultar (ou impedir) o acesso à Justiça dos consumidores: qual jurisdição deve conhecer as lides consumeristas globais e digitais (lides transnacionais digitais), nas quais o fornecedor está em um Estado e o consumidor em outro? E, em seguida, qual é a lei que deve ser aplicada: a lei do Estado do domicílio ou residência do consumidor ou a lei do Estado de sede do fornecedor?

No que tange à jurisdição (pela limitação de espaço, não abordarei a difícil questão regulatória da escolha da lei), o CPC de 1973 e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) não previram nenhum tratamento especial às relações de consumo transnacionais, sendo aplicável a regra geral do actor sequitur forum rei, que exigia que o consumidor domiciliado ou residente no Brasil processasse o fornecedor estrangeiro no outro Estado, o que – pelos custos – fatalmente gerava denegação de justiça.

Por isso, o artigo 22, II, do CPC de 2015 trouxe novidade na temática da jurisdição internacional, prevendo que compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil.

Exige-se, assim, que a demanda seja baseada nas (1) relações de consumo e (2) tenha o consumidor domicílio ou residência no Brasil.

A hipótese de o consumidor ser processado (réu) no Brasil já estava abarcada na regra do CPC de 1973 e na Lindb, ao dispor que a jurisdição internacional brasileira seja fixada em virtude do “domicílio do réu”. Com este dispositivo, basta a residência do réu consumidor e não sendo necessário o seu domicílio no país.

Definição da jurisdição internacional

A grande novidade está na aceitação da jurisdição brasileira no caso de ser o autor da ação de consumo aquele domiciliado ou residente no Brasil. Com o CPC de 2015, atendeu-se, assim, a antigo anseio do movimento consumerista brasileiro para estender a jurisdição brasileira sobre lides consumeristas transnacionais (como as oriundas do comércio eletrônico, turismo etc.), assegurando o acesso à justiça ao consumidor. A qualificação do que vem a ser “relações de consumo” segue a lei do foro (lei brasileira), ou seja, incide o Código de Defesa do Consumidor, que enumera os diferentes tipos de consumidor.

Atende-se a uma demanda do Direito Internacional Privado (DIPr) contemporâneo de atualização das regras de delimitação da jurisdição em face da vulnerabilidade do consumidor no contexto de fornecedores globais. Portanto, o consumidor que adquirir produto no exterior e for domiciliado ou residente no Brasil pode se socorrer da proteção do Judiciário nacional.

Não se trata aqui de discutir a lei a ser aplicável à lide, se o Código de Defesa do Consumidor brasileiro (Lei nº 8.078/90) é norma de aplicação imediata [1], mas sim de definição da jurisdição internacional.

Essa definição de jurisdição é importante, pois elimina as barreiras de acesso à justiça (custos proibitivos ao consumidor domiciliado ou residente no Brasil para processar o fornecedor no Estado estrangeiro) e ainda permite que o consumidor aproveite as regras processuais protetivas vigentes no Brasil, em especial a inversão do ônus da prova.

Com isso, o novo marco regulatório do CPC está em linha com a tendência de proteção da parte vulnerável (consumidor) no desenvolvimento contemporâneo do DIPr, tendo estendido nossa jurisdição para abarcar também as ações propostas pelo consumidor aqui domiciliado ou residente, além da tradicional fixação do foro do domicílio do réu.

Essa inovação é ainda mais consistente por não ter se restringido às relações de consumo nas quais o fornecedor dirigiu seus esforços de vendas ao mercado brasileiro.

Assim, a partir do novo CPC, os custos de defesa no Brasil por parte de um fornecedor domiciliado em outro Estado passam a ser um risco do seu negócio. O acesso ao mercado consumidor brasileiro (com os lucros a ele associados) não pode ser desprovido de custos aos fornecedores globais.

Cláusula de eleição de foro

Por outro lado, de acordo com o artigo 25 do CPC de 2015, não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação. De modo expresso, o § 1º do artigo 25 anuncia que essa derrogação de jurisdição não se aplica às hipóteses de jurisdição internacional exclusiva.

Além disso, o § 2º do mesmo artigo faz incidir as limitações às cláusulas de eleição de foro domésticas, previstas no artigo 63, §§ 1º a 4º, do CPC, à eleição de foro estrangeiro. Com isso, a eleição de foro estrangeiro produz efeito quando constar de instrumento escrito e aludir expressamente a determinado negócio jurídico, obrigando os herdeiros e sucessores das partes.

Também é possível que seja discutida a abusividade da cláusula de eleição de foro, adaptando-se o previsto no artigo 63, §§ 3º e 4º. Assim, para que a cláusula de eleição de foro estrangeiro seja válida e modifique a jurisdição internacional cível brasileira, deve (1) constar de instrumento escrito e (2) não ser considerada abusiva.

Há, contudo, regra de revogação tácita da cláusula de eleição de foro: caso o réu, citado, não alegar a existência da cláusula de eleição de foro estrangeiro na contestação, o processo desenvolve-se regularmente ao abrigo das hipóteses de jurisdição internacional concorrente.

Com a cláusula de eleição de foro, há o forum shopping predeterminado e, consequentemente, reduzem-se as incertezas, gerando previsibilidade sobre os efeitos gerados pela contratação internacional. A expressão “contrato internacional” do marco regulatório do CPC retrata o contrato que possui vínculos — de ordem objetiva ou subjetiva — com outro ordenamento jurídico, o que exclui os contratos relacionados exclusivamente ao Brasil [2].

Essa interpretação da expressão “contratos internacionais” é útil porque (1) compatível com a ausência de uma definição legal clara sobre a expressão e (2) adequada em face da finalidade do CPC, que foi editado justamente para permitir — sem as divergências jurisprudenciais do passado — a utilização da autonomia da vontade em cláusulas de eleição de foro estrangeiro.

Resta agora compatibilizar a liberdade de escolha dos contratantes em derrogar a jurisdição concorrente com a proteção dos vulneráveis, que também é um dos valores do DIPr. Isso porque há contratos internacionais que são, em geral, contratos de adesão, como os contratos internacionais de consumo, não existindo nenhuma margem de manobra dada ao consumidor, que deve aceitar o foro imposto nos contratos padronizados (e, naqueles contratos eletrônicos, basta um “clique”).

Não há, então, qualquer liberdade ou autonomia da vontade (valorizada pelo novo CPC) no que tange à derrogação da jurisdição em contratos de adesão.

Conclusão

Assim, entendo que o artigo 25 do CPC (derrogação da jurisdição internacional relativa ou concorrente) só se aplica aos contratos internacionais de consumo que não sejam de adesão.

Outra interpretação levaria ao seguinte paradoxo: o novo CPC, na busca da proteção de direitos humanos e da parte vulnerável, estendeu a jurisdição internacional brasileira para abarcar as ações propostas pelos consumidores domiciliados ou residentes no Brasil, mas, ao mesmo tempo, teria tornado tal extensão inócua, pois a esmagadora maioria de contratos internacionais de consumo são de adesão e suas cláusulas impõem a jurisdição do Estado do fornecedor ou outra que lhe seja ainda mais favorável.

Nesse sentido, o § 2º do artigo 25, ao proibir a abusividade nas cláusulas de foro es­trangeiro, impede, consequentemente, que os contratos internacionais de consumo imponham (como usualmente ocorre nos contratos de adesão) cláusulas de eleição de foro estrangeiro, o que desnaturaria o novo critério de fixação da jurisdição concorrente brasileira nos casos envolvendo relações de consumo (artigo 22, II, do CPC de 2015) [3].

O consumidor brasileiro, envolvido nas lides consumeristas transnacionais no âmbito da sociedade global e digital, agradece.

 

 


[1]       Defendo ser o CDC norma de aplicação imediata. CARVALHO RAMOS, André de. A construção do Direito Internacional Privado: heterogeneidade e coerência. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 271 e seguintes.

[2] COSTA, José Augusto Fontoura; SANTOS, Ramon Alberto. Contratos internacionais e a eleição de foro estrangeiro no novo CPC. Revista de Processo, v. 253, 2016, p. 109-128.

[3] Conforme defendi em CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direito Internacional Privado. 3ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2023, p. 260.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), professor e coordenador de mestrado em Direito da Unialfa, procurador regional da República, membro e antigo diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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