Em concurso público, princípio vira regra estática! Por quê? Porque sim!
14 de agosto de 2014, 8h08
Tem uma propaganda na TV que mostra bem o grau zero de sentido e a ausência de fundamento desse (e nesse) arremedo de pós-modernidade que vivemos. É a da cerveja Schin. “— Por que você paga um ano de academia e não frequenta”? Resposta: “— Porque sim”! Hum, hum. “— Por que você abraça um gordinho suado no futebol sem conhecê-lo”? “— Porque sim”! Hum, hum e hum. “— E por que você toma cerveja Schin”? “— Porque sim”! Bingo! Não precisa motivo. Você possui grau zero. Você nomina as coisas! Por mais néscias que sejam. Assim é no Direito. Abaixo, verão porque um princípio vira regra estática… Resposta simples: “— Porque sim”!
A prova
Li amiúde a prova objetiva (primeira fase) da Defensoria do Paraná. Quem não soubesse que se tratava de um concurso para Defensoria poderia achar que tanto a prova poderia ser para escrivães de polícia, agentes da Polícia Federal, promotores, juízes ou procuradores do estado. Ou para professor adjunto de qualquer faculdade espalhada pelos quatro cantos do país. Ou seja, a preocupação dos arguidores lato sensu era fazer pegadinhas, propor armadilhas e, fundamentalmente, testar o poder de decoreba dos candidatos. Algumas questões nem com decoreba, como, por exemplo, qual é a opinião de Gargarella (jurista argentino) sobre a teoria da justiça de Rawls? Afinal, é para ler Rawls ou Gargarella? E Gargarella é um autor que conta Rawls melhor que ele mesmo, Rawls? É para ler os originais ou, por derivação, o livro resumo de Simone Goyard-Fabre? Luhmann via Simone GF? Como assim? E quem disse que Simone GF interpretou bem Luhmann (aliás, ninguém no Brasil interpretou bem Luhmann…[1] e por isso tem que buscar a Simone GF – síndrome de Caramuru)? Ora, o que ela faz é um resumo de uma pequena parte de Luhmann… Aliás, há uma questão (nº 99) — baseada justamente na professora francesa, que fala do debate “naturalismo-positivismo…” (não seria jusnaturalismo? Naturalismo é uma questão filosófica bem diferente de jusnaturalismo… quem errou aí? Simone ou a banca?).
Insisto em uma tecla: concursos assim não passam de quiz show. O aluno deve responder sobre “curiosidades”, como, por exemplo, saber algo sobre Hegel (como se saber uma frase sobre Hegel tivesse alguma importância dentro da complexidade da obra do filósofo alemão — isso não serve-para-nada-mesmo). Então para um agente da justiça é essencial saber o que Fernando Henrique Cardoso pensa sobre desenvolvimentismo (ou algo assim), tudo misturado com alternativas que visam a confundir o utente? Ou falar sobre Foucault e seu velho Vigiar e Punir, como se isso fosse a pólvora? Aliás, por que na questão 97 só uma é verdadeira? Logo vão pedir para os concurseiros a leitura de biografias de filósofos. E por que não também obrigá-los a ler biografias de artistas e cantores — tem uma da qual gosto muito: aquela do Tim Maia, Vale Tudo, escrito por Nelson Motta; quase morri de tanto rir das peripécias do sujeito. Ou a autobiografia do lutador Anderson Silva — que tal perguntar quantos anos ele ficou invicto no UFC, quais foram os recordes que quebrou, por que ele deu um chute no traseiro de um motorista, etecetera.
Há também muitas questões que tratam de cinco assuntos diferentes, porque as cinco alternativas são de coisas que não se ligam. E por que? Porque a banca precisa fazer isso, para poder organizar melhor as pegadinhas e testar os decorebas. Mais ainda: por tudo isso e por outras razões, parcela considerável das questões de direito constitucional ou penal (para citar apenas esses) não servem para nada, mas nada mesmo, para a atividade de um defensor público. Aliás, duvido que sirvam para aquilatar o conhecimento de algum concurseiro. Desafio que me provem o contrário.
Fico aqui a perguntar aos meus longos espinhos de Ouriço: de que modo decorar — sem compreender — a frase de Hegel (ou de Luhmann ou no futuro, de Anderson “Spider” Silva) ajudará um técnico do Judiciário (ou a um defensor, etc) a exercer melhor suas funções? Lembro de uma pesquisa encomendada pelo ministro da Justiça à Fundação Getúlio Vargas que comprovou que há uma incoerência entre as competências esperadas de um servidor público e o “conhecimento” exigido nos concursos.
De todo modo, esse assunto “quiz shows-concursos públicos” já atinge patamares de dramaticidade. Cada dia piora. Os arguidores se esmeram. Como fazer para que o sujeito que estudou profundamente não passe e o cliente dos cursinhos seja o protagonista dessa nova classe de profissionais que entram na máquina pública? Bingo: o concurso tem a receita para isso!
Poderia, aqui, discutir dezenas de questões. Mas trarei uma que me pareceu emblemática e que retrata simbolicamente a crise paradigmática que atravessa o direito de Pindorama.
Ei-la:
42 – Acerca da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, considere as seguintes afirmativas:
1. Os princípios gerais de direito, estejam ou não positivados no sistema normativo, constituem-se em regras estáticas carecedoras de concreção e que têm como função principal auxiliar o juiz no preenchimento de lacunas.
2. De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o efeito repristinatório da lei revogadora de outra lei revogadora é automático e imediato sobre a velha norma abolida, prescindindo de declaração expressa de lei nova que a restabeleça.
3. A revogação de uma norma por outra posterior tem por espécies a ab-rogação e a derrogação, e pode ser expressa ou tácita, sendo que, neste último caso, é obrigatório conter, na lei nova, a expressão “revogam-se as disposições em contrário”.
4. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados os atos jurídicos consumados, mesmo que inválidos.
5. A cessação da eficácia de uma lei não corresponde à data em que ocorre a promulgação ou publicação da lei que a revoga, mas sim à data em que a lei revocatória se tornar obrigatória.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas 1, 3 e 4 são verdadeiras.
b) Somente as afirmativas 2 e 5 são verdadeiras.
►c) Somente as afirmativas 1 e 5 são verdadeiras.
d) Somente as afirmativas 3, 4 e 5 são verdadeiras.
e) Somente as afirmativas 1, 2, 3 e 4 são verdadeiras.
Claro. A questão tinha que invocar a lei-chocolate LINDB. Uma lei patética, como já referi várias vezes (há vários textos meus trucidando essa malsinada lei). Anacrônica e inconstitucional (uma vez que fala de normas de interpretação das normas do direito, quer ser a norma das normas!). No caso da questão 42, o caminho mesmo é estocar comida. Onde estariam ensinando essas coisas?
Segundo o gabarito, das cinco alternativas, somente a 1 e a 5 são corretas. Então, vamos a elas. Repito a de número 1: [Levando em conta a LINDB] “Os princípios gerais de direito, estejam ou não positivados no sistema normativo, constituem-se em regras estáticas carecedoras de concreção e que têm como função principal auxiliar o juiz no preenchimento de lacunas”.
Quiséssemos brincar, poderíamos, já de cara, fazer o teste do neopositivismo lógico, colocando um “não” na afirmativa. Isso não alteraria nada, porque a afirmativa, além de falsa, cientificamente nada quer dizer.
Mas, avancemos. A assertiva sobre princípios é particularmente instigante. Já há alguns anos, as pesquisas que realizo apontam para necessidade de, nesse quadrante da história, superarmos os discutíveis privativismos[2] que acompanham a trajetória do pensamento jurídico brasileiro durante todo o século XX. No caso, a finada LICC (Lei de Introdução ao Código Civil) alçou à condição de texto normativo a previsão dos princípios gerais do direito como ferramentas de colmatação de lacunas (veja-se a assertiva 1 da questão em pauta). Uma discussão metodológica, indeed. Com Karl Larenz, diríamos: uma discussão de “ciência dogmática do direito”. Já na década de 1950 do século passado, o Constitucionalismo Contemporâneo começou a articular um significado para o conceito de princípio que ultrapassa essa discussão sobre metodologia jurídica para solução de casos concretos. Princípios, agora, relacionam-se com os fundamentos da comunidade política. Dizem respeito aos aspectos centrais daquilo que, como comunidade, somos e aspiramos ser. Igualdade, democracia, liberdade, devido processo legal… todos apontam para uma discussão política profunda, num sentido de uma co-originariedade entre Direito e Moral. Juízes legislando? LINDB? Colmatação de lacunas? Mas isso é tão velho quanto nocivo à democracia! Como digo há tempos e sofrendo com minha LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo), acreditar nessas coisas apenas demonstra o atraso de nossa reflexão jurídica.
Retomando, fica muito claro que, em um contexto como esse, não podemos mais continuar a falar em princípios constitucionais como princípios gerais do direito. São coisas bem distintas. Mas bem distintas mesmo! Do ponto de vista de uma adequada teoria do direito, é possível afirmar que os princípios constitucionais operaram uma ultrapassagem em relação aos princípios gerais do direito. Não sobra para estes últimos nenhum significado prático (a velha função metodológica dos princípios gerais é superada pelo “fechamento interpretativo” provocado pelos princípios constitucionais). Se algum interesse há sobre esse vetusto conceito jurídico, ele está reservado ao campo da história do direito e não da hermenêutica jurídica (ou, como gostam alguns que insistem em cindir interpretação de aplicação, da “aplicação do direito”). É por isso que, em Verdade e Consenso, formulei a tese — inspirado nas lições de Bobbio sobre o Estado —, da descontinuidade entre os PGD e os Princípios Constitucionais.
Mas a LINDB, que alterou muito pouco a LICC, uma vez que mudou-se o nomem juris da Lei e revogou-se uns poucos artigos, perdeu a chance de deixar para trás esse anacronismo chamado princípios gerais do direito. Manteve-os, tal qual estavam esculpidos no diploma anterior. E as provas de concurso continuam a reproduzi-lo. Insistem em enfrentar os tormentosos mares do direito de caravelas. E estimulam os pobres concursandos a seguir os mesmos passos, impedidos que estão de refletir sobre questões importantíssimas como essa. A LINDB representa simbolicamente a idade das trevas da produção jurídica de Pindorama. E o silêncio eloquente da comunidade jurídica sobre isso e a sua reprodução em concursos apenas mostra que, fôssemos médicos, ainda não teríamos descoberto a penicilina.
Tendo em conta a questão em específico, a perplexidade é ainda maior: por que os tais princípios gerais seriam “regras estáticas”? Sim, que diabos é uma regra estática? Há, então, uma regra dinâmica (e se isso fosse correto, por que o princípio geral do direito seria estático e não dinâmico)? Digam-me por favor! E pior: repararam que, de acordo com o enunciado, o princípio é uma… regra?!? Sim, o concurso transforma o princípio em uma regra …estática.
Nesse caso, temos que reconhecer que a LINDB é “menos néscia”, porque não faz esse tipo de referência esdrúxula aos princípios gerais. A pergunta do concurso é que “inova”. Bingo! Ao mesmo tempo: por que um princípio geral do direito estaria, por assim dizer, expressamente positivado no ordenamento jurídico? Ora, ora (e ora): se a função é auxiliar na colmatação de lacunas (sic), sua previsão expressa já não seria um caso de não-lacuna? Elementar, pois não? E regras carecedoras de concreção? O que é isto?
Se a prova da defensoria fosse uma decisão judicial, caberiam embargos de declaração — se entendem a minha ironia. Há de tudo um pouco aqui: omissão, contradição e obscuridade.
Só isso já anula a questão. Se formos a fundo, também a alternativa 5 não se sustenta, porque confunde os conceitos de validade com eficácia. Mas não falarei sobre isso. Não sou o ombudsman do concurso. Aliás, li alguns comentários sobre a LINDB que circulam por ai… Confundem vigência com validade. Socorro, Ferrajoli.
O aspecto simbólico
O concurso em liça é apenas mais um componente desse caleidoscópio trágico do imaginário-senso-comum-dogmático de terrae brasilis. Insiste-se nesse tipo de prova, nesse tipo de raciocínio, nesse tipo de concurso quiz. Depois nos queixamos, quando o Parlamento quer transformar os que não passam nos exames de Ordem em advogados pigmeus ou para-legais.
Como dizia Nelson Rodrigues, se a coisa está tão ruim é porque nos esforçamos para deixá-la assim. Essa tragédia toda é fruto de muita luta, se me entendem o sarcasmo.
Esse é caldo de cultura que conforma o imaginário de terrae brasilis. Não surpreende, portanto, que o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA) decida que a amante concubina-adulterina receba a metade da herança (em detrimento da lei, da Constituição, dos direitos da esposa e dos filhos do casamento). Não surpreende que um juiz de Minas Gerais tire da cartola uma interpretação estendendo a licença maternidade em favor de uma mulher que tem trigêmeos em mais três meses (ler aqui), sem qualquer amparo legal para isso, a não ser o que ele-considera-como-justo. Tivesse ela quadrigêmos seria mais quatro meses? De onde ele tirou isso?
Não surpreende também que um juiz (processo 160/3.14.0000050-1-RS) diga — em admoestação — para as partes: “Estão de brincadeira comigo? O Daer diz que a responsabilidade é do Detran e este diz que é daquele. Não se entendem”. Pergunto: de onde ele acha que ele tirou esse poder de puxar a orelha das partes (por sinal, estatais)? Da Constituição, que diz que todo poder emana do povo? Ele é juiz ou censor? Queria ver o advogado perguntar para o juiz: “— Vossa Excelência está estroinando comigo”? O que ele faria?
Concursos públicos… Ah, os concursos. São eles o caminho de entrada no sistema. Se não consertamos isso e não fizermos um concerto acerca de como podemos resolver isso, afundaremos cada vez mais.
Pindorama é assim. O arguidor do concurso pergunta o que quer (ou sobre os livros de SUA predileção). A resposta é aquela que ele quer que seja… Do mesmo modo, cada um decide como quer. Resultado: perdemos a capacidade de separar o joio do trigo. Na verdade, separamos o joio do trigo…ficando com o joio.
Post scriptum: uma notícia indignante, embora sem relação (direta) com o tema
Para mostrar que o réu não se ajuda (falo da Viúva — porque tudo cai na conta dela, mormente os concursos públicos, porque todo mundo quer ser “do Estado”), saiu no Diário Oficial que o Ministério da Cultura liberou mais de R$ 4 milhões via Lei Rouanet para Luan Santana, grande filósofo contemporâneo, espraiar sua obra por Pindorama afora. Fofo isso, não? Coitadinho, sem dinheiro, tinha que se aninhar na bolsa da Viúva para divulgar sua “bela música”. Fim dos tempos. Enquanto a malta morre sem receber atendimento médico por falta de macas, o ministério, de forma ímproba, distribui a rodo o dinheiro dos impostos. Onde vive essa gente? Que país eles habitam? Isso tem nome: estroinar com a patuleia. Por isso, só estocando comida. E construir um bunker (mas sem dinheiro da Lei Rouanet).
E por que construir um bunker? “— Porque sim”!
[1] O estagiário levanta a placa com os dizeres “ironia”.
[2] Os princípios gerais de direito são construções novecentistas, destinados a resolver o problema representado pela clausura do ordenamento jurídico, “fechado” pelo art. 4º. do Código Civil francês. Ou seja, foram introduzidos no Direito como um “critério positivista de fechamento do sistema”, visando a preservar, assim, a “pureza e a integridade” do mundo de regras. Já não se pode falar hoje em princípios gerais do direito na era dos princípios constitucionais (se alguém falar, azar – está defasado; e se até o STF usa, vale igualmente a observação). Quem fez a pergunta (ou afirmação) não sabe que houve uma descontinuidade entre princípios gerais do direito e os princípios constitucionais. Caso contrário, nem mesmo os (pam)prinpicialistas brasileiros conseguiriam escrever as coisas que escrevem. O que diriam os defensores, por exemplo, do princípio da afetividade diante da notícia de que princípio é regra estática carente de concreção? Essa é boa, não?
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