Opinião

Caso Angulo Losada x Bolívia: paradoxo entre direito penal e direitos humanos?

Autor

  • Yara Singulano

    é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

18 de março de 2024, 11h21

No caso “Angulo Losada vs Bolívia”, a sentença [1] proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e, notadamente, o voto concorrente apresentado pelo juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch [2], apresentaram importantes considerações a respeito da aplicação do direito penal como uma garantia que dever ser conferida pelos Estados às vítimas de graves violações de direitos humanos.

Não se trata de um tema novo na jurisprudência da CIDH (ou mesmo de outros órgãos internacionais de justiça), que reiteradamente vem consignando que os Estados devem promover adequadamente a investigação, o processo penal e a punição de agentes responsáveis por graves violações de direitos humanos.

Nesse sentido, a Corte decidiu, por exemplo, no julgamento do “Caso Gomes Lund e outros (guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”[3], que a Lei de Anistia brasileira (Lei 6.683/1979) é inconvencional, por “deixar impunes graves violações ao direito internacional cometidas pelo regime militar” (p. 03).

Não obstante, parece persistir no senso comum (com o reforço do aparato midiático, inclusive) uma ideia de que os direitos humanos se aplicam somente aos “bandidos”, ou seja, que somente visariam à proteção dos direitos e garantias judiciais dos acusados por crimes.

As vítimas, por sua vez, estariam desassistidas, afastadas da preocupação desse “pessoal dos direitos humanos”. O julgamento do Caso Angulo Losada explicita como tais ideias são equivocadas.

A senhorita Brisa Angulo Losada foi vítima, quando era adolescente, de violência sexual praticada por um primo, já adulto, tendo os episódios de abuso ocorrido entre 2001 e 2002. A violência foi descoberta por acaso por seus pais, já que o agressor ameaçava a vítima para garantir seu silêncio.

Após a família ter efetuado a denúncia dos crimes perante as autoridades bolivianas, iniciou-se um longo caminho marcado pela revitimização da jovem Brisa e a impunidade do agressor, em um processo que não se pautou pela proteção da infância e sem perspectiva de gênero.

Spacca

Por exemplo: a vítima foi obrigada a se submeter a dois exames médicos, “o primeiro, abusivo, e o segundo, desnecessário” [4].

O exame inicial foi realizado sem o acompanhamento de seus pais, por um médico homem, e assistido por cinco estudantes de medicina também do sexo masculino.

Segundo consta na sentença da Corte, os acadêmicos presentes “riram da vítima, a chamaram de ridícula e a obrigaram a abrir as pernas para o exame” [5].

Em 2008, seis anos após o fim dos abusos, Brisa foi submetida um novo exame ginecológico, que, àquela altura, era inócuo em termos probatórios, e apenas significou uma nova violência contra ela.

O agressor de Brisa, natural da Colômbia, retornou ao seu país após anulação da primeira sentença condenatória, e, em 2022, após ter sido preso pelas autoridades nacionais, teve a sua soltura determinada em virtude de “prescrição da ação penal à luz da normatividade colombiana” [6]. Os crimes cometidos, portanto, até hoje restam impunes.

Estado boliviano culpado

A sentença da Corte IDH, decidida por unanimidade, considerou o Estado boliviano responsável por violações aos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial, incluindo a garantia de prazo razoável do processo, à vida privada e familiar, e aos direitos da infância, em prejuízo de Brisa De Angulo Losada, bem como pelo descumprimento da obrigação de garantir, sem discriminação por motivos de gênero ou pela condição de adolescente da vítima, o direito de acesso à Justiça.

O tribunal internacional apontou violações à Convenção Americana de Direitos Humanos e à Convenção de Belém do Pará [7].

Um dos tópicos abordados na sentença foi a obrigação dos Estados de investigar os fatos, identificar, julgar e, sendo o caso, sancionar os responsáveis pelas violações [8]. Assenta a decisão que:

184. A Corte reitera que a ineficácia judicial frente a casos individuais de violência contra as mulheres propicia um ambiente de impunidade que facilita e promove a repetição da violência em geral e envia uma mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e aceita. Isto favorece a perpetuação da violência de gênero e sua aceitação social, assim como o sentimento e a sensação de insegurança das mulheres e sua persistente desconfiança no sistema de administração de justiça. [9]

Nesse sentido, a Corte determinou ao Estado boliviano uma série de medidas a serem adotadas, contemplando desde mudanças na legislação interna até a capacitação dos agentes públicos que atendem as vítimas, visando a combater a impunidade desse tipo de crime e a fim de garantir a adoção de perspectiva de gênero e da proteção da infância nos procedimentos adotados [10].

O juiz Rodrigo Mudrovitsch apresentou voto concorrente com intuito de reforçar a importância das medidas de reparação adotadas pela Corte na sentença. O magistrado elabora uma minuciosa argumentação a respeito do que considera ser um “delicado equilíbrio” [11] entre a aplicação do direito penal e a proteção dos direitos humanos.

O voto inicia discorrendo sobre as origens da ONU, período marcado pela adoção de resoluções que visavam justamente evitar a impunidade pelas barbáries cometidas durante a 2ª Guerra Mundial [12]. Prossegue, aduzindo que a punição por graves violações de direitos humanos, nas palavras do professor e ex-juiz da CIDH, Cançado Trindade, corresponde a “um clamor verdadeiramente universal” [13].

Não obstante, Mudrovitsch destaca:

A luta contra a impunidade dos violadores de direitos humanos não é um fim em si mesmo, e sim serve ao propósito de prevenir futuras violações. [14]

Nesse sentido, o juiz destaca que a Corte Internacional de Justiça, ao aplicar a Convenção sobre Genocídio, tem apontado o efeito dissuasório e preventivo dos dispositivos sancionatórios [15].

Continua, aduzindo que, segundo entendimento da CIDH, impunidade é a falta de investigação, persecução, captura, acusação e condenação de possíveis responsáveis de violações de direitos humanos [16]. O voto concorrente esclarece, com base nas lições de Luís Greco, que a impunidade aqui deve ser entendida não como a ausência de sanção, mas, sim, como a ausência de punição onde era devida a sua incidência [17].

Aplicação do direito penal

Por isso,  Mudrovitsch afirma entender que são necessários dois requisitos para que o direito penal seja mobilizado:

  • Em casos de estrita necessidade;
  • Dentro dos limites do devido processo legal, com todas as suas garantias. [18]

Quanto ao primeiro requisito, o brasileiro lembra que a “excepcionalidade absoluta do uso de medidas penais” foi por ele debatida também em seu voto no “Caso Moya Chacón e outros vs. Costa Rica”, em que aduziu que o direito penal deve ser aplicado de forma subsidiária, como o último de todos os meios de solução para um problema — a “ultima ratio da política social” [19].

Sobre o segundo requisito, o juiz brasileiro aponta que a preocupação da Corte reside em proteger os indivíduos dos “perigos inerentes ao movimento do maquinário repressivo penal”[20], reconhecendo os acusados em processos penais como “sujeitos de direitos dotados de liberdade e de direitos humanos”, evitando, assim, os juízos persecutórios politicamente tendenciosos que eram comuns no passado [21].

Outrossim, o voto concorrente conclui que incumbe à Corte Interamericana delimitar, diante dos casos concretos, de “maneira clara e justificada”, as situações em que o Estado deve utilizar a via penal tanto para reparar, quanto para prevenir, violações de direitos humanos; sem, contudo, deixar-se de buscar alternativas ao direito penal que sejam capazes de alcançar de forma eficaz os objetivos de proteção [22].

Por isso, afirma Mudrovitsch, o paradoxo entre direito penal e direitos humanos é apenas aparente:

48. A discussão nesta seção demonstra que o imperativo de manter o Direito Penal como ultima ratio não significa que a sua aplicabilidade seja inexistente ou que não possa, em caso algum, ser mobilizado como instrumento de proteção dos direitos humanos. Significa, antes, que o aparente paradoxo entre os campos exige uma consideração cuidadosa entre a luta contra a impunidade e todas as garantias processuais e os direitos humanos dos acusados. No final das contas, “[o] conflito (…) nunca foi um dos Direitos Humanos contra o Direito Penal per se, mas sim com o abuso deste último”. Significa também que a punição de pessoas responsáveis ​​por violações dos direitos humanos não tem um valor meramente simbólico ou metafísico, mas cumpre uma função de reparação e prevenção de futuras violações (conforme explicado acima, parágrafos 19-28). [23]

Especificamente no caso de vítimas de violência de gênero, donde se inclui a violência sexual contra as mulheres, combater a impunidade exige a correção do que Mudrovitsch define como “déficits legislativos e institucionais” que contribuem para a violação de seus direitos e põem em risco as vítimas presentes e futuras [24].

Afasta-se, assim, a errônea concepção de que a aplicação do direito penal é incompatível com a proteção dos direitos humanos, ou, mais equivocadamente ainda, a ideia de que as vítimas não são resguardadas pelos direitos humanos.

Vale frisar que, no “Caso Angulo Losada vs. Bolívia”, a preocupação com a dignidade da vítima esteve presente de forma acentuada desde o início, com o juiz Mudrovitsch acolhendo a senhora Brisa durante seu depoimento perante a Corte e permitindo que se estendesse seu relato pelo tempo necessário [25]. Uma conduta ética que, infelizmente, às vezes não se repete na prática cotidiana dos tribunais brasileiros.

 


[1] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Angulo Losada Vs. Bolivia. Sentencia de 18 de Noviembre de 2022. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf . Acesso em: 08 mar. 2024.

[2] VOTO CONCURRENTE DEL JUEZ RODRIGO MUDROVITSCH. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Angulo Losada Vs. Bolivia. Disponível em:

https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_475_esp.docx . Acesso em: 08 mar. 2024.

[3] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Gomes Lundy Otros (“Guerrilha Do Araguaia “) Vs. Brasil. Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_219_esp.pdf . Acesso em: 08 mar. 2024.

[4] Vide Sentencia, Caso Angulo Losada vs Bolívia, p. 28. Tradução livre.

[5] Idem, p. 28, nota de rodapé. Tradução livre.

[6] Idem, p. 26. Tradução livre.

[7] Idem, p. 73.

[8] Idem, p. 59 e seguintes.

[9] Idem, p. 60.

[10] Idem, p. 73-74.

[11] Vide VOTO CONCURRENTE, voto Angulo Losada vs Bolívia, p. 14. Tradução livre.

[12] Idem, p. 12-13.

[13] IDEM, P. 13. TRADUÇÃO LIVRE.

[14] Idem, p. 13. Tradução livre.

[15] Idem, p. 13.

[16] Idem, p. 16.

[17] Idem, p. 14.

[18] Idem, p. 14.

[19] Idem, p. 15.

[20] Idem, p. 16. Tradução livre.

[21] Idem, p. 17. Tradução livre.

[22] Idem, p. 17. Tradução livre.

[23] Idem, p. 17. Tradução livre.

[24] Idem., p. 40.

[25] CANAL MIGALHAS (Youtube). Juiz brasileiro na CIDH acolhe vítima de violência sexual durante sessão. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S-UePAqG6nQ . Acesso em: 08 mar. 2024.

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