Opinião

A possibilidade de destituição de juízes do cargo, segundo a jurisprudência da CIDH

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  • Yara Singulano

    é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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28 de fevereiro de 2024, 13h15

A recente apresentação da Proposta de Emenda à Constituição nº 03/2024 pelo senador Flávio Dino (PSB) reacendeu os debates sobre um tema há muito controvertido no Brasil: a aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais, como sanção a magistrados, membros do Ministério Público e das Forças Armadas.

Quanto aos membros do Poder Judiciário, a aplicação da penalidade de aposentadoria compulsória via procedimento administrativo disciplinar é atualmente regida pela Resolução nº 135/2011 do Conselho Nacional de Justiça. Aduz a resolução:

“Art. 7º O magistrado será aposentado compulsoriamente, por interesse público, quando:

I – mostrar-se manifestamente negligente no cumprimento de seus deveres;

II – proceder de forma incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções;

III – demonstrar escassa ou insuficiente capacidade de trabalho, ou apresentar comportamento funcional incompatível com o bom desempenho das atividades do Poder Judiciário”. [1]

O texto da PEC, por sua vez, propõe que seja “[…] vedada a concessão de aposentadoria compulsória aos magistrados como sanção pelo cometimento de infração disciplinar, devendo ser aplicada, em face de faltas graves, a penalidade de perda do cargo ou demissão, ou equivalente, conforme lei disciplinadora da carreira” [2].

Motivação do processo e a questão da vitaliciedade
A PEC alcançou o número de assinaturas necessárias e entrou em tramitação no Senado [3]. O presente artigo, entretanto, não pretende discutir os méritos da proposta; a intenção é fazer uma breve análise de uma questão subjacente à aplicação da sanção de perda do cargo a magistrados, à luz das discussões realizadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): qual o grau de motivação que esse tipo de processo sancionador requer?

De início, é preciso lembrar que, no Brasil, após dois anos de exercício do cargo, os membros da magistratura adquirem vitaliciedade — uma garantia funcional constitucionalmente assegurada (artigo 95, inciso I, CF/88), segundo a qual a perda do cargo somente poderá ocorrer através de sentença judicial transitada em julgado [4].

Segundo a clássica divisão proposta por José Afonso da Silva, as garantias funcionais (ou de órgãos) podem ser classificadas como garantias de independência ou como garantias de imparcialidade — sendo a vitaliciedade uma garantia do primeiro tipo [5]. Afirma o autor que são garantias “que a Constituição estabelece em favor dos juízes, para que possam manter sua independência e exercer a função jurisdicional com dignidade, desassombro e imparcialidade […]” [6].

Assim, é preciso assentar como premissa que, em um Estado Democrático de Direito, a vitaliciedade não é um benefício conferido a juízes a fim de promover o seu bem-estar pessoal, e, sim, um mecanismo que visa assegurar a sua atuação independente, livre de pressões (hierárquicas dentro do próprio Judiciário, políticas, econômicas etc.), visando não apenas a qualidade da prestação jurisdicional, mas, em última análise, para manter o necessário e delicado equilíbrio entre os três Poderes.

Nesse sentido, a vitaliciedade (ou a estabilidade, conforme o sistema adotado pelo país) visa proteger magistrados contra destituições arbitrárias, assegurando, em última instância, a independência do Poder Judiciário.

Jurisprudência da CIDH
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem se deparado com alguns casos nos quais magistrados buscam reverter a sua destituição sob a alegação de violação a direitos fundamentais durante o processo sancionatório, como o Caso López Lone y otros Vs. Honduras[7], julgado em 2015; e o Caso Cordero Bernal Vs. Perú [8], em 2021. Enquanto no primeiro o Estado foi considerado responsável pelas violações alegadas, no segundo entendeu-se que não o foi (com um voto dissidente do juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot).

Mais recentemente, em novembro de 2023, a Corte IDH julgou o Caso Cajahuanca Vásquez Vs. Perú [9], no qual o Estado também não foi considerado responsável. A questão, entretanto, está longe de ser simples, conforme se expõe a seguir.

O relatório da Comissão Interamericana havia recomendado ao Peru a reintegração do senhor Humberto Cajahuanca Vásquez, a reparação dos danos e a adequação da legislação interna [10]. A Comissão apresentou o caso à Corte IDH em maio de 2021. Na sentença, o tribunal declarou entendimento contrário ao da Comissão, por cinco votos contra dois:

“3. O Estado não é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais, do princípio da legalidade e retroatividade e dos direitos políticos, reconhecidos nos artigos 8, 9 e 23 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às obrigações de respeitar e garantir tais direitos e adotar disposições de direito interno, consagradas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado, nos termos dos parágrafos 86 a 118 desta Sentença.

  1. O Estado não é responsável pela violação do direito à proteção judicial reconhecido no artigo 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às obrigações de respeitar e garantir esse direito e de adotar disposições de direito interno, consagradas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado, nos termos dos parágrafos 122 a 130 desta Sentença.

  2. Dado que não foi estabelecida a responsabilidade internacional do Estado, não cabe decidir sobre reparações, custas e gastos” [11].

Os dois votos dissidentes foram apresentados em conjunto pelo juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot e pelo juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch[12]. Os magistrados, na esteira do voto dissidente apresentado por Mac-Gregor Poisot no Caso Cordero Bernal Vs. Perú, lamentaram que a Corte tenha perdido a oportunidade de “reafirmar a jurisprudência interamericana sobre independência judicial e explorar detalhadamente o grau de motivação exigido em um processo sancionatório administrativo aplicado a juízes, no qual estão imersos tipos disciplinares abertos ou indeterminados.”[13]

Nesse caso em particular, portanto, além da divergência de entendimento entre a Comissão e a Corte, houve também uma divergência interna durante o julgamento – o que, por si, já deveria levar o tribunal a incrementar o arcabouço argumentativo da posição vencedora. Não foi o que ocorreu.

Motivação reforçada
A garantia da vitaliciedade/estabilidade a juízes, conforme vimos, mais do um benefício pessoal, é uma garantia que promove a independência judicial, de modo que todos os esforços devem ser direcionados para impedir a destituição arbitrária de um magistrado – inclusive quando o acossamento está sutilmente disfarçado, com aparência de legalidade, o que pode ocorrer, por exemplo, por meio de falsas acusações de prática de corrupção.

O senhor Cajahuanca Vásquez, enquanto presidente do Superior Tribunal de Justiça de Huánuco, foi destituído em razão de acusação de ter cometido uma série de irregularidades na nomeação de um novo juiz suplente (que era o senhor Cordero Bernal, a propósito). Ocorre que, não obstante o procedimento administrativo que levou à sua destituição, no processo penal movido pelos mesmos motivos, ele foi inocentado.

A respeito, no voto dissidente Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch relembraram a jurisprudência da própria corte:

“11. Assim, o que o caso López Lone e outros afirma é que i) o mesmo grau de precisão das normas penais não é exigido nos processos de sanção disciplinar, ii) podem ser permitidos tipos disciplinares de natureza aberta ou indeterminada, iii) esta exige o estabelecimento de critérios objetivos que orientem a interpretação ou o conteúdo que deve ser dado a tais conceitos para avaliar a legalidade material, iv) esses critérios podem ser estabelecidos por meios regulatórios ou por meio de interpretação jurisprudencial” [14].

O voto dissidente chama atenção, ainda, para circunstâncias do caso concreto que não foram analisadas pela corte:

“8. Também não aparecem como fatos relevantes na sentença, o processo de “erro judicial” e o procedimento de “reabilitação na carreira judiciária”, bem como o fato de o então presidente Alberto Fujimori ter declarado publicamente que o então Presidente do Superior Tribunal de Justiça de Huánuco (senhor Cajahuanca Vásquez), juntamente com outras pessoas, eram “terroristas arrependidos”, o que teve impacto em sua fama pública, embora posteriormente “retratassem ditos insultos, apontando que eram outros magistrados”.  Consideramos que todos estes fatos estão intimamente relacionados com os fatos apresentados à Corte Interamericana no Relatório de Mérito. Apesar disso, a decisão considerou que “serão excluídos”, considerando que não eram capazes de explicar, esclarecer ou rejeitar o marco fático proposto pela Comissão Interamericana” [15].

A destituição do senhor Cajahuanca Vásquez foi fundamentada na alegação de que, embora não tenha cometido crimes, seus atos comprometeram a “dignidade do cargo” e o “desmereceram na opinião pública” – conceitos vagos e sujeitos à interpretação aberta. Como o voto dissidente salienta, a ausência de critérios objetivos e prévios, normativos ou jurisprudenciais/interpretativos, no processo de destituição de magistrados “implica riscos para a independência do poder judiciário, sobretudo quando se imputam possíveis atos de corrupção.” Teria havido, assim, violação do princípio da legalidade [16].

Os juízes Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch argumentaram que a destituição do cargo, por ser a sanção mais grave aplicável aos magistrados, tem exigência ainda maior de que a decisão seja motivada adequadamente, em comparação com outros processos disciplinares.

Notadamente quando envolve a aplicação de conceitos indeterminados, a fundamentação da decisão “não se satisfaz apenas com a mera descrição dos fatos e indicação da norma aplicada, mas é necessário que existam parâmetros objetivos prévios” [17]. Nestes casos, segundo os dois juízes da Corte IDH, é necessária uma motivação reforçada que dissipe todas as dúvidas de arbitrariedade. Entendemos que a expressão “proceder de forma incompatível com a dignidade, a honra e o decoro”, da Resolução nº 135/2011 do CNJ, por exemplo, se inclui nessa hipótese.

O voto dissidente considerou, ainda, que houve no caso “violação ao direito ao trabalho, protegido pelo artigo 26 da Convenção Americana”, “em sua dimensão da estabilidade laboral” [18]; e violação aos direitos fundamentais do senhor Cajahuanca Vásquez, no que tange ao devido processo legal, por ausência de “um recurso judicial efetivo” previsto no ordenamento peruano para questionar decisões do Consejo Nacional de la Magistratura [19].

Por fim, vale apontar que não se trata de uma discussão que visa dificultar ou impedir a responsabilização de magistrados que efetivamente cometeram atos ilícitos. Trata-se, sim, de analisar a destituição de magistrados de seus cargos como a “ultima ratio em matéria disciplinar judicial[20], em razão da necessidade de se protegerem a independência do Poder Judiciário e o próprio Estado Democrático de Direito. Nas palavras do voto de Mac-Gregor Poisot e Mudrovitsch:

“23. Evidentemente que não se trata de isentar os membros do poder judiciário de todo o tipo de responsabilidade por possíveis atos de corrupção, mas, sim, que justamente as causas – nas quais estão envolvidas este tipo de conduta – tenham a maior certeza no momento da sua aplicação, uma vez que as decisões de destituição dos juízes devem estar isentas de qualquer arbitrariedade, objetivo último que se pretende salvaguardar através de garantias que se apliquem à independência judicial e, em qualquer caso, de que juízes e juízas não sejam sujeitos a pressões internas e externas” [21].

 


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 135, de 13 de julho de 2011. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/95. Acesso em: 21 fev. 2024.

[2] PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº    , DE 2024. P. 03. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9548590&disposition=inline&_gl=1*1hv1pdi*_ga*NjEwNDcyMjIyLjE3MDg0NTcxNjg.*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwODQ1NzE2OC4xLjEuMTcwODQ1Nzc4Ni4wLjAuMA.

[3] A PEC 03/2024 entrou em tramitação em 20/02/2024. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/162099#:~:text=Ementa%3A,do%20cometimento%20de%20infra%C3%A7%C3%A3o%20disciplinar.

[4] Gozam de vitaliciedade também os membros do Ministério Público (art. 128, § 5º, I, “a”, CF/88) e dos Tribunais de Conta (Súmula 42, STF).

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. P. 588.

[6] Idem, p. 590.

[7] CASO LÓPEZ LONE Y OTROS VS. HONDURAS: Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_302_esp.pdf. Acesso em: 21 fev. 2024.

[8] CASO CORDERO BERNAL VS. PERÚ: Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_421_esp.pdf. Acesso em: 21 fev. 2024.

[9] CASO CAJAHUANCA VÁSQUEZ VS. PERÚ: Resumen Oficial Emitido Por La Corte Interamericana. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_509_esp.pdf. Acesso em: 21 fev. 2024.

[10] A CIDH apresenta caso sobre o Peru perante a Corte Interamericana. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/127.asp. Acesso em: 21 fev. 2024. Tradução livre.

[11] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cajahuanca Vásquez Vs. Perú. Sentencia de 27 de noviembre de 2023, p. 40. Tradução livre. Disponível em:  https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_509_esp.pdf. Acesso em: 21 fev. 2024.

[12] Voto Disidente De Los Jueces Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot  Y Rodrigo Mudrovitsch: Caso Cajahuanca Vásquez Vs. Perú. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_ferrer_mudrovitsch_509_esp.docx. Acesso em: 21 fev. 2024.

[13] Idem, p. 01. Tradução livre.

[14] Idem, p. 04. Tradução livre.

[15] Idem, p. 02. A respeito, na sentença da Corte (p. 12) constou: “na opinião da Corte, estes fatos não têm a finalidade de explicar, esclarecer ou afastar o quadro factual submetido ao conhecimento da Corte nem são supervenientes. Portanto, o Estado tem razão e eles serão excluídos desta Sentença.” Tradução livre.

[16] Idem, p. 06. Tradução livre.

[17] Idem, p. 11. Tradução livre.

[18] Idem, p. 07. Tradução livre.

[19] Idem, p. 10. Tradução livre.

[20] Idem, p. 11. Tradução livre.

[21] Idem, p. 07. Tradução livre.

Autores

  • é advogada do escritório Naves Fleury, mestra em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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