Opinião

Direitos humanos e o exercício de prerrogativas profissionais na execução penal

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20 de janeiro de 2024, 7h13

Este artigo apresenta o resultado das investigações que advieram do seguinte questionamento preliminar: constitui afronta ao exercício de prerrogativas profissionais e à garantia de direitos humanos a imposição de limitações à comunicação entre pessoa presa e advogado quando este tenta transmitir mensagens de familiares àquela?

A partir disso, então, é que se observou a necessidade de examinar o contexto mais integralmente. A demanda por diretrizes quanto ao exercício da advocacia no âmbito prisional reitera e enfatiza a importância dos advogados não só presencialmente/próximos à estrutura física onde uma pessoa condenada pode vir a cumprir a sua pena, mas na execução penal lato sensu.

Assim, alicerçado à doutrina de Rodrigo Duque Estrada Roig e às decisões relevantes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o artigo se propõe a examinar como os advogados podem atuar neste cenário complexo, preservando a integridade e eficácia de suas práticas profissionais, sempre atentos à premissa de que “o respeito à dignidade humana deve ser o alicerce inabalável da justiça penal” (Roig, 2021, p. 45).

Análises e ponderações
Em primeiro lugar, é fundamental sopesar que a discussão acerca dos limites da atuação do advogado em presídio exige a compreensão da execução penal sob a perspectiva dos direitos humanos. Remetendo ao referencial teórico apontado — Rodrigo Duque Estrada Roig (2021) —, o princípio da humanidade deve ser a base da execução penal moderna a fim de se respeitar a dignidade das pessoas detidas e de se limitar a intervenção estatal. E este princípio tem efeito direto no que se tem como prerrogativas da advocacia; ora, é dever e fundamento do exercício profissional dos advogados assegurar a justiça e a legalidade no tratamento dos detidos.

O princípio da humanidade informa a necessidade de elaboração e prática de políticas criminais que buscam minimizar os danos e promover um tratamento mais humanizado dos detidos. Assim, é o que deve guiar todos os direitos atinentes à execução penal, inclusive, no que se refere às prerrogativas advocatícias.

O princípio da humanidade não é único; a execução penal não pode ser dissociada do princípio de fraternidade, o qual destaca a solidariedade e o respeito mútuo como componentes essenciais de um sistema penal que respeita a dignidade humana (Roig, 2021). Esses princípios são fundamentais para criar um ambiente que apoie a reintegração dos detentos.

São reflexos de direitos pautados por estes princípios na atuação do advogado:

  • Comunicação Advogado-Cliente e Privacidade

O direito à comunicação entre advogado e cliente em ambientes prisionais é um pilar fundamental da justiça penal. Vale dizer, o caso Suárez Rosero vs. Ecuador (Corte IDH, 1997) exemplifica magistralmente como a violação desse direito compromete o devido processo legal [1]. A prática, no entanto, frequentemente se choca com desafios significativos, como vigilância, monitoramento e restrições físicas que ameaçam a confidencialidade essencial dessa relação. Ainda, se a constante evolução tecnológica apresenta oportunidades de facilitação de contato é verdade, também, que levanta questões de segurança e privacidade.

Sobre a limitação do direito de comunicação das pessoas presas, Roig (2021) enfatiza a importância de uma interpretação da Lei de Execução Penal alinhada com os princípios da Constituição de 1988 e das normativas internacionais sobre direitos humanos, em particular no que diz respeito à inviolabilidade da correspondência dos presos.

O autor argumenta que limitações a esse direito não podem ser estabelecidas por normas infraconstitucionais ou de forma genérica, mas específicas, bem fundamentadas e em conformidade com os princípios da legalidade, jurisdicionalização, segurança jurídica, fundamentação das decisões e devido processo legal. Roig salienta, ademais, que embora seja permitido restringir ou suspender esse direito, não é possível fazê-lo sem a devida justificação sob pena de implicar em violação da privacidade.

Roig enfatiza: a quebra do sigilo da correspondência é inadmissível, mesmo por ordem judicial, pois a Constituição apenas permite a interceptação de comunicações telefônicas, não se estendendo a outras formas de comunicação escrita. Qualquer restrição à correspondência deve ser realizada com transparência e sujeita a revisão judicial. Para o autor, a autoridade administrativa por si só não deve impor limitações; ao contrário, tais decisões devem ser tomadas pelo juízo da execução, com base em circunstâncias concretas e específicas, e sempre sujeitas a recurso — esta abordagem visa a garantir que as restrições não sejam arbitrárias, mas baseadas em necessidades reais e justificadas, assegurando, assim, a proteção dos direitos fundamentais dos presos.

Especialmente no contexto das Leis nº 13.964/2019 e nº 11.671/2008, destaca que tal fiscalização, aplicável a presos em regime disciplinar diferenciado ou em estabelecimentos penais federais de segurança máxima, representa uma restrição aos direitos fundamentais, exigindo, portanto, uma interpretação restritiva. O autor argumenta que, exceções à parte, a lei não prevê nem justifica a fiscalização do conteúdo das correspondências. Ressaltando, aliás, a importância da estrita legalidade, observando que a legislação permite apenas a suspensão ou restrição do contato com o exterior por meio de correspondências, sem mencionar explicitamente a fiscalização do conteúdo dessas correspondências.

  • Ressocialização e Execução Penal

A Corte IDH, no Caso López y otros Vs. Argentina, destacou que “o contato com o mundo exterior é um componente crucial para a ressocialização efetiva dos reclusos” (Corte IDH, 2019, par. 246)[2]. Esta abordagem é reforçada pela Corte Interamericana na Opinión Consultiva OC-29/22, que defende que o Estado deve adotar medidas concretas para garantir não apenas o respeito aos direitos dos detentos, mas também sua efetiva reintegração na sociedade (Corte IDH, 2022, par. 52) [3].

O isolamento e a incomunicabilidade têm efeitos psicológicos profundos, aumentando a vulnerabilidade dos detentos, além do risco de agressão e arbitrariedade. Novamente, o caso Suárez Rosero destacou-se os graves efeitos psicológicos e morais do isolamento (Corte IDH, 1997, par. 90) – aspecto que reforça a necessidade de garantir uma comunicação adequada e regular com o mundo externo para preservar a saúde mental dos detidos.

A Corte IDH reconhece, portanto, o papel do Estado como garantidor de condições dignas e respeitosas aos direitos humanos dos presos, inclusive ressaltando a necessidade de manter o contato com a família e o mundo exterior como componentes fundamentais na reabilitação social.

Neste contexto, Rodrigo Duque Estrada Roig (2021, pg. 23) oferece uma perspectiva crítica sobre as políticas penitenciárias atuais. Roig argumenta que os objetivos da Lei de Execução Penal, centrados na reabilitação e reintegração social, frequentemente não se alinham com os princípios de uma sociedade democrática e republicana. Ele destaca que as estratégias atuais muitas vezes resultam na dessocialização e estigmatização dos condenados, em vez de facilitar sua reintegração produtiva na sociedade.

Roig aborda a dualidade de objetivos estabelecidos pela lei: a execução efetiva de sentenças e a promoção da reintegração social dos condenados. Argumenta que, embora a lei busque se alinhar com ideais de repressão e prevenção especial positiva, esses objetivos são, na realidade, inconciliáveis e incompatíveis com uma abordagem democrática e republicana. Roig critica a repressão retributiva por promover a criminalização seletiva dos mais marginalizados na sociedade e por contrariar o princípio fundamental de promover o bem de todos, um alicerce da República.

Além disso, Roig questiona a eficácia da prevenção especial positiva, que pressupõe um papel passivo do preso e um papel ativo das instituições, refletindo um resquício da antiga criminologia positivista. Ele argumenta que essa abordagem é constitucionalmente inadmissível, pois define o condenado de maneira estigmatizante como anormal e inferior, necessitando de (re)adaptação à sociedade. Roig também aponta que a execução penal não deve ter a finalidade de regulação moral dos sujeitos, uma vez que isso violaria o princípio da secularização.

Em seu discurso, Roig critica a noção de integração social harmônica promovida pela prisão, destacando que essa ideia mascara o exercício do poder punitivo do Estado de Polícia, caracterizado por paternalismo, arbitrariedade, seletivização, verticalismo, repressão e estigmatização. Ele enfatiza que a sociedade é intrinsecamente plural e conflituosa, tornando a ideia de uma integração social harmônica uma falsa premissa.

Essa análise crítica de Roig desafia as percepções tradicionais sobre a finalidade da execução penal, sugerindo a necessidade de uma reformulação na abordagem do sistema penal, focando mais na redução de danos e na oferta de oportunidades de reintegração, ao invés de se concentrar em conceitos, na visão dele, ultrapassados, de retribuição e ressocialização.

Enquanto Roig aponta as falhas e desafios do sistema atual, a Corte IDH oferece um quadro normativo para orientar os Estados na promoção de práticas penitenciárias alinhadas com os direitos humanos. Este diálogo entre as visões críticas e normativas destaca a importância de alinhar as políticas penitenciárias com os padrões internacionais de direitos humanos, adotando uma abordagem mais humanizada na execução penal.

As políticas públicas na execução penal enfrentam o desafio de desenvolver programas que assegurem a reintegração adequada dos condenados. Conforme a Corte Interamericana na Opinión Consultiva OC-29/22, o Estado tem o dever de adotar medidas que garantam o exercício dos direitos dos detentos (Corte IDH, 2022, par. 52). Este enfoque requer uma interpretação e aplicação extensiva dos direitos humanos, como estabelecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O futuro da advocacia em presídios será moldado por uma série de fatores, incluindo avanços tecnológicos, mudanças legislativas e um crescente foco nos direitos humanos. A digitalização dos processos legais oferece novas ferramentas para a comunicação e a gestão de casos, mas também implica desafios em termos de segurança de dados e privacidade.

Considerações finais
A advocacia no contexto prisional exige não apenas conhecimento jurídico, mas uma compreensão profunda da condição humana. Ao enfrentar os desafios e limitações impostos pelo sistema prisional, os advogados desempenham um papel crucial na manutenção da justiça, dignidade e direitos humanos.

A importância dos princípios humanitários na execução penal é manifesta, sendo que as decisões de cortes internacionais e a literatura jurídica enfatizam a necessidade de respeitar e garantir direitos à privacidade nas comunicações entre advogado e cliente, bem como à comunicação dos detentos com o mundo externo e suas famílias – direitos fundamentais à dignidade do indivíduo privado de liberdade e sua ressocialização.

Portanto, é crucial que os sistemas penais e as políticas públicas se alinhem com estes princípios, assegurando a observância e a proteção dos direitos humanos no contexto penal.


Bibliografia

Corte Interamericana de Direitos Humanos. (1997). Caso Suárez Rosero Vs. Ecuador. Fondo. Sentencia de 12 de noviembre de 1997. Serie C No. 3544.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. (2019). Caso López y otros Vs. Argentina. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de 2019. Serie C No. 396.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. (2004). Caso “Instituto de Reeducación del Menor” Vs. Paraguay. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de septiembre de 2004. Serie C No. 1124.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. (2022). Enfoques diferenciados respecto de determinados grupos de personas privadas de la libertad (Interpretación y alcance de los artículos 1.1, 4.1, 5, 11.2, 12, 13, 17.1, 19, 24 y 26 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos y de otros instrumentos que conciernen a la protección de los derechos humanos). Opinión Consultiva OC-29/22 de 30 de mayo de 2022. Serie A No. 29.

Roig, Rodrigo Duque Estrada. (2021). Execução Penal: Teoria e Prática. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil.

Supremo Tribunal Federal. (1994). HC 70814/SP, 1ª T. Rel. Min. Celso de Mello, j. 1º-3-1994, DJe 14-3-1994.

Supremo Tribunal Federal. (2011). HC 107701/RS, 2ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13-9-2011, DJe 21-9-2011.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas.

Nações Unidas. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Nelson Mandela).


[1] Neste, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou, em 12 de novembro de 1997, que o Equador violou os direitos de Rafael Iván Suárez Rosero. O julgamento foi significativo por reafirmar a proibição da detenção arbitrária e da tortura, consolidando a jurisprudência internacional sobre a proteção dos direitos humanos nas Américas. Em consonância com o artigo, destaca-se o seguinte excerto da sentença: “Debido a su incomunicación durante los primeros 36 días de su detención, el señor Suárez Rosero no tuvo la posibilidad de preparar debidamente su defensa, ya que no pudo contar con el patrocinio letrado de un defensor público y, una vez que pudo obtener un abogado de su elección, no tuvo posibilidad de comunicarse en forma libre y privada con él. Por ende, la Corte considera que el Ecuador violó el artículo 8.2.c, 8.2.d y 8.2.e de la Convención Americana”. A sentença do caso pode ser integralmente acessada pelo seguinte link: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/vid/i-court-h-r-883975293.

[2]246. La Corte concluye que al adoptar la decisión administrativa o judicial que establece ellugar de cumplimiento de pena o el traslado de la persona privada de libertad, es necessário tener en consideración, entre otros factores, que: i) la pena debe tener como objetivo principal la readaptación o reintegración del interno; ii) el contacto con la familia y el mundo exterior es fundamental en la rehabilitación social de personas privadas de libertad. Lo anterior incluye el derecho a recibir visitas de familiares y representantes legales; iii) la restricción a las visitas puede tener efectos en la integridad personal de la persona privada de libertad y de sus familias; iv) la separación de personas privadas de la libertad de sus familias de forma injustificada, implica una afectación al artículo 17.1 de la Convención y eventualmente también al artículo 11.2; v) en caso de que la transferencia no haya sido solicitada por la persona privada de libertad, se debe, en la medida de lo posible, consultarla sobre cada traslado de una prisión a otra y establecer la posibilidad de control judicial previo al traslado en caso de oposición.” . A sentença do caso pode ser integralmente acessada pelo seguinte link: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/vid/corte-idh-caso-lopez-883974534.

[3]En suma, la Corte estima que el Estado está obligado a adoptar ciertas medidas positivas, concretas y orientadas, para garantizar no sólo el goce y ejercicio de aquellos derechos cuya restricción no es consecuencia ineludible de la situación de privación de la libertad, sino también para asegurar el cumplimiento de la finalidad de la ejecución de la pena privativa de la libertad, en los términos expuestos anteriormente. En su conjunto, tales medidas deben estar encuadradas en políticas públicas que desarrollen programas y mecanismos específicos que procuren una reintegración adecuada en sociedad de las personas condenadas, así como mitigar las barreras y obstáculos que enfrentan las personas que pasaron por el sistema penitenciario, debido a los efectos nocivos que producen las condiciones actuales de privación de libertad y la estigmatización y deterioro asociado a la prisionización que puede provocar ostracismo tanto a nivel familiar como comunitário.” A Opinión Consultiva OC-29/22 pode ser integralmente acessada pelo seguinte link: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/vid/corte-idh-enfoques-diferenciados-916293281.

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