Opinião

Reconhecimento da força vinculante dos contratos eletrônicos

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15 de março de 2024, 20h57

Os documentos são coisas fundamentalmente capazes de representar um fato. A relação contratual é uma pactuação que vai muito além da mera formalização escrita, tal qual postula Orlando Gomes, que entende que o contrato é um negócio jurídico bilateral ou plurilateral por meio do qual as partes se sujeitam à observância de conduta idônea em prol de satisfazer os interesses acordados pelas partes.

Apesar de o Código Civil resguardar em seu texto a estrutura e elaboração dos contratos, tal dispositivo jurídico não traz uma definição específica.

O artigo 423 do Código Civil e o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor defendem a interpretação mais favorável ao aderente, no que diz respeito às relações de consumo e contratos de adesão.

O Enunciado 172 do Conselho de Justiça Federal defende que não é apenas nas relações jurídicas de consumo em que há cláusulas abusivas, havendo a incidência delas também em contratos civis comuns, como, por exemplo, a hipótese contida no artigo 424 do Código Civil, o qual trata da nulidade das cláusulas que estipulam a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio nos contratos de adesão.

O artigo 425 do Código Civil assegura a licitude das partes em estipular contratos atípicos, desde que observadas as normas gerais fixadas no mesmo. O Enunciado 173 do Conselho de Justiça Federal postula que “a formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente”.

Contratos eletrônicos

Os contratos eletrônicos se caracterizam principalmente pelo seu aperfeiçoamento ou pela sua formação mediante o uso da informática. Trata-se de um negócio jurídico concretizado por meio da transmissão de dados, entre duas ou mais pessoas, com o objetivo de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas.

Todavia, há controvérsias quanto à inadequação de tal denominação, pois o contrato pode ser de compra e venda, de prestação de serviço, de cessão de uso etc. Estes são caracterizados pelas informações sobre o seu conteúdo e a sua classificação, o que não se esvai pelo fato de terem sido realizados por meio eletrônico.

Logo, os chamados “contratos eletrônicos” são na verdade contratos formados por meios eletrônicos de comunicação a distância, especialmente a internet, devendo talvez o mais adequado se referir à contratação eletrônica ou via internet, ao invés de se elencar um novo gênero contratual (Schreiber, 2014, p. 91).

A Medida Provisória nº 2.220-2/2001 define em seu artigo 10º que os documentos eletrônicos tratados por ela são considerados documentos públicos ou particulares para todos os fins legais. Além disso, no § 1º do mesmo dispositivo, confirma que “as declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários”, em conformidade com o artigo 131 do Código Civil.

Entretanto, seu § 2º esclarece que não há restrição à “utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”.

O princípio da equiparação dos documentos eletrônicos aos documentos em suporte tradicional se aplica devido ao reconhecimento da força vinculante dos documentos eletrônicos nos diversos ordenamentos jurídicos, mediante a identificação de autoria (assinatura digital) e a integridade do conteúdo íntegro (certificado digital).

Assinaturas eletrônicas

A Lei nº 14.063/2020 dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos, com o objetivo de proteger as informações pessoais e sensíveis dos cidadãos, com base nos incisos X e XII do caput do artigo 5º da Constituição e na Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), bem como de atribuir eficiência e segurança aos serviços públicos prestados sobretudo em ambiente eletrônico.

O Recurso Especial nº 1.495.920 do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, trouxe o seguinte entendimento:

“A assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados (…). Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, é possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos.”

Já no tema Tema Repetitivo nº 1.061, do mesmo tribunal, alegou-se que “na hipótese em que o consumidor/autor impugnar a autenticidade da assinatura constante em contrato bancário juntado ao processo pela instituição financeira, caberá a esta o ônus de provar a autenticidade (CPC, artigos 6º, 369 e 429, II)”.

De acordo com Resolução CG ICP-BRASIL nº 182/2021), a assinatura digital é reconhecida como um tipo de assinatura eletrônica, pois ela se utiliza de um par de chaves criptográficas associado a um certificado digital. A chave privada é usada durante o processo de geração de assinatura, enquanto a chave pública, contida no certificado digital, é usada durante a verificação da assinatura.

Na definição de títulos executivos extrajudiciais trazida pelo Código de Processo Civil em seu artigo 784, § 4º, apontam-se os constituídos ou atestados por meio eletrônico, sendo admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista legalmente, além da não obrigatoriedade da assinatura de testemunhas, caso sua integridade seja conferida por provedor de assinatura.

O certificado digital deve ser tratado como um produto — e não como um serviço —, caracterizado como um software personalíssimo, além de intangível devido ao seu caráter eletrônico.

Smart contracts

Os smart contracts são contratos autoexecutáveis com termos de aceitação entre consumidor e fornecedor diretamente escritos em linhas de código, cujo controle se dá por dispositivos do CDC como o inciso V do artigo 6º, o artigo 47 e o inciso I do artigo 51:

“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;”

“Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.”

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos.”

Um smart contract pode ser configurado para liberar pagamentos de forma automática mediante o atendimento de condições pré-estabelecidas, tal qual a conclusão de um serviço ou entrega de um produto.

Algumas das características dos smart contracts, segundo Ana Frazão, são: a natureza eletrônica; a implementação por meio de softwares; pretensões de certeza e previsibilidade; a pretensão de autonomia quanto ao seu cumprimento (autoexecutabilidade); e a autonomia quanto ao seu conteúdo, o que lhes permitiria inclusive desconhecer ou mesmo violar diretamente as regras jurídicas.

Eles se diferenciam dos contratos eletrônicos pois a sua forma (código de programação) permite a autoexecutoriedade e a imutabilidade.

Todavia, algumas questões quanto ao uso de smart contracts devem ser trazidas à baila, como: o uso de tais contratos quando a vagueza e a abertura das cláusulas ou mesmo a incompletude do contrato representarem uma questão de necessidade ou de eficiência; os problemas das contingências não previstas pelas partes; o saneamento de eventuais vícios, erros ou lacunas; a tradução para o código de questões que envolvam julgamentos subjetivos e interpretações; a possibilidade de se resolver tudo isso na fase ex ante; e o tratamento quanto às inovações, incluindo-se as atualizações legislativas.

São diversos os benefícios no que diz respeito à aplicação de blockchains nos smart contracts. A automação, por exemplo, elimina a necessidade de intermediários na execução do contrato, reduzindo, dessa forma, tempo e insumos financeiros. Além disso, a segurança é intensificada devido à natureza descentralizada e criptografada, pois a não possibilidade de alteração reduz o risco de fraudes etc. Outro destaque seria a ampliação da transparência e da confiança, pois todos os contratantes têm acesso às regras e condições codificadas.

Proteção dos dados pessoais e incidência da LGPD nas relações contratuais

De acordo com o artigo 17 da LGPD, é assegurada a toda pessoa natural a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade.

Conforme o artigo 18 da LGPD, o titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos próprios dados tratados por este, a qualquer momento e mediante requisição:

a confirmação da existência de tratamento; o acesso aos dados; a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; a anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com a lei; a portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial; a eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular — exceto nas hipóteses previstas no artigo 16; a informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; a informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; a revogação do consentimento, nos termos do § 5º do artigo 8º; o direito de peticionar em relação aos seus dados contra o controlador perante a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD); opor-se a tratamento realizado com fundamento em uma das hipóteses de dispensa de consentimento, em caso de descumprimento ao disposto na LGPD.

O direito à proteção de dados pessoais se fundamenta no artigo 2º da LGPD, levando-se em consideração o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor, e os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Os contratos — em todas suas formas — são primordiais para que se garanta minimamente a efetiva proteção de dados pessoais para todos os agentes envolvidos.

Vale ressaltar alguns pontos que merecem atenção sob a ótica do contratante, tal qual o atendimento aos princípios, em especial aos da finalidade, da necessidade e do livre acesso. Além disso, deve-se atentar também às camadas de impacto não superficiais com relação aos dados tratados na preparação e execução do contrato: reconhecimento facial; assinatura válida; dado pessoal sensível e delicado; golpes; vazamento de dados; e cálculo dos riscos, sem que para isso haja um relacionamento tóxico com a proteção de dados pessoais.

No que diz respeito à ótica do contratado, pode-se ressaltar as políticas internas para além da teoria; implementações copiadas do cenário internacional sem aplicação no Brasil; atenção à base legal a ser aplicada, com destaque para o inciso V do artigo 7º da LGPD:

“quando necessário para a execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do titular dos dados”; checagem na possibilidade de atendimento aos direitos dos titulares; serviços oferecidos para estrangeiros ou em ambiente internacional; forma de armazenamento das informações (SI) e coletas do consentimento; compliance dos contratantes e contratos cancelados sem razão da falta de adequação à LGPD; responsabilidade solidária entre controlador e operador (artigo 42 da LGPD).

Atualmente, todos os contratos eletrônicos potencialmente terão alguma relação com as disposições da LGPD. Portanto, para cada tipo de contratação os elementos relacionados à referida lei serão preenchidos de forma diferenciada, contudo, devendo-se sempre respeitar a boa-fé no uso de tais informações pessoais, ainda mais quando se tratarem de dados sensíveis, de forma responsável e transparente.

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Referências bibliográficas
FRAZÃO, Ana. O que são contratos inteligentes ou smart contracts? Acesso em: 04 dez. 2023.

GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022.

MENKE, Fabiano. “A forma dos contratos eletrônicos”. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 26, jan.-mar. 2021. Disponível em:  http://ojs.direitocivilcontemporaneo.com/index.php/rdcc/article/view/879/796. Acesso em: 04 dez. 2023.

SCHREIBER, Anderson. “Contratos eletrônicos e consumo”. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, jul.-set. 2014. Disponível em:  https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/132. Acesso em: 04 dez. 2023.

REY, Jorge Feliu. “Smart contract: conceito, ecossistema e principais questões de direito privado”. Revista eletrônica Direito e Sociedade, vol. 7, n. 3, 2019. Disponível em:  https://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes/article/view/6120. Acesso em: 04 dez. 2023.

ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVA, Milena Donato (orgs). Direito na era digital: aspectos negociais, processuais e Registrais. Salvador: Juspodivm, 2022.

SILVA, Rodrigo da Guia; PINTO, Melanie Dreyer Breitenbach. “Contratos inteligentes (smart contracts): esses estranhos (des)conhecidos”. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, vol. 5, out.-dez., 2019. Disponível em:  https://bd.tjdft.jus.br/jspui/handle/tjdft/49865. Acesso em: 04 dez. 2023.

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