Lavagem & Afins

Operando com bitcoins (parte 2): transações com uso de ferramenta de mixagem

Autores

  • Felipe Campana

    é doutorando e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Especialista em Direito Penal Econômico pela FGV. Bacharel em Direito pela FD da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado consultivo no escritório Heloísa Estellita Advogados.

  • Joyce Serra

    é mestre em Direito Penal pela FDUSP professora dos cursos de pós-graduação de Direito Penal Econômico e Compliance do FGV Law. Advogada.

  • Barbara Claudia Ribeiro

    é graduada pela FDUSP especialista (LL.M) em Mercado Financeiro e de Capitais pelo Insper. Mestranda em Direito Penal pela FDUSP.

15 de março de 2024, 12h17

Transações com uso de ferramenta de mixagem podem configurar ato típico de ocultação ou dissimulação do tipo penal do artigo 1º, da Lei nº 9.613/98?

Na parte 1 desta investigação, foi possível verificar que não há incompatibilidade absoluta e prévia entre a característica da pseudoanonimidade da blockchain e a realização de uma conduta típica de ocultação do crime de lavagem de dinheiro.

Imagine, no entanto, que, no caso mencionado na parte I, após o funcionário público F transferir os valores em espécie para o detentor de bitcoins D, esse, a partir de sua chave privada, transfira o correspondente valor em bitcoins para o endereço de F, porém com uso de tecnologias de mixagem para garantir maior anonimato à transação.

A questão que surge é: D praticou a conduta objetivamente típica de dissimulação, disposta no artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/98?

O foco agora é, portanto, se a utilização da tecnologia de mixagem, que tem ganhado crescente popularidade nos últimos anos [1], na transação com bitcoins implica, obrigatoriamente, em um ato de dissimulação típico da lavagem de dinheiro.

O que são as ferramentas de mixagem?

Como mencionado anteriormente, a blockchain da bitcoin reveste-se de caráter público, uma vez que os registros das transações realizadas estão disponíveis para todos os usuários da rede.

As ferramentas de mixagem surgem, nesse contexto, como um mecanismo para dificultar a rastreabilidade das operações [2] registradas na blockchain, promovendo maior privacidade e anonimato às transações realizadas pelo seu usuário.

De acordo com a definição do Gafi, as ferramentas de mixagem permitem a mescla entre operações realizadas por diversos usuários, de modo a tornar incerto o caminho entre remetente e destinatário da transação [3].

Apesar de a mixagem poder ser utilizada para finalidades legítimas [4], a diminuição da rastreabilidade da transação é um atrativo também para os usuários que operam com valores ilícitos.

O conceito de dissimulação

Duas posições disputam o conceito do termo dissimular no tipo penal de lavagem de dinheiro:

(i) para parte dos autores, é ato ou conjunto de atos por meio do qual se aprofunda o distanciamento dos valores de sua origem ilícita, dificultando assim seu rastreamento [5], e sua diferença com a ocultação é a maior sofisticação dos atos [6][7] e
(ii) existem autores, no entanto, que entendem que esses atos devem representar algum tipo de alteração da verdade, um disfarce, para serem considerados como de dissimulação [8].

Sem pretensão de tomar posição a respeito desse conceito, cabe aqui somente destacar que, tal qual a conduta de ocultação, a conduta de dissimulação também não deverá recair sobre o valor e, sim, sobre sua origem, natureza, localização, disposição, movimentação e propriedade. E, para a delimitação concreta destas características, deve-se ter em mente dois aspectos:

(i) devem ser características existentes no momento da prática da conduta (ex ante) e
(ii) somente podem ser as características que não se modifiquem com a prática da conduta em si.

A partir destes dois aspectos, é possível realizar a comparação da característica ex ante e ex post à prática da conduta para afirmar se houve ou não resultado de dissimulação (que pode ser encobrimento mais profundo com ou sem o falseamento da realidade, a depender da posição adotada).

Retomando o caso

Voltemos à hipótese tratada: “D”, para transferir a “F” as bitcoins produto indireto do crime de corrupção, faz uso de ferramentas de mixagem descentralizada para dar privacidade à operação.

Os objetos da conduta delimitados ex ante e que não se modificam com a realização da transação são a origem do valor, ou seja, de onde o valor veio para chegar na conta bancária de “F” e a propriedade do valor, que é de “F”.

Assim, quando “F” transfere os valores provenientes de infração penal antecedente de sua conta bancária para a conta bancária de “D” e recebe o correspondente em bitcoins, sem que se tenha qualquer rastro, em razão do serviço de mixagem, não há dúvida quanto ao fato de que ambos os objetos estão muito mais escondidos do que estavam antes da realização da transação.

A questão é saber se esse aprofundamento do esconderijo e a sofisticação da transação se amoldam a uma conduta de ocultação ou a uma conduta de dissimulação.

A primeira posição defende que estaria configurada a dissimulação da origem e da propriedade dos valores para fins do crime de lavagem de dinheiro [9].

Argumenta-se que a mixagem aprofunda o distanciamento da origem e propriedade dos valores alocados em bitcoin e dificulta de forma relevante o seu rastreio, uma vez que a operação de envio da bitcoin de D para F dificilmente seria identificada na blockchain.

Dessa forma, a consequência de imposição de dificuldades relevantes no rastreio das características dos valores, inerente à configuração da dissimulação, estaria presente no caso.

Porém, caso se adote conceito mais restrito de dissimulação, que exige não somente a sofisticação ou maior aprofundamento, mas também alteração da realidade, ao que parece, a conduta em questão não se amoldaria à figura da dissimulação, pois os serviços de mixagem não criam falsos rastros, mas somente colocam camadas para dificultar o encontro do rastro correto.

Assim, estaríamos diante da conduta de ocultação, isso porque, conforme destacado na parte I, a mixagem tornaria as características dos valores alocados em bitcoins mais escondidas em relação ao momento em que estavam na conta bancária de F.

Como conclusão, pode-se dizer que as ferramentas de mixagem para a realização de transações com a tecnologia blockchain não implicam automaticamente em dissimulação típica, pois, em última instância, é preciso definir se o comportamento de dissimulação pressupõe ou não uma falsidade. No entanto, é possível dizer que, no mínimo, a ferramenta da mixagem configurará comportamento de ocultação típico.

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[1] Em abril de 2022, as ferramentas de mixagem processaram média de cerca de 51 milhões de dólares em criptomoedas em 30 dias, o dobro do que foi recebido no mesmo período em 2021CHAINANALYSIS. Crypto Mixer Usage Reaches All-time Highs in 2022, With Nation State Actors and Cybercriminals Contributing Significant Volume. Chainanalysis Blog, 2022. Disponível em: https://blog.chainalysis.com/reports/crypto-mixer-criminal-volume-2022/. Acesso em: 19.11.2022.

[2] PAKKI, Jaswant et al. Everything you ever wanted to know about Bitcoin Mixers (But were afraid to ask). Disponível em: https://www.proquest.com/openview/c13b3ecc32a86a383cfcf66b01fb524d/1.pdf?pq-origsite=gscholar&cbl=18750&diss=y . Acesso em: 14.11.2022.

[3] GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL (GAFI). Virtual Currencies: key, definitions and potential AML/CFT Risks. Paris: GAFI, 2014. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/virtual-currency-key-definitions-and-potential-aml-cft-risks.pdf. Acesso em 13.11.2022). Note-se que as ferramentas de mixagem podem ser centralizadas ou descentralizadas. Os serviços de mixagem centralizados têm suas atividades controladas por um operador. Por sua vez, as ferramentas descentralizadas são controladas por smart contracts, que permitem a operação dos serviços sem intervenção externa. São exemplos de ferramentas de mixagem descentralizadas o Wasabi Wallet e o Tornado Cash. Para a presente análise, são consideradas somente as ferramentas descentralizadas.

[4] Exemplo recente de uso para finalidade legítima é o caso das doações realizadas por Vitalik Buterin, cofundador da rede Etherium, via Tornado Cash, para a Ucrânia. Disponível em: https://finance.yahoo.com/news/vitalik-buterin-says-used-tornado-051658207.html?guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAJsWwGnvwJhyruozJrPatxBMi4sxt0P8_1nUEcrVcjEmVrYfkSxIqqh_eyJLx2ijYNZMefey6A-F2gUQmOnl4bNExkOVNyD5QvfmLXlcdrbjGRDAiLvV4IJeMmGm3fwgBMl3-elr8zRUNIHvEOI9OF662dy-r7BduSDnALnEqvdB. Acesso em: 22.11.2022.

[5] Nesse sentido, BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro: Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 66; BITENCOURT, Cezar Roberto. MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 102, pp. 163-220, mai./jun. 2013, p. 170 e ss. e OLIVEIRA, William Terra de. A criminalização da lavagem de dinheiro: aspectos penais da Lei 9613 de 1º de março de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 6, n. 23, p. 111-129, jul./set. 1998, p. 122.

[6] Badaró/Bottini descrevem a dissimulação como um ato “um pouco mais sofisticado do que o mascaramento original” (BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem…op. cit., p. 66).

[7] Essa característica se reflete em exemplos apresentados pela doutrina: a ocultação consistiria, por exemplo, na realização de depósito em conta de terceiro e posterior conversão dos valores em moeda estrangeira, enquanto a dissimulação consistiria em transações entre contas correntes no exterior e a realização de operações simuladas.

[8] Nesse sentido, BALTAZAR JR., José Paulo. Crimes federais. 11 ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1090; CALLEGARI, André Luís. LINHARES, Raul Marques. Lavagem de Dinheiro (com a jurisprudência do STF e do STJ). Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2022, p. 135 e CALLEGARI, André Luís. SCHEID, Carlos Eduardo. ANDRADE, Roberta Lofrano. Breves anotações sobre a lei de lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 92, pp. 219-260, set./out. 2011, p. 223-224. Próximo parecem ser BARROS, Marco Antônio. Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 77; PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. 9 ed., rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2021 [e-book], p. 551 e PRADO, Luiz Regis. Delito de lavagem de capitais: um estudo introdutório. In: PRADO, Luiz Regis. Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao professor José Cerezo Mir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 249.

[9] Nesse sentido, Moraes: “Entende-se que a passagem de bitcoins de proveniência ilícita por ‘serviços de mixagem’, quando presente o elemento subjetivo do tipo, inequivocamente configurará o delito de lavagem de dinheiro. Isso porque a conduta resultará na ‘dissimulação’ da origem e movimentação dos bitcoins…. Após a conduta, não será possível – ou, ao menos, será significativamente mais complexo – realizar o rastreamento da origem do bitcoin” (MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e lavagem de dinheiro: Quando uma transação configura crime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 204). Silveira/Camargo entendem que essas técnicas são “casos próximos à técnica de lavagem de ativos conhecida como mescla” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. CAMARGO, Beatriz Corrêa. Ocultar o oculto: apontamentos sobre a lavagem de dinheiro em tempos de criptomoedas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 175, n. 29, pp. 145-187, jan. 2021, p. 170). Ademais, adota a mesma posição Johana Gryzwotz, citada por Heloisa Estellita: “No que tange aos mixing-services, seu uso não implica ocultação dos BTCs, porque a única coisa que fazem é obscurecer a relação entre o remetente (sender) e o destinatário ou recipiente (empfänger), bastando descobrir a quem pertence esse último endereço para evitar a ocultação. O mesmo não se pode dizer da modalidade de dissimulação. Como a função desses serviços é justamente tornar nebulosa a relação entre remetente e destinatário, a realização de várias transações dificulta enormemente a descoberta da origem dos BTCs” (ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas e lavagem de dinheiro. Resenha de: GRZYWOTZ, Johanna. Virtuelle Kryptowährungen und Geldwäsche. Revista Direito GV. V. 16, n. 1, 2020, p. 10).

Autores

  • é professor de Direito Penal Econômico na pós-graduação da FGVlaw e do Mackenzie. Assessor da ministra Daniela Teixeira (STJ). Doutorando e mestre em Direito Penal pela FD-USP. Especialista em Direito Penal Econômico pela FGV. Bacharel pelo Mackenzie.

  • é mestre em Direito Penal pela FDUSP, professora dos cursos de pós-graduação de Direito Penal Econômico e Compliance do FGV Law. Advogada.

  • é graduada pela FDUSP, especialista (LL.M) em Mercado Financeiro e de Capitais pelo Insper. Mestranda em Direito Penal pela FDUSP.

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