Opinião

Possibilidade de acordos judiciais no âmbito de ações civis públicas

Autores

  • Thiago Priess Valiati

    é sócio do RBGV Advogados doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pós-graduado em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar e Direito Empresarial pela FIEP/IEL.

  • Scarlett Walewska dos Santos

    é mestranda em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e advogada associada do escritório Razuk Barreto Valiati.

13 de março de 2024, 21h27

Com a sedimentação cada vez mais evidente do “sistema multiportas” dentro da processualística brasileira [1], muito se tem discutido sobre a possibilidade da realização de acordos no âmbito do processo coletivo.

Um dos maiores pontos de divergência consiste na definição da medida em que o famigerado princípio da indisponibilidade do interesse público influencia na multiplicidade de caminhos possíveis para a solução de conflitos envolvendo o poder público — o que se acentua ainda mais quando o debate envolve a tutela de direitos transindividuais (tipicamente defendidos no âmbito de ações civis públicas).

Embora seja indiscutível que a consensualidade administrativa esteja cada vez mais na ordem do dia do Direito brasileiro, inclusive com a previsão de dispositivos legais específicos que autorizam a administração pública a se valer de meios alternativos de resolução de controvérsias [2], ainda se observa que tal tendência costuma limitar-se majoritariamente às questões eminentemente patrimoniais [3].

Em demandas coletivas, por sua vez, nota-se ainda grande prevalência da correlação automática entre “indisponibilidade” e “inegociabilidade” — o que, em muitos casos, gera a ausência de proteção adequada e mesmo o perecimento do direito que se busca assegurar no âmbito de uma ação civil pública.

Pensando nisso, parte da doutrina nacional, em prol da efetivação da consensualidade também dentro do processo coletivo [4], inspirando-se na experiência do common law [5], tem apresentado possibilidades para a realização de acordos nas demandas coletivas que tratem de direitos transindividuais — sempre com a devida segurança jurídica e adequação ao interesse público.

Embora se justifique a inegociabilidade nas demandas coletivas por ser necessária uma maior sensibilidade no tratamento dos direitos transindividuais, é justamente esse cuidado específico que, contrariu sensu, resulta na impossibilidade de se declarar sua indisponibilidade de forma automática (e, por consequência, a intolerabilidade de sujeição à negociação, mediação ou conciliação que eventualmente conduzam à sua transação), sob pena de comprometer a sua efetiva tutela.

Assim, desde que pensados a partir de técnicas e regramentos que busquem o efetivo atendimento do interesse público, eventuais acordos (inclusive judiciais) podem (e devem) ser utilizados em demandas coletivas. Por exemplo: através da ampliação da participação popular e da busca de soluções “ganha/ganha” para todos os envolvidos.

Autocomposição em demanda coletiva e homologação judicial fundamentada

Um dos exemplos emblemáticos que ilustra essa ideia diz respeito ao acordo celebrado entre o Ministério Público, a Defensoria Pública e o estado de Minas Gerais com a Vale S.A. na demanda ambiental envolvendo o rompimento da barragem I em Brumadinho/MG, celebrado e homologado em fevereiro de 2021.

A autocomposição, nesse caso, foi marcada por uma série de sessões de mediação e reuniões preparatórias, as quais foram essenciais para estabelecer o diálogo entre os interessados e a própria comunidade.

Com isso, o acordo realizado pôde resultar na elaboração conjunta de uma estrutura completa voltada à reparação socioambiental e socioeconômica, com o detalhamento de programas e projetos, disposições sobre auditorias independentes e garantias financeiras, previsão de eventuais penalidades, modo de quitação, entre outros aspectos [6] — o que representou, sem dúvidas, uma solução muito mais rápida e adequada para o referido caso, atendendo ao critério finalístico “celeridade-eficiência” que é próprio do processo coletivo [7].

Spacca

Da experiência concreta tem-se a perspectiva de que a ampliação da possibilidade de realização de acordos no âmbito de demandas coletivas pode ser extremamente positiva. Por sua vez, essa ampliação exige, sem dúvidas, a adoção de uma lógica diferenciada para a homologação destes acordos (que priorize não apenas o preenchimento dos requisitos de validade, mas uma análise efetiva e substancial).

Assim, a denominada homologação judicial fundamentada, adequada e substancial pode ser um ponto central neste debate. Uma intervenção judicial “final” que, para além de requisitos formais e procedimentais, faça também um juízo de valor fundamentado a respeito do atendimento ao interesse público, pode equalizar a balança entre a cautela necessária no tratamento de direitos transindividuais e a otimização procedimental do cumprimento dos critérios finalísticos do litígio (como no próprio caso da Vale S.A.).

Diante da tímida experiência nacional no assunto, a inspiração do common law oferece um bom norte inicial para o Direito brasileiro [8]. Nas “class actions”, a aprovação judicial de acordos está condicionada à verificação dos critérios de “justiça, razoabilidade e adequação”, o que pode ser devidamente adaptado para o modelo brasileiro, considerando a necessidade de que se estabeleçam parâmetros gerais cuja análise pode variar conforme o melhor interesse público envolvido no caso concreto.[9]

Embora não se desconsidere que os conceitos de justiça, razoabilidade e adequação sejam dotados de um grau considerável de abstração, tal aspecto subjetivo, inclusive, pode ser aproveitado para garantir que o julgador analise e justifique a multiplicidade de fatores envolvidos em conflitos tão complexos como os submetidos às ações civis públicas, sempre à luz do atendimento do interesse público.

Em paralelo, exportando-se a ideia para o Direito brasileiro, a justificação destes conceitos no caso concreto pode (e deve) se valer de técnicas de fundamentação judicial já consagradas na processualística brasileira, como a ponderação (artigo 489, §2º, CPC) e a consideração das consequências práticas da decisão quando forem utilizados valores jurídicos abstratos (artigo 20, Lindb) [10].

Dúvidas sobre o papel da intervenção jurisdicional

Inobstante o caminho que se pretende seguir, fato é que, conforme a temática vai se tornando cada vez mais frequente na pauta do Poder Judiciário brasileiro, diversas questões despontam. É dizer, tal cenário acarreta fundadas dúvidas a respeito de qual seria precisamente o papel da intervenção jurisdicional diante de propostas de acordos nas demandas coletivas já instauradas.

Por exemplo, algumas das questões que poderiam ser debatidas consistem nas seguintes:
a) a homologação da proposta de acordo seria obrigatória para dar-lhe validade e eficácia?
b) a intervenção judicial deveria ser mais ativa e vertical, no sentido de um verdadeiro escrutínio a respeito do próprio mérito do acordo coletivo, em prol da defesa dos interesses dos membros do grupo tutelado?
c) os critérios para a análise judicial chancelatória dos acordos coletivos seriam similares ou idênticos àqueles já seguidos pelo sistema de justiça nas demandas individuais?
d) é possível falar em uma eficácia erga-omnes na homologação de tais acordos?

Enfim, o necessário debate acerca destas questões possui aspectos positivos, considerando a necessidade de que a implementação destas técnicas seja feita de forma legítima e segura pelo poder público.

Assim, embora essas e outras respostas ainda estejam sendo gradativamente construídas tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência pátrias, parece claro que encarar a autocomposição dentro do processo coletivo como um caminho possível permite maximizar a efetivação dos direitos transindividuais, especialmente considerando a possibilidade de otimização de várias das dificuldades inerentes à tutela de direitos coletivos, a depender do caso concreto.

Com efeito, além da homologação judicial fundamentada, adequada e substancial possuir um grande potencial de legitimar a adoção destes caminhos, ela também parece permitir que a consensualidade entre, efetivamente, na lógica do processo coletivo sem que para isso seja necessário renunciar à chancela de mérito do Poder Judiciário, que, em última ratio, busca, ao menos em tese, um objetivo comum: assegurar a obtenção de soluções justas, efetivas e adequadas ao caso concreto.

 

 


[1] A adequação do sistema processual brasileiro aos princípios e garantias da Constituição Federal é uma das mais relevantes inovações do Código de Processo Civil de 2015. Buscando harmonizar-se às normas constitucionais – sobretudo aos princípios do amplo acesso à justiça, da razoável duração do processo, da eficiência e do contraditório -, o CPC de 2015 alinha-se ao moderno conceito de Justiça Multiportas. Para além da via tradicional do processo judicial, o CPC estimula a utilização de métodos de solução consensual de conflitos, como a conciliação e a mediação, bem como reconhece a arbitragem como método válido de jurisdição.

[2] A exemplo do disposto na Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação), Lei nº 13.129/2015 (Lei de Arbitragem), Lei nº 13.655/2018 (LINDB) e Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

[3] É por isso que, embora o momento de mudança paradigmática seja capaz de, como defende Elton Venturi, “provocar profundas reavaliações da filosofia e da prática da solução de conflitos, inclusive quando correlacionados aos direitos indisponíveis”, a questão está longe de ser pacífica – sobretudo diante das variáveis abarcadas dentro do universo do processo coletivo. (VENTURI, Elton. Transação de direitos indisponíveis. Revista de Processo, v. 251, jan. 2016, pp. 391-426).

[4] Ver, por exemplo: ZANETI JR, Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas. 2ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, e DIDIER JR., Freddie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 11ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p. 339-341.

[5] Ver: GRINOVER, Ada Pellegrini e WATANABE, Kazuo e MULLENIX, Linda S. Os processos coletivos nos países de Civil law e Common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

[6] Entenda o Acordo Judicial para reparação ao rompimento em Brumadinho. Disponível em: https://www.mg.gov.br/pro-brumadinho/pagina/entenda-o-acordo-judicial-de-reparacao-ao-rompimento-em-brumadinho. Acesso em: 02 mar. 2024.

[7] Nesse sentido, ressalta-se que, no que REFERE às ofensas aos demais interesses metaindividuais (v.g., meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, ordem urbanística), há de “prevalecer o critério finalístico, que informa o binômio instrumentalidade finalidade dos procedimentos, sendo preferível uma solução negociada, que se mostre idônea e eficaz para resolver o conflito gerado pela lesão ou ameaça ao interesse indigitado, do que uma obstinada busca pela solução judicial, geralmente demorada, onerosa e de desfecho imprevisível”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009).

[8] Cabe reiterar que a experiência do common law em relação às class actions tem há muito sido utilizada para melhor compreender os conflitos coletivos no Brasil: seja em matéria de legitimação, representatividade ou mesmo de fundamentação.

[9] Para Elton Venturi, mesmo diante da ausência de critérios pré-estabelecidos pelo ordenamento brasileiro para a homologação judicial de acordos coletivos e da rara atuação dos tribunais nacionais sobre o tema, a antiga experiência dos países de common law pode informar caminhos úteis a serem trilhados no Brasil, sobretudo quanto à aplicação destes critérios em específico. (VENTURI, Elton. A Homologação Judicial dos Acordos Coletivos no Brasil. RJLB – Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 8, p. 599-622, 2022)

[10] A utilização dos dispositivos de Direito Público inseridos pela Lei nº 13.588/2018 na LINDB, aliás, afigura-se essencial em casos como estes, afim de garantir segurança jurídica e eficiência no âmbito de relações públicas. Para uma análise geral sobre o impacto da Lei nº 13.655/2018 sobre o Direito Administrativo brasileiro, ver: VALIATI, Thiago Priess; HUNGARO, Luis Alberto; CASTELLA, Gabriel Morettini e. A Lei de Introdução e o Direito Administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

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