Direito Civil Atual

A tradução de 'O Direito à Privacidade', de Warren e Brandeis

Autores

  • Marcus Seixas Souza

    é editor da Civil Procedure Review – ISSN 2191-1339.

  • Maria Clara de Souza Seixas

    é advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com pesquisa na área de Inteligência Artificial Privacidade e Proteção de Dados. Professora da Faculdade Baiana de Direito da Cubos Academy e do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Sócia da 4S Advocacia.

11 de março de 2024, 10h22

O ensaio “O Direito à Privacidade”, de Samuel Warren e Louis Brandeis, é uma obra fundamental, que marcou o início das discussões sobre o direito à privacidade nos Estados Unidos. A mais recente tradução para a língua portuguesa dessa importantíssima contribuição para o Direito está no prelo, prestes a ser publicada na Revista de Direito Civil Contemporâneo. [1]

Os coautores, amigos e colegas dos bancos de faculdade e na advocacia, estimulados pelo descontentamento face à publicidade ofensiva relativa às atividades sociais da família de Warren, conceberam esse novo conceito jurídico como resposta às crescentes preocupações em torno da invasão da privacidade das pessoas decorrentes do avanço da imprensa sensacionalista e das novas tecnologias da época, especialmente da fotografia.

Entre 1888 e 1890, escreveram três ensaios publicados no periódico Harvard Law Review. O terceiro, “O Direito à Privacidade”, foi o mais relevante. A importância desse artigo reside não apenas em sua relevância histórica, mas também em sua influência duradoura no desenvolvimento do direito à privacidade e na proteção dos direitos individuais.

Os autores foram juristas proeminentes de seu tempo. Samuel D. Warren II foi um advogado e empresário nascido em Boston, Massachusetts. Ele concluiu o curso de Direito na Universidade de Harvard em 1877, com segundo aluno de sua turma — o primeiro aluno da turma era justamente Louis Brandeis, nascido em Louisville, Kentucky, e coautor do ensaio sobre o direito à privacidade.

Em 1879, Warren e Brandeis fundaram uma longeva sociedade de advogados (à época intitulada Warren & Brandeis, atualmente Nutter McClennen & Fish). Warren deixou a sociedade em 1888, para seguir com sua carreira de empresário, e Brandeis continou na sociedade até 1914, quando abandonou a advocacia após ter sido nomeado juiz da Suprema Corte dos EUA.

Como referido anteriormente, os co-autores foram motivados a construir a doutrina do direito à privacidade em razão de circunstâncias relacionadas à vida pessoal de Warren. Ele se casou com Mabel Bayard (filha de Thomas F. Bayard, um senador pelo estado de Delaware, anteriormente candidato à presidência dos Estados Unidos) na Igreja da Ascenção em Washington, D.C., em 25 de janeiro de 1883, e a cobertura jornalística do evento (por jornais como The New York Times, The Washington Post e outros) foi considerada por Warren sensacionalista e invasiva.

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Além da cobertura de seu casamento, notícias jornalísticas nos anos seguintes, publicadas em Boston, Nova York e Washington, foram de observações mundanas como referências a um almoço ofertado pela esposa de Warren, até comentários invasivos  como a descrição dos corpos da irmã e da mãe de Warren durante os seus funerais, ocorridos em pouco mais de duas semanas de diferença.

O fato de Warren ter se casado com uma pessoa tão socialmente proeminente parece ter tenha sido determinante para a sua repulsa à invasão de privacidade do fotojornalismo em ascensão no final do século 19. [2]

Warren e Brandeis argumentaram que as pessoas têm o direito de serem “deixadas em paz” e de controlarem a divulgação de informações pessoais sobre si mesmas. Apesar do contorno deste direito ser próximo ao da propriedade privada, como um bem passível de controle e de proteção da esfera pessoal dos cidadãos contra intromissões indesejadas, eles também conferem um caráter existencial.

O ensaio destaca a importância da privacidade como um componente essencial da autonomia e da dignidade humanas, defendendo que a invasão da privacidade era uma violação dos direitos individuais. Há aqui uma clara intenção de tutela da personalidade humana.

É assim que a privacidade vai além de um direito que gira em torno do valor econômico, da possibilidade de obtenção de lucros, e alcança questões mais existenciais como a possibilidade de impedir o seu uso por outros por uma questão puramente de cunho íntimo.

Destacando a importância de equilibrar a liberdade de expressão e o direito à privacidade, Brandeis e Warren discutiram a “fotografia instantânea”, uma inovação recente no jornalismo, que permitiu aos jornais publicar fotografias e declarações de indivíduos sem obter o seu consentimento (métodos anteriores da fotografia exigiam exposição prolongada, o que naturalmente exigia o consentimento dos fotografados).

Os coautores argumentaram que indivíduos estavam sendo continuamente prejudicados e que a prática da fotografia instantânea enfraquecia os “padrões morais da sociedade como um todo”, e que, à luz das  mudanças políticas, sociais e econômicas, era necessário reconhecimento novas fronteiras da proteção jurídica à pessoa e à propriedade:

” (…) ​​A imprensa está ultrapassando em todas as direções os limites óbvios do decoro e da decência. A fofoca não é mais o recurso dos ociosos e dos viciosos, mas tornou-se um comércio, que é praticado com diligência e descaramento. Para satisfazer um gosto lascivo, os detalhes das relações sexuais são divulgados nas colunas dos jornais diários. Para ocupar os indolentes, coluna após coluna está cheia de fofocas ociosas, que só podem ser obtidas por intrusão no círculo doméstico. (…)”. (trecho do ensaio).

Vai além

A importância do artigo “O Direito à Privacidade” vai além de seu impacto imediato. A influência desse texto pode ser vista em decisões judiciais, no desenvolvimento de legislações de proteção de dados e na ocorrência debates éticos sobre a privacidade na era digital.

O ensaio de Warren e Brandeis é uma leitura imperdível, seja pelo seu valor histórico, pela atualidade das opiniões contidas no texto, ou pela relevância que o direito à privacidade assumiu na sociedade contemporânea – alcançando novas nuances causadas pela globalização, pelas novas tecnologias e pela sociedade da informação.

É uma contribuição atemporal a doutrina, um ensaio inafastável, que precisa ser lido por todo estudioso da privacidade e da proteção de dados pessoais na contemporaneidade.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 

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[1] BRANDEIS, Louis D; WARREN, Samuel D. “O Direito à Privacidade”. Tradução de Maria Clara de Souza Seixas e Marcus Seixas Souza. Revista de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: v. 38, p. 391-417, 2024.

[2] Sobre o assunto, cf. GAJDA, Amy. “What if Samuel D. Warren Hadn’t Married a Senator’s Daughter?: Uncovering the Press Coverage that Led to “The Right to Privacy”. Michigan State Law Review. East Lansing, Vol. 2008, N. 1, p. 35 e ss, 2008.

Autores

  • é advogado. Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor adjunto da Faculdade Baiana de Direito, com ensino, pesquisa e extensão na área de Direito e Tecnologia. Sócio do Susart Seixas.

  • é advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com pesquisa na área de Inteligência Artificial, Privacidade e Proteção de Dados. Professora da Faculdade Baiana de Direito, da Cubos Academy e do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Sócia da 4S Advocacia.

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