Opinião

Não pode valer a pena causar danos: da inconstitucionalidade do PL 2.812

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

  • Luís Alberto Reichelt

    é mestre e doutor em Direito pela UFRGS. Professor nos cursos de graduação especialização mestrado e doutorado da PUC-RS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional e do BRASILCON. Procurador da Fazenda Nacional em Porto Alegre (RS).

10 de março de 2024, 6h31

O saudoso Ministro Paulo de Tarso Sanseverino já ensinava que o dano é a ‘lesão a interesse jurídico tutelável1. Um desequilíbrio ou uma injustiça na posição jurídica daqueles que legitimamente detêm determinado direito, inclusive, direitos prioritários (direitos fundamentais ou direitos da personalidade). Em muitos casos, esses titulares de interesses jurídicos são os ‘vulneráveis’ ou ‘fragilizados’ cabendo ao sistema jurídico a proteção suficiente e imediata.

A aprovação do Projeto de Lei nº 2.812/2023 pelo Senado Federal, cuja redação acrescenta parágrafo único no art. 499 do Código de Processo Civil, parece ir na contramão de direção da função constitucional do processo em viabilizar a tutela efetiva de direitos subjetivos. Trata-se de iniciativa que, agora indo à sanção presidencial, tem o sério risco de afetar consumidores e outros vulneráveis que dependam da atuação responsiva da jurisdição brasileira.

O parágrafo único introduzido no art. 499 do Código de Processo Civil inova ao estabelecer que, no âmbito da responsabilidade contratual nos casos de vícios redibitórios (Código Civil, art. 441), empreitada (Código Civil, art. 618) e seguro (Código Civil, art. 757), bem como na responsabilidade solidária e subsidiária, caso requerida a conversão em perdas e danos, o juiz concederá ao réu, primeiramente, a opção do cumprimento da tutela específica.

A questão como posta conspurca a principal diretriz outrora assentada no âmbito processual, que é a da ‘tutela dos direitos2, indo de encontro ao formalismo axiológico que bem delineou o Código de Processo Civil em 2015.3 Muito embora os arts. 497, 498 e 499 caput do Código de Processo Civil tenham priorizado a tutela específica das prestações de fazer, de não fazer e de entregar coisa, evitando-se a monetização do dano e tendo por óbvia inspiração o art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, o direito à conversão em perdas e danos não pode ser desprezado caso seja a preferência do credor (que pode ser um consumidor ou vulnerável) e/ou caso a prestação se torne impossível.

A redação proposta simplesmente ‘inverte as prioridades’, facultando ao inadimplente nova possibilidade de cumprir a obrigação outrora insatisfeita. No campo das relações jurídicas, inclusive, é bom relembrar que mesmo diante da busca pelo cumprimento da tutela específica mediante a aplicação do art. 497, também é claramente possível a exigência de perdas e danos, cujas causas, vale dizer, podem ser subjacentes a inúmeros outros fatores, especialmente aqueles ligados à proteção das expectativas.4

Aliás, o Superior Tribunal de Justiça, quando da aplicação do art. 461 do Código de Processo Civil de 1973, já estabelecia, de maneira pacífica, que

definida a obrigação pela prestação de tutela específica — seja ela obrigação de fazer, não fazer ou dar coisa certa —, é plenamente cabível, de forma automática, a conversão em perdas e danos, ainda que sem pedido explícito, quando impossível o seu cumprimento ou a obtenção do resultado prático equivalente.5

Não é diferente a jurisprudência à luz da codificação atual ao consignar que não se constitui em julgamento extra petita a decisão do juiz que determina a conversão de outras obrigações em perdas e danos6, sempre pensada como benefício no interesse do credor.

Direito material

Já do ponto de vista do direito material, mais precisamente do Direito Civil, percebe-se desprezo ao princípio da boa-fé objetiva (Código Civil, art. 113, art. 187 e art. 422) na medida em que estimula o descumprimento dos arranjos negociais e das obrigações, deixando à deriva aquele que não apenas acreditou e confiou (Glauben) no comportamento alheio, mas esperava lealdade, fidelidade, honestidade e implemento da ‘prestação’ (Treu), o que exige forte atuação dos ‘deveres de proteção’.7

Spacca

Cabe relembrar o inadimplemento como patologia a ser não apenas evitada, como prevenida, corrigida e reparada pelo sistema jurídico, o que caminha na mesma trilha da melhor orientação a ser seguida em se pensando em sede de acesso à justiça.8 Não seria correto estimular o incumprimento (quebra do contrato), ademais apartando-o da responsabilidade civil, porquanto esse último instituto, a despeito das inúmeras funções inerentes9, encontra suas bases justamente na reparação de danos como forma de restauração do ‘status quo ante’ e reequilíbrio de situação injusta causada pela lesão a interesse jurídico tutelável.

De outro lado, caso não haja veto Presidencial ao referido projeto de lei, os consumidores podem ser severamente prejudicados. O texto introduzido, sem fazer a devida ressalva à necessidade de respeito ao Código de Defesa do Consumidor, dá ensejo ao surgimento de retrocessos inaceitáveis no que diz respeito à proteção de sujeitos vulneráveis diante de fornecedores de produtos ou serviços. Nesse contexto, leis que visam restringir ou eliminar o direito à indenização do consumidor por vícios em produtos ou serviços surgem como afronta direta à hermenêutica dos direitos fundamentais, desafiando a exigência de proibição de retrocesso social, na medida em que, diminuindo sensivelmente o âmbito de tutela hoje existente, acabam por acentuar ainda mais o indesejável desequilíbrio de uma relação já assimétrica.

O princípio da “incolumidade econômica e existencial” 10 dos vulneráveis, embora não explicitado textualmente na Constituição Federal de 1988, decorre do amálgama de direitos e garantias fundamentais que visam à proteção dos menos favorecidos e à promoção da sociedade livre, justa e solidária (Constituição Federal, art. 3º, I). Tal princípio é essencial para compreender os valores fundantes do Código de Defesa do Consumidor e de toda a legislação protetiva e correlata aos consumidores.

Neste ponto, a responsabilidade civil, além de estrutura e finalidades, é dotada de acentuada posição axiomática na legalidade constitucional. É dizer que quando se atribui algum direito fundamental a “sujeito constitucionalmente identificado” 11 (como é o consumidor) fatalmente deveres serão dirigidos ao outro componente desta relação jurídica, que não deixa de ser jusfundamental.12

A inconstitucionalidade de leis que retiram ou limitam o direito à indenização por vícios em produtos ou serviços reside, primordialmente, na violação de princípios como a dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, art. 1º, III), a proteção ao consumidor (Constituição Federal, art. 5º, XXXII), além do direito à segurança (CF, art. 5º, caput) e à propriedade (Constituição Federal, art. 5º, XXII), a qual deve atender a sua função social, incluindo a adequação do uso dos bens e serviços adquiridos.

Ademais, a tentativa de supressão desse direito ignora o dever fundamental do Estado como garantidor de direitos e facilitador do equilíbrio nas relações de consumo13, conforme estabelecido no art. 5º, inciso XXXII, e no art. 170, inciso V, da Constituição Federal, que exprimem a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica e a necessidade de sua proteção contra abusos do poder econômico.14

Ressalte-se que a indenização por vícios ou defeitos não se restringe apenas à esfera material, abrangendo também danos extrapatrimoniais, que por vezes acabam por se revelar ainda mais significativos ao consumidor. A proteção à incolumidade existencial refere-se justamente à garantia de que as pessoas naturais consumidoras possam viver sem o constante aviltamento causado pela insatisfação no atendimento das necessidades mais básicas, pela exposição indevida a riscos desnecessários ou mesmo pela perda do tempo de vida razoável para solucionar problemas que são próprios do fornecedor ou do mercado.

Cumpre gizar também que, quanto aos vícios, o Código de Defesa do Consumidor já prestigia o fornecedor estabelecendo prazo para sanação das inadequações dos produtos (art. 18, § 1º) assim como a oportunidade de reexecução dos serviços impróprios (art. 20), não sendo razoável, justo e muito menos adequadamente constitucional que, após, trespassadas tais prerrogativas e não solucionadas as imperfeições, possa, novamente, o fornecedor ter a faculdade de corrigir a prestação insatisfeita. É hipótese clara de desvantagem ao consumidor que merece ser protegido, inclusive, quando do trâmite de projetos de lei com tamanha lesividade.

Nesse sentido, qualquer legislação que vise retirar ou minimizar o direito à indenização por vícios ou defeitos em produtos e serviços deve ser vista com extrema cautela e, em última análise, contestada quanto à constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, tem o dever de intervir sempre que houver ameaça ou violação a esses fundamentos, assegurando a incolumidade econômica e existencial dos consumidores (vulneráveis, insista-se).15

Portanto, a inconstitucionalidade da mencionada iniciativa não apenas é conclusão que se alinha com a orientação estampada em jurisprudência e doutrina predominantes, mas se mostra como um imperativo ético e social, reforçando o compromisso do Estado brasileiro com a justiça social e a igualdade substancial, pilares do Estado Democrático de Direito.


1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no código civil. São Paulo: Saraiva, 2010

2 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Ed. RT, 2004.

3 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista de Processo. v. 113. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

4 Carneiro da Frada, Manuel Antonio de Castro Portugal. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004.

5 BRASIL. STJ. Agravo Regimental no REsp 1.293.365-RJ, relatoria do Min. João Otávio Noronha, julgado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 06.10.2015

6 BRASIL. STJ. Agravo Interno no Agravo no REsp 1.322.139-RJ, relatoria do Min. Raul Araújo, julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 15.08.2022.

7 MENEZES CORDEIRO, Antonio. Da modernização do direito civilAspectos gerais. Coimbra, Almedina, 2004. t. I, pp. 111-112

8 Como lembra SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers. An introduction to your future. 2ª ed. Oxford: OUP, 2017. p 95, “better access to justice should embrace improvements not just to dispute resolution but also to what I call dispute containment, dispute avoidance, and legal health promotion”.

9 ALPA, Guido. La responsabilità civile. Torino: Utet Giuridica, 2018, p. 41-67.

10 Ver por todos BENJAMIN, Antônio Herman ; BESSA, Leonardo Roscoe; MARQUES, Cláudia Lima; e outros. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2016. pág. 163.

11 MARQUES, Claudia Lima. A proteção do consumidor de produtos e serviços estrangeiros no Brasil: primeiras observações sobre os contratos à distância no comércio eletrônico. RDC. v. 21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p .39-64.

12 Veja o nosso: MARTINS, Fernando Rodrigues. www.migalhas.com.br/depeso/ilicitos-constitucionais-e-responsabilidade-civil, acessado em 08-03-2023.

13 SILVA, Jorge Pereira da. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estruturas das relações jusfundamentais triangulares. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015.

14 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

15 MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito pela UFRGS. Professor nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da PUC-RS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional e do BRASILCON. Procurador da Fazenda Nacional em Porto Alegre (RS).

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