Artigo 385 do CPP: resquício do sistema inquisitório
2 de março de 2024, 11h27
O artigo 385 do Código de Processo Penal, muito discutido após o protocolo — digno de muita admiração e respeito — de ADPF pela Anacrim [1], não fora de fato recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Acompanhado dos argumentos de grandes processualistas, este texto, em razão das investidas em sentido contrário, é um reforço dessa linha de pensamento.
Prevê o referido dispositivo legal que “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”.
De início, faz-se necessário citar a vigência do artigo 3º-A do CPP após o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 6.298, 6.300 e 6.305. Portanto, fora reconhecido que no processo penal brasileiro vigora o sistema acusatório, no qual são vedadas as iniciativas do juiz.
Doutrina e jurisprudência
Contudo, nos alerta Nereu Giacomolli [2] sobre a ideologia da busca da verdade material no processo penal como sendo uma marca inquisitorial remanescente, citando como exemplo, dentre outros dispositivos, o artigo 385 do CPP. Ora, utilizando da argumentação da Anacrim em sua petição, “se é acusatório, não pode haver resquícios inquisitórios”.
Sintetizando o exposto, “ou adotamos o sistema acusatório com as implicações e consequências que lhe são inerentes, ou fingimos que nosso sistema é acusatório e adotamos o inquisitivo com roupa de acusatório” [3]. Brilhante e justa colocação do mestre Paulo Rangel acerca da aplicação do artigo 385 do CPP.
Aury Lopes Jr. [4] nos ensina que o pedido de absolvição do MP “equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém”. Dessa forma, se o juiz condena o acusado sem que haja pedido do Ministério Público, exerce o poder punitivo sem que haja a requerida invocação. É nítida a desconformidade de tal iniciativa com a estrutura processual acusatória.
Na mesma direção o julgamento do AgRg no AREsp nº 1.940.726/RO pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça [5], no qual fora decido que, “tendo o Ministério Público, titular da ação penal pública, pedido a absolvição do réu, não cabe ao juízo a quo julgar procedente a acusação, sob pena de violação do princípio acusatório, previsto no art. 3º-A do CPP, que impõe estrita separação entre as funções de acusar e julgar”. Isso com base na redação do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal.
A dúvida que fica é a mesma proposta pelo professor Lenio Streck [6], um dos subscritores da ADPF proposta pela Anacrim, quando questiona: “se o próprio STF já reconheceu que o sistema é acusatório, qual é o sentido de um dispositivo inquisitorial que vem das profundezas do Estado Novo da década de 40 do século passado?”. Não há sentido.
Violações e a questão das agravantes
Não bastasse a violação do sistema acusatório, há severa lesão ao contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República). Isso porque, sustenta Geraldo Prado [7], como o juiz “não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição”.
Indo adiante, no que se refere à parte final do dispositivo, que traz a possibilidade de reconhecimento de agravantes não narradas e imputadas pelo Ministério Público na denúncia, este segue inaplicável.
Em soma aos argumentos salientados no início do texto – sobre o sistema acusatório –, conclui-se que um decisum no qual se aplica tal comando normativo “é extra petita, pois se descola da imputação para ir – de ofício – além da acusação, violando, numa só tacada, as regras da correlação, do contraditório e do sistema acusatório” [8].
O Ministério Público, por força do artigo 41 do CPP, deverá descrever todas as circunstâncias do crime quando do oferecimento da denúncia. Dentre tais circunstâncias, as agravantes. Se não o fez, não será oportunizado à defesa técnica o contraditório no que tange as agravantes no decorrer da instrução criminal. No caso de reconhecimento destas pelo juízo, haverá iniciativa que lesiona, numa tacada só, tudo o que fora exposto por Aury Lopes no parágrafo anterior.
Conclusão
Infere-se deste curto apanhado de fundamentos, portanto, que é inconstitucional o artigo 385 do CPP. É um resquício remanescente do sistema inquisitório. Não pode o juiz condenar ou reconhecer agravantes quando o Ministério Público não faz requerimento nesse sentido, sob pena de violação do artigo 3º-A do CPP (sistema acusatório) e de diversos outros princípios norteadores do processo penal.
O questionamento que nos resta é se o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 1.022, dará a resposta certa assim como fez no paradigmático julgamento das ADCs 43, 44 e 54. O tempo nos dirá.
[1] Notícia original disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-29/stf-julgara-se-juiz-pode-condenar-mesmo-apos-pedido-de-absolvicao-do-mp/.
[2] GIACOMOLLI, Nereu J. O Devido Processo Penal, 3ª edição. São Paulo: Grupo GEN, 2016, p. 85. E-book. ISBN 9788597008845. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597008845/. Acesso em: 24 fev. 2024.
[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Barueri [SP]: Grupo GEN, 2023, p. 80. E-book. ISBN 9786559773060. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559773060/. Acesso em: 24 fev. 2024.
[4] JR., Aury L. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2023p. 426. E-book. ISBN 9786553626355. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553626355/. Acesso em: 24 fev. 2024.
[5] Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp nº 1.940.726/RO, 5ª Turma, Rel. do Min. Jesuíno Rissato, j. 06/09/2022, DJe de 04/10/2022.
[6] STRECK, Lênio. Juiz diz: se o MP requer absolvição, não há mais pretensão; e absolve réu. Consultor Jurídico, 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-22/juiz-diz-se-mp-requer-absolvicao-nao-ha-mais-pretensao-e-absolve-reu/.
[7] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. p. 116-117.
[8] JR., Aury L. Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2023, p. 426. E-book. ISBN 9786553626355. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553626355/. Acesso em: 24 fev. 2024.
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