Público & Pragmático

O papel do TCU nos acordos de leniência anticorrupção

Autor

3 de março de 2024, 8h00

Os acordos de leniência previstos na Lei Anticorrupção encontram-se, atualmente, em um dos estágios mais relevantes e complexos do seu percurso de amadurecimento institucional. Passados quase dez anos da primeira experiência prática [1] e após os influxos da “lava jato”, os acordos de leniência anticorrupção estão sendo colocados à prova como mecanismos capazes de trazer racionalidade, eficiência e segurança no combate à corrupção.

No capítulo mais atual desse enredo, desafia-se a possibilidade de revisão dos acordos de leniência, sobretudo daqueles celebrados no âmbito lavajatista.

O principal argumento é de que esses acordos teriam sido firmados em situação de extrema anormalidade político-jurídico-institucional ou, noutras palavras, em Estado de Coisas Inconstitucional, violando uma série de preceitos fundamentais.

A questão está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) que, na última semana, realizou audiência de conciliação entre os atores envolvidos, buscando a resolução da controvérsia pela via consensual. [2]

Neste artigo, todavia, pretende-se tangenciar um outro desafio que acompanha os acordos de leniência desde o seu princípio.

Refere-se ao desafio da coordenação interinstitucional, que se insurge como reflexo de um sistema marcado pela sobreposição de competências e pela multiplicidade de agências anticorrupção.

Nesse cenário, a presente abordagem se propõe a refletir, especificamente, o papel do Tribunal de Contas da União (TCU) na dinâmica dos acordos de leniência previstos na Lei nº 12.846/2013.

Atualidade do tema
A atualidade do tema é evidenciada pela aprovação recente da Instrução Normativa do TCU nº 95, de 21 de fevereiro de 2024, por meio da qual essa Corte de Contas disciplina a sua atuação no âmbito dos acordos de leniência anticorrupção a partir do Acordo de Cooperação Técnica (ACT) celebrado em 2020 com a Controladoria-Geral da União (CGU), a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), sob a coordenação do presidente do STF.

A regulamentação consolida uma mudança na forma como o próprio TCU encara suas competências em matéria de leniência anticorrupção.

Prestando deferência à articulação interinstitucional, a Instrução Normativa nº 95/2024 define, com mais clareza, o papel e os limites do TCU neste mecanismo consensual.

A medida traz segurança jurídica aos acordos de leniência, e pode servir até para a mitigação do risco de problemas como aqueles que têm levado à discussão sobre a possibilidade de repactuação desses acordos. Daí se vê, também, a relevância do tema.

Para compreender o impacto dessa regulamentação, deve-se ter em mente o fundamento utilizado pelo TCU para reivindicar o seu espaço na dinâmica dos acordos de leniência.

Isso porque, muito embora a Lei Federal nº 12.846/2013 não tenha lhe atribuído qualquer competência no microssistema anticorrupção, o próprio TCU arroga para si o papel de fiscal dos acordos de leniência, com base no artigo 71 da Constituição, que lhe confere a função de controle externo, e em dispositivos da Lei Federal nº 8.443/1992, a exemplo dos arts. 8º e 41, I, “b”.

O primeiro passo relevante nessa direção foi a Instrução Normativa do TCU nº 74, de 11 de fevereiro de 2015. Por meio deste regulamento, o TCU disciplinava como exerceria a fiscalização dos acordos de leniência, estabelecia, inclusive, a prerrogativa de

emitir pronunciamento conclusivo quanto à legalidade, legitimidade e economicidade dos atos praticados” (art. 1ª, § 1º), e ia além, ao caracterizar esse pronunciamento como como “condição necessária para a eficácia dos atos subsequentes” (art. 3).

No momento em que o acordo de leniência assumia relevância cada vez maior como instrumento de combate à corrupção, a Corte de Contas reivindicava protagonismo na implementação desse instituto.

E esse protagonismo ganhou legitimidade durante a vigência da Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015 até 29 de maio de 2016, por meio da qual foi acrescentado o § 14 ao artigo 16 da Lei nº 12.846/2013, que determinava o encaminhamento do acordo de leniência ao TCU logo após a sua assinatura, e que permitia a esta Corte a instauração de procedimento administrativo contra as empresas signatárias, quando houvesse discordância sobre o valor negociado a título de reparação por danos ao erário.

Primeiros passos
Na prática, todavia, os primeiros passos do TCU na fiscalização dos acordos de leniência foram marcados por excessos.

Como bem recordam Gilmar Mendes e Victor Fernandes [3], esta Corte chegou a determinar a alteração de acordos de leniência negociados [4], e até empreendeu investigações contra servidores da CGU e da AGU que não teriam compartilhado informações do acordo com a construtora Novonor — antes Odebrecht. [5]

Em um contexto ainda incipiente, a participação do TCU trouxe insegurança jurídica para os acordos de leniência, e provocou reações, como a ADI 5.294, por meio da qual pretendia-se declarar a inconstitucionalidade da Instrução Normativa nº 74/2015.

Diante disso, o próprio TCU revogou essa norma, substituindo-a pela Instrução Normativa nº 83, de 12 de dezembro de 2018.

Com este novo regulamento, a Corte de Contas manteve a prerrogativa de requerer informações e documentos relativos à negociação de acordos de leniência, e conservou o papel de fiscal desses acordos no âmbito do controle externo por ela exercido, mas a sua apreciação e pronunciamento deixaram de ser condições de eficácia para a avença.

De certa forma, trata-se de um movimento de autocontenção do TCU na matéria.

Contudo, no que diz respeito ao desafio da coordenação interinstitucional, o grande divisor de águas foi o ACT celebrado em 2020, entre CGU, AGU, TCU, MJ-SP, sob coordenação da Presidência do STF. [6]

Neste compromisso, foram estabelecidos princípios gerais aplicáveis ao sistema anticorrupção, além de princípios específicos a serem observados nos acordos de leniência anticorrupção.

Objetivando a sistematização, racionalização, cooperação e coordenação interinstitucional, os órgãos signatários também se comprometeram com a implementação de série de ações, de ordem sistêmica e operacional.

Detendo-se sobre o papel do TCU no contexto dos acordos de leniência, destaca-se a segunda ação operacional prevista no ACT, que delimita a atuação da Corte de Contas quando a negociação abranger fatos sujeitos à sua jurisdição. A ação estabelece que CGU e AGU devem compartilhar informações necessárias e suficientes para que o TCU estime os danos decorrentes desses fatos.

Além disso, o ACT dispõe que esses órgãos devem somar esforços para parametrizar a metodologia que servirá para apuração desses danos ao erário.

Mas não é só. A segunda ação operacional prevista no ACT também garantiu ao TCU a possibilidade de participar diretamente das tratativas prévias à celebração do acordo de leniência.

Essa participação ocorrerá quando CGU e AGU concluírem que o termo está em condições de ser assinado, momento em que o TCU será comunicado para se manifestar sobre a suficiência dos valores pactuados para ressarcimento ao erário.

O TCU pode anuir com o ajuste, declarando que o cumprimento do acordo ensejará a quitação dos fatos sob sua jurisdição, ou discordar dos valores, sem a quitação no ponto divergente.

Na última hipótese, CGU e AGU podem realizar negociação complementar para conformação dos valores, mas não estão impedidas de formalizar o acordo caso não haja consenso.

Portanto, a despeito de desempenhar um importante papel na operacionalização dos acordos de leniência, empregando a sua experiência e capacidade institucional para auxiliar na parametrização e na aferição dos danos causados ao erário em cada caso, o TCU deve, ao final, prestar deferência aos termos negociados pela CGU e pela AGU, resguardando-se à possibilidade de discutir eventual divergência quanto ao valores no âmbito da sua jurisdição.

No arranjo institucional desenhado no ACT, são a CGU e a AGU que detêm a palavra final sobre o conteúdo da avença.

Mais recentemente, com a promulgação da Instrução Normativa nº 95, de 21 de fevereiro de 2024, chega-se ao episódio mais recente deste debate. Ao revogar a regulamentação anterior, o TCU disciplinou como se dará a sua atuação no âmbito dos acordos de leniência, buscando garantir harmonia com as diretrizes e compromissos estabelecidos no ACT celebrado em 2020.

Entre os temas abordados, destacam-se os procedimentos de recebimento e envio de informações na fase de negociação do acordo, as limitações ao uso dessas informações antes da assinatura do acordo, a manifestação sobre a aderência — ou não — dos valores pactuados aos critérios de apuração do dano, a possibilidade de quitação do dano no TCU com o cumprimento do acordo, a alavancagem de ações de controle em relação a terceiros e sua responsabilização, a compensação de valores para evitar bis in idem e as medidas que podem ser tomadas pela Corte de Contas caso se constate o descumprimento do acordo.

“Alavancagem investigativa”
Sem a pretensão de empreender uma análise crítica sobre todos os dispositivos normativos, restringe-se ao teor do parágrafo único dos artigos 15 e 16, por ser digno de nota o compromisso assumido pelo TCU com a obrigação de não aplicar sanções contra empresas signatárias de acordos de leniência, mesmo quando discordar dos valores pactuados, e independentemente da avaliação desta Corte sobre o potencial de impulsionamento e ampliação das investigações sobre atos ilícitos a partir das informações e provas obtidas na leniência — a chamada “alavancagem investigativa”.

A previsão está em consonância com a quarta ação operacional estabelecida no ACT, que dispõe sobre a não aplicação de sanção de inidoneidade, suspensão ou proibição de contratar com a Administração Pública, por ilícitos incorporados no escopo de acordos de leniência.

Tal previsão também se harmoniza com a jurisprudência do STF, em especial após o julgamento dos Mandados de Segurança nºs 35.435 e 36.496. [7] Nesse ponto, a regulamentação oferece segurança às empresas que recorrem à leniência, tornando este instrumento mais atrativo e potencialmente mais efetivo no combate à corrupção.

Em uma leitura sistêmica, a regulamentação do tema define, com maior densidade normativa, o papel do TCU na dinâmica dos acordos de leniência anticorrupção e os limites para a sua atuação, abandonando uma perspectiva expansionista e reconhecendo a necessidade de privilegiar o diálogo e a coordenação interinstitucional.

A Instrução Normativa nº 95/2024 é, assim como o ACT celebrado em 2020, mais uma iniciativa capaz de trazer racionalidade, segurança jurídica e, com isso, promover incentivos na implementação de soluções consensuais no microssistema anticorrupção.

Além disso, detendo-se especificamente sobre a quantificação dos prejuízos ao erário que, em muitos casos, demanda elevada expertise técnica, a participação do TCU nas tratativas prévias à celebração dos acordos de leniência pode trazer legitimidade ao produto das negociações, por meio da aplicação da experiência e da capacidade institucional dessa Corte na parametrização e na aferição dos danos causados aos cofres públicos.

A hipótese ilustra como a atuação do TCU pode contribuir com o desenvolvimento dos acordos de leniência, servindo, inclusive, para evitar a fixação de obrigações desproporcionais que possam ensejar a busca pela repactuação desses acordos.

Se, em um primeiro momento, a expansão das competências do TCU em matéria de leniência anticorrupção merecesse ser vista com ressalvas, ante o descompasso com a estrutura definida na Lei nº 12.846/2013 e o cenário de insegurança jurídico provocado pela multiplicidade de agentes e pela ausência de coordenação entre eles, atualmente, por meio do diálogo interinstitucional, a legitimidade da Corte de Contas parece emergir como expressão da sua intensa dedicação técnica à temática do controle da Administração Pública.

Por conseguinte, é em torno desse fundamento de legitimidade que deve gravitar a atuação do TCU na matéria. A Instrução Normativa nº 95/2024 busca reproduzir esse entendimento, definindo limites mais claros e aprofundando os compromissos assumidos no ACT celebrado em 2020. Com a observância dessas diretrizes, acredita-se que o TCU pode desempenhar um relevante papel para o amadurecimento institucional dos acordos de leniência anticorrupção.

_________________________________

[1] Refere-se, aqui, ao acordo firmado entre o Ministério Público Federal, de um lado, e as empresas SOG Óleo e Gás (Setal) e as coligadas Setec Tecnologia S/A, Projetec, Tipuana, PEM Engenharia e Energex, todas do Grupo Toyo Setal, de outro, homologado em 1/12/2014.

[2] Refere-se à ADPF 1.051, sob relatoria pelo Ministro André Mendonça. A decisão mencionada está disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15364458275&ext=.pdf. Acesso em: 25/02/2024.

[3] MENDES, Gilmar F.; FERNANDES, Victor O. Acordos de leniência e regimes sancionadores múltiplos. Jota. Disponível em: https://www.jota.info/especiais/acordos-de-leniencia-e-regimes-sancionadores-multiplos-13042021. Acesso em: 25/2/2024.

[4] O fato é relatado por Rafaela Canetti: “em sessão sigilosa, o TCU teria determinado à CGU a alteração de termos de acordos de leniência então em negociação com empreiteiras. Conforme relatado, o TCU teria entendido pela existência de inconsistências entre as minutas e os requisitos legais para a celebração desses acordos, como o fato de as pessoas jurídicas terem sido procuradas pela CGU (e não o contrário), a limitação do tempo de cooperação ao prazo de dois anos e a ausência de verificação do critério de primazia” (CANETTI, Rafaela Coutinho. Acordo de leniência: fundamentos do instituto e os problemas de seu transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019, p. 266).

[5] O fato foi noticiado na imprensa: https://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/tcu-notifica-grace-mendonca-e-wagner-rosario-por-leniencia-da-odebrecht/. Contudo, o processo foi arquivado após a celebração do ACT entre as instituições: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/05/tcu-arquiva-processo-que-acusava-ministro-da-cgu-de-atrapalhar-fiscalizacao-do-acordo-de-leniencia-da-odebrecht.ghtml. Acesso em: 25/2/2024.

[6] Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/68730/5/ACT_%20assinado_vers%c3%a3o%20final.pdf. Acesso em: 25/2/2024.

[7] Nos MS nºs 35.435 e 36.496, a 2ª Turma do STF firmou o entendimento de que “a possibilidade de o TCU impor sanção de inidoneidade pelos mesmos fatos que deram ensejo à celebração de acordo de leniência com a CGU/AGU não é compatível com os princípios constitucionais da eficiência e da segurança jurídica” (Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/acordo-leniencia/arquivos/MS354351.pdf. Acesso em: 25/2/2024).

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!