Opinião

Reforma e atualização do Código Civil brasileiro e o novo Código Civil argentino

Autor

  • Luiz Edson Fachin

    é ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) alma mater UFPR (Universidade Federal do Paraná) e professor do programa de pós-graduação do Ceub (Centro Universitário de Brasília).

1 de março de 2024, 19h40

Reformas e atualizações são necessárias.

Os Código Civis oitocentistas não encontram mais lugar na contemporaneidade. A força da legalidade constitucional, as transformações sociais, a expansão das leis especiais, impõem uma mudança na compreensão sobre os objetivos da codificação civil.

Sob o ponto de vista normativo, o Código Civil se consolida como diploma legal destinado às normas gerais, sem prejuízo do disposto em lei especial.

As relações entre particulares se sujeitam, hierárquica e estruturalmente – e de modo direto –, à normatividade advinda da Constituição da República.

Mas o sentido referencial do Código Civil para a compreensão da disciplina normativa do Direito Privado remanesce, o que faz avultar o desafio de construção de uma codificação que esteja, sempre, em sintonia com as demandas de seu tempo.

Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência.

Daí porque reformas são, de tempos em tempos, necessárias.

O exemplo das extensas reformas pelas quais passaram diferentes livros do BGB nas últimas décadas revela a inevitabilidade desse desafio; de igual modo, assim o fez a recente reforma do Direito das Obrigações na França, entre 2016 e 2017.

Edson Fachin, ministro do STF

É nessa linha que se pode afirmar que a segurança jurídica que se espera de uma codificação é aquela que não se compraz da cristalização estática. Diversamente, exige o diálogo entre o passado e as demandas do presente, como um cavaleiro de duas épocas. Daí porque uma reforma precisa se pautar em princípios regentes, que emergem da ordem constitucional, da qual advém a normatividade do sistema.

O Código Civil do século 21 é aquele da sociedade democrática, dos direitos fundamentais, da proteção da pessoa humana, do desenvolvimento socioambiental e, portanto, da realização dos valores constitucionais; deve contemplar a liberdade em suas múltiplas expressões, tanto a garantia essencial dos espaços de liberdade negativa, quanto a chancela da liberdade positiva, na definição, pelas pessoas em relação, dos rumos de suas vidas, e a promoção da liberdade substancial, que assegura as condições efetivas para a realização de escolhas.

A reforma do Código Civil Brasileiro, cujos trabalhos até aqui realizados pelas subcomissões e pelos relatores gerais têm apontado para esse rumo, encontra no Código Civil e Comercial da Argentina exemplo de diploma legal coerente com essas demandas.

Destaca-se, de modo especial, o recente Código Civil e Comercial da Nação Argentina, capitaneado por Ricardo Luis Lorenzetti, a servir como inspiração para aperfeiçoamento do Direito Civil brasileiro.

O exemplo da codificação argentina é revelador. É preciso coerência sistemática com os princípios que estão no Código e ao conjunto mais amplo que decorre da Constituição e dos Tratados e Convenções Internacionais.

Exemplo disso é o artigo 1º do Código Civil:

“Artículo 1°. Fuentes y aplicación:

Los casos que este Código rige deben ser resueltos según las leyes que resulten aplicables, conforme con la Constitución Nacional y los tratados de derechos humanos en los que la República sea parte. (…)”

A norma se reporta à Constituição e às convenções internacionais, a demonstrar que a proteção dos direitos humanos se faz em perspectiva dotada de universalidade, a demandar, por parte do aplicador do Direito, o controle de convencionalidade das normas e de sua interpretação.

No Brasil, cabe lembrar, nos termos da própria Constituição, os tratados podem ser incorporados ao ordenamento jurídico com força jusfundamental, como ocorreu, por exemplo, com a Convenção de Nova York sobre as pessoas com deficiências.

A importância dos direitos humanos avulta, no Código Civil argentino, também com ênfase no artigo 2º, que define a interpretação das normas de acordo com os tratados internacionais.

A proteção à pessoa humana é fio condutor que perpassou as preocupações do legislador. Nessa linha, ao tratar dos direitos da personalidade, o CC argentino, no artigo 51, trata da inviolabilidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana está, ainda, plasmada na preocupação do Código Civil argentino quanto às diretivas antecipadas de saúde, também presente nos trabalhos realizados pela Comissão de Reforma do Código Civil brasileiro:

“Artículo 60. Directivas médicas anticipadas

La persona plenamente capaz puede anticipar directivas y conferir mandato respecto de su salud y en previsión de su propia incapacidad. (…)

Las directivas que impliquen desarrollar prácticas eutanásicas se tienen por no escritas. (…)”

O Código argentino também se preocupa com a proteção da pessoa frente às novas tecnologias, ao vedar alterações genéticas em embriões que se transmitam à descendência. Basta ver o respectivo artigo 57 sobre práticas proibidas.

A necessária disciplina jurídica das novas tecnologias, nas incertezas e na velocidade das transformações contemporâneas, deve se dar de modo que estas sirvam à dignidade da pessoa humana, mesmo no contexto do denominado transumanismo.

As fronteiras entre corpo e máquina tendem a se diluir, como se já constata, desde o uso de um marcapasso, de próteses, até chegar em implantes cerebrais, que podem demandar futuras respostas no campo dos chamados neurodireitos.

Nesse brave new world, dignidade, liberdade, igualdade e solidariedade são postas à prova, impondo ao Direito a construção de respostas que assegurem a instrumentalidade das tecnologias a serviço da pessoa humana.

O cuidado com a pessoa frente às novas tecnologias está presente no desenvolvimento do anteprojeto de reforma do CC brasileiro, no livro até aqui denominado de Direito Digital, cujas disposições, na verdade, transcendem a própria designação, para alcançar, de modo um modo geral, os desafios tecnológicos.

Também as situações jurídicas patrimoniais sofrem o influxo da complexidade e da volatilidade, a impor, para a preservação da pessoa, disciplina coerente com as necessidades daí derivadas.

A disciplina dos contratos, no Código Civil, precisa partir do reconhecimento de seu lugar como norma geral em uma sociedade complexa. O desafio não é de fácil enfrentamento.

O caráter geral da norma pressupõe um lugar ao qual se assentam elementos de unidade, que, sem embargo, não devem descurar, em tempo complexos, da pluralidade de demandas que advêm de diferentes relações sociais e econômicas, bem como, sobretudo, diferentes sujeitos.

Daí a importância de distinguir contratos paritários e simétricos daqueles que demandam proteção a contratantes vulneráveis.

Na Argentina, o Código Civil distingue relações de consumo e contratos civis. No ordenamento brasileiro, a existência de um Código de Defesa do Consumidor, decorrente (sempre cabe lembrar) de comando constitucional, visando a assegurar direito fundamental à proteção do consumidor, impõe ao Código Civil, em regra, a circunscrição ao espaço dos contratos civis e empresariais. O Código Civil se aplica às relações de consumo apenas em caráter subsidiário, sem prejuízo do diálogo das fontes, quando a regra civil for mais benéfica ao consumidor – sendo certo que a unidade do sistema é produzida pela centralidade da Constituição.

As vulnerabilidades não se restringem, porém, às relações de consumo, implicando o necessário exame em concreto, a afastar a presunção de simetria, como um dos elementos de realização de sua função social.

A função social é também vetor fundamental. A complexidade das relações contratuais impõe o reconhecimento de que a dimensão funcional dos contratos atende às peculiaridades dos sujeitos, do objeto e da natureza dos contratos.

A função social interna se vincula a direitos fundamentais e liberdades das partes; a função social externa se define pelo atendimento aos interesses coletivos, sob a égide da existência digna e da solidariedade; ambas adquirem sentido em concreto a partir das características de cada relação contratual.

Quanto aos interesses coletivos, destaca-se, de modo especial, a urgência da proteção ao meio-ambiente.

O Código Civil da Argentina contém norma geral, em seu artigo 14, a vedar o exercício abusivo de direitos, assim qualificado como aquele que afeta o meio-ambiente ou aos direitos de natureza coletiva:

“La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos individuales cuando pueda afectar al ambiente y a los derechos de incidencia colectiva en general.”

É um bom caminho a seguir.

A multifuncionalidade da responsabilidade civil é mais um imperativo.

Em especial, destaca-se a função preventiva da responsabilidade civil. A reposta reparatória não é bastante para assegurar os direitos da cidadania – destinatários do Código Civil – a não sofrer danos.

Não é a responsabilidade civil apenas a resposta ao ilícito lesivo perpetrado: trata-se de instituto destinado a assegurar também a higidez dos direitos, evitando, o quanto possível, a sua violação.

Nessa linha, exemplar é o comando do artigo 1.710 do Código Civil e Comercial da Nação Argentina sobre a prevenção dos danos.

A regra é exemplo de como o legislador contemporâneo pode oferecer à responsabilidade civil um papel de efetivo instrumento de prevenção de danos.

Institui, ainda, o dever de ressarcimento por despesas preventivas. Trata-se de regra que dá efetividade à prevenção: se aquele que deveria evitar o dano não o faz, quem pratica as medidas necessárias em seu lugar tem o direito de ser reembolsado.

O Código Civil e Comercial argentino vai além, prevendo regra sobre a ação preventiva – que guarda relação com a ação inibitória prevista na lei processual brasileira.

A previsão de uma tutela inibitória no âmbito da responsabilidade civil é coerente com esse instituto do Direito Civil.

Também quanto às titularidades é cabível a atualização que contemple o século 21.

Novas formas de pertencimento já foram, em alterações legislativas, incorporadas ao Código Civil brasileiro.

Também aqui a funcionalização social tem espaço relevante.

No Código Civil argentino, ainda que não sob a égide do expresso conceito de função social, o já citado artigo 14 assegura a harmonização entre os interesses individuais do proprietário e os interesses coletivos.

No Brasil, destaca-se, no anteprojeto em construção, proposta na qual se deixa claro que a propriedade obriga, em termos claramente inspirados na Constituição alemã. Com efeito, função social não é mero limite. A função é contributo, é prestação, que se dirige ao coletivo, mas, também, à realização do bem-estar de proprietários e trabalhadores, assegurando o acesso indispensável à liberdade substancial.

Um Código Civil que contemple a liberdade é, necessariamente, um Código que se ocupa também com as condições concretas para o seu exercício, permitindo, por meio do acesso, a realização de escolhas valorosas (na expressão de Amartya Sen).

O tratamento jurídico das relações de família também deve se ordenar pelos imperativos que derivam da complexidade das relações familiares.

A pluralidade familiar merece efetiva concretização da legislação infraconstitucional, em linha com aquilo que se consolidou na jurisprudência do STF, em sede de controle de constitucionalidade.

A igual dignidade entre as entidades familiares é imperativo constitucional. Igualdade que deve importar, porém, respeito à diferença, sobretudo quanto à abertura a escolhas que possam afastar efeitos de normas dispositivas.

Um Direito de Família plural é o amálgama entre igualdade, liberdade, e respeito às identidades pessoais. Não há família de segunda classe.

Paternidade e maternidade socioafetivas recolhem a complexidade da vida em relação, a chancelar os vínculos parentais.

O respeito ao melhor interesse dos filhos também é comando constitucional a ser contemplado pela legislação civil.

O Código Civil da Argentina, no artigo 651, traz importante exemplo a esse respeito, ao definir que o cuidado pessoal dos filhos deve ser compartilhado, sendo excepcional a atribuição desse cuidado sob a forma unilateral.

A igualdade de gêneros passa por assegurar a ambos os genitores responsabilidades perante os filhos. É a autoridade parental compartilhada (ou cuidado compartilhado, como prefere o Código Civil argentino).

São, pois, alguns exemplos com os quais se ilustram os vetores principiológicos que informam a codificação civil argentina, e que, em frutífero diálogo, também perpassam os trabalhos de construção do anteprojeto de reforma do Código Civil brasileiro.

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