Clima no Judiciário

Precificação do carbono pode ajudar a evitar tragédias como a do Rio Grande do Sul, afirma juiz

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24 de maio de 2024, 8h52

Há dez anos, pouco se falava em litigância climática no Brasil. O tema, no entanto, já era frequente em pesquisas no exterior, em universidades como Columbia e Harvard, ambas nos Estados Unidos— e também nos cadernos do juiz federal Gabriel Wedy, que hoje integra a 2ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul.

O juiz federal Gabriel Wedy

Em tempos recentes, porém, a matéria foi alçada ao patamar de prioridade por causa do aumento da frequência dos eventos climáticos extremos, consequências do aumento de temperatura provocado pelo aquecimento global. E as tendências apontadas pelos estudos do magistrado, por uma triste coincidência, materializaram-se em sua terra natal, que hoje é palco do maior desastre climático já visto no país.

“A legislação do Brasil na esfera ambiental já foi muito vanguardista, mas sofreu uma espécie de desmantelamento no governo anterior. Ou seja, de um modo ou de outro, passou a boiada”, afirmou Wedy em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Em âmbito estadual, na gestão do governador Eduardo Leite (PSDB), a desidratação de leis ambientais ocorreu a partir de um projeto do próprio governo, de 2020. Segundo o magistrado, foram privilegiadas questões como a propriedade privada e a livre iniciativa, em detrimento de direitos fundamentais e do equilíbrio ambiental.

Falta de regulação da emissão de carbono

Para o juiz, essa fragilidade das normas e a falta de regulação de determinados setores, como o de emissão de carbono, corroboram para o momento pelo qual passa o estado gaúcho.

“O mercado de carbono deve ser estruturado imediatamente para a compra e venda de licenças de emissão, assim como a tributação do carbono. (…) É importante colocar preço no carbono. As externalidades negativas não estão sendo computadas porque não são precificadas.”

Do ponto de vista da responsabilização, a situação é paradoxal. Empresas poluentes podem ser cobradas pelos governos estaduais e pelas prefeituras, mas o Estado também é responsável. Dessa maneira, pela perspectiva climática, o poder público pode tanto acionar as empresas para ser reparado quanto ser acionado pelos cidadãos para reparar.

“Municípios e o estado do Rio Grande do Sul, em tese, poderão ser réus, mas também poderão ser autores de ações contra as empresas”, disse o juiz, que defende a responsabilização dos países que mais poluem (China e Estados Unidos) pelas tragédias climáticas no Brasil. “Municípios, estados e União devem arcar sozinhos com os custos deste desastre?”, questionou.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur – Qual é o papel do Poder Judiciário nas discussões sobre tragédias decorrentes de mudanças climáticas, como a do Rio Grande do Sul?
Gabriel Wedy – A litigância climática não vem para resolver os problemas climáticos que estão aí. Ela não é uma poção mágica ou algo do gênero. Mas ela tem um caráter subsidiário. Existem cidades que estão processando as indústrias dos combustíveis fósseis, como Paris e Nova York. A cidade de Hoboken (nos Estados Unidos) está processando empresas de petróleo pedindo indenizações em função do furacão Sandy. Quando as políticas públicas falham e as próprias atividades das empresas emissoras não são reguladas adequadamente, e estas passam a emitir gases de efeito estufa e poluir o meio ambiente, o Judiciário pode, sim, vir a decidir causas que responsabilizem esses potenciais réus, sejam entes estatais ou privados, nas esferas civil e criminal, independentemente da responsabilidade administrativa. Isso está previsto no artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição. Mas existe um debate. Será que os municípios, o estado e a União devem arcar sozinhos com os custos desse desastre? Porque se os maiores emissores são China e Estados Unidos, e quem está causando o aquecimento global, de fato, é a indústria do petróleo e do carvão, por que eles não devem ser responsabilizados?

ConJur – O arcabouço legal do Brasil em matéria ambiental tem dado conta de tratar desses problemas?
Gabriel Wedy –
A legislação do Brasil na esfera ambiental já foi muito vanguardista, mas sofreu uma espécie de desmantelamento no governo anterior. Ou seja, de um modo ou de outro, passou a boiada. As iniciativas para desmantelar o arcabouço de tutela ambiental no aspecto legislativo foram freadas de algum modo em ações no Supremo Tribunal Federal. Na realidade, a legislação brasileira precisa evoluir, inclusive criando dois mecanismos que são os principais instrumentos jurídicos para combater o aquecimento global: a tributação sobre o carbono e um mercado de cap and trade (mercado de emissões) no Brasil. É importante colocar preço no carbono. As externalidades negativas não estão sendo computadas porque não são precificadas. Nós não temos uma tributação sobre o carbono e também não temos um mercado de funcionamento adequado.

ConJur – A falta de precificação do carbono está influenciando nas tragédias climáticas?
Gabriel Wedy – Não só a precificação, mas a tributação. Essas duas medidas devem ser adotadas de modo concomitante, porque ambas têm vantagens e desvantagens. Então o correto, pelo Direito Climático, é que elas sejam implementadas conjuntamente. O mercado de carbono deve ser estruturado imediatamente para a compra e venda de licenças de emissão, assim como a sua tributação. A vantagem desse imposto do carbono é que pega todos os maiores emissores.

ConJur – Quais serão as principais consequências jurídicas da catástrofe do Rio Grande do Sul?
Gabriel Wedy – Se o estado e o município não observam os princípios da precaução e da prevenção, está presente o dever de indenizar. Pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a responsabilidade é objetiva pelo risco integral, não se admitindo nem mesmo excludentes da responsabilidade civil, como o caso fortuito e o caso de força maior. Logo, para os lesados por essa catástrofe climática, basta que provem o dano e o nexo de causalidade para que o dever de indenizar esteja demonstrado. E, em relação à litigância climática, os municípios e o estado poderão ser réus, mas também poderão ser autores, em tese, de ações contra empresas, inclusive contra companhias de petróleo e carvão para reparação desses danos. A verificação da responsabilidade de Estados Unidos e China pela violação de direitos humanos é algo que pode acontecer. Há um mês, para citar um exemplo, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou a Suíça por falta de ambição climática.

ConJur – O senhor falou da União e dos municípios, mas também há a responsabilidade, do ponto de vista da legislação ambiental, dos estados?
Gabriel Wedy – No caso do Rio Grande do Sul, especificamente, a nossa legislação (Código Ambiental) foi aprovada recentemente de modo absolutamente desidratado. Parece-me que prevaleceram valores constitucionais como a propriedade privada e a livre iniciativa. Esses valores prevaleceram em detrimento de direitos fundamentais como a vida, a saúde e o meio ambiente equilibrado.

ConJur – A magistratura brasileira está preparada para lidar com a litigância climática?
Gabriel Wedy – O Direito Climático não estava até pouco tempo atrás sendo cobrado nos concursos. Somente agora estão surgindo alguns cursos de atualização. Até pouco tempo, cinco anos atrás, eu estava falando sozinho de Direito Climático no Brasil. Hoje, há dezenas de pessoas que já estão falando, o que é muito bom. (Esse movimento) Está despertando essa consciência, mas certamente a magistratura, não apenas a magistratura, mas todos os operadores do Direito, na realidade, têm de se preparar para trabalhar com esse tema. Mas a verdade é que só há um curso de Direito Climático no Brasil, um livro de Direito Climático. É algo novo, mas essa matéria deveria ser obrigatória para os concursos de todas carreiras de Estado, e igualmente para a atualização técnico-cientifica destas, entre as quais, em especial, a carreira da magistratura.

ConJur – O senhor acredita que os crimes e as tragédias ambientais recentes, como nos casos de Brumadinho (MG) e Mariana (MG), instaram o Judiciário a se posicionar a respeito da responsabilização pelos eventos?
Gabriel Wedy – O que acontece é que o Executivo nas três esferas, federal, estadual e municipal, em geral, deixa de adotar medidas de proteção ao meio ambiente, deixa de regular a poluição, porque isso afeta o interesse dos eleitores. Até pouco tempo atrás, Direito Ambiental era algo que não dava voto. O Judiciário acabou suprindo essa lacuna porque ninguém queria regular a situação ambiental, fosse o Poder Legislativo ou o Executivo, adotando uma fiscalização mais efetiva. O Judiciário acabou tendo de decidir sobre essas ações de litígios climáticos em virtude das omissões dos Poderes Legislativo e Executivo. Nos casos citados, os réus deveriam ser responsabilizados. As empresas, as mineradoras que exploravam Mariana e Brumadinho, deveriam ser responsabilizadas, assim como os entes estatais.

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