Opinião

Doença mental e processo administrativo disciplinar

Autor

  • Reinaldo Couto

    é professor auxiliar de Direito Administrativo da Universidade do Estado da Bahia mestre em Direito pela UFBA e autor do livro "Curso de Direito Administrativo 4ª ed. Saraiva: 2020".

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24 de maio de 2024, 6h04

O modelo de produção industrial, muito bem criticado por Charlie Chaplin, no filme Tempos Modernos (1936), legou-nos desenvolvimento, possibilitando que as necessidades humanas de grande escala, em virtude do crescimento da população e do incremento da complexidade das relações econômicas, fossem atendidas.

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Não obstante, tem deixado sequelas que ultrapassam o corpo social, por exemplo: condições mais extenuantes de trabalho para atingir mais profundamente uma fronteira que, no século passado, não estava tão em evidência, a psiquê humana.

As imposições de uma época em que o resultado sobrepõe-se ao indivíduo e na qual a produtividade é sacralizada geram, inevitavelmente, adoecimento mental, sendo que, no exercício das funções públicas, não é diferente.

A evolução do Estado burocrático para o Estado gerencial e a falta de atenção ao ser humano que desempenha atividades para possibilitar esse aprimoramento institucional têm sido devastadoras para a saúde mental dos agentes públicos.

Em virtude do desconhecimento sobre questões relacionadas ao adoecimento, vê-se a utilização indevida do processo administrativo disciplinar para situações de clara patologia mental.

Por isso, faz-se necessária a presente análise, a fim de deixar bem claro o rito que deve ser utilizado nos casos de suposto ilícito administrativo-funcional praticado sob efeito de doenças da alma dos agentes públicos.

Do indício de patologia mental

Considerando o processo administrativo disciplinar, nota-se que há dois momentos importantes para a averiguação de patologia física ou mental do indiciado. São eles:

  • a) ao tempo da tramitação do processo administrativo disciplinar; e
  • b) ao tempo da ação ou omissão considerada ilícito administrativo-funcional.

No primeiro caso, item ‘a’ acima, aplica-se o artigo abaixo da Lei n. 8.112/90:

Art. 160. Quando houver dúvida sobre a sanidade mental do acusado, a comissão proporá à autoridade competente que ele seja submetido a exame por junta médica oficial, da qual participe pelo menos um médico psiquiatra.

Parágrafo único. O incidente de sanidade mental será processado em auto apartado e apenso ao processo principal, após a expedição do laudo pericial.

A mera dúvida deve ensejar a sugestão, pela comissão de PAD (processo administrativo disciplinar), à autoridade competente de sujeição do indiciado a exame por junta médica oficial, da qual participe pelo menos um médico psiquiatra.

Spacca

Observe-se, portanto, que a perícia realizada no incidente tem objetivo diferente da perícia realizada para a aposentação por invalidez.

No segundo caso, item ‘b’ acima, se a dúvida sobre a sanidade mental do indiciado relacionar-se apenas, e tão somente, à época da ação ou omissão ilícita, a comissão deve pedir ao órgão de recursos humanos para produzir perícia que ensejará, caso constatada patologia incapacitante, a consequência do seguinte artigo da Lei 8.112/90 e o arquivamento do PAD:

Art. 186. O servidor será aposentado: (vide art. 40 da Constituição)

I – por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificada em lei, e proporcionais nos demais casos;

A comissão de PAD não pode desconsiderar indício de patologia mental e deixar de sugerir à autoridade a instauração de incidente de sanidade mental, nem o órgão de recursos humanos pode deixar de realizar perícia para averiguar se, à época da ação ou da omissão, o indiciado estava no gozo das suas faculdades mentais.

Da realização da perícia do incidente de sanidade mental, relativa ao processo administrativo disciplinar, e da perícia superveniente relativa à época da ação ou da omissão para a aposentação, podem surgir as seguintes consequências:

  • 1) À época da ação ou omissão, o acusado estava hígido e, à época do processo também, podendo exercer as atribuições do cargo e a sua defesa processual, o processo continua;
  • 2) À época da ação ou omissão, o acusado sofria patologia mental e, à época do processo, continua sofrendo, impõe-se a aposentação por invalidez e o arquivamento do processo;
  • 3) À época da ação ou omissão, o acusado sofria patologia mental e, à época do processo, não sofre mais, impõe-se o arquivamento do processo sem aposentação;
  • 4) À época da ação ou omissão, o acusado estava hígido e, à época do processo, sofre patologia mental, o processo continua com a possibilidade, à critério do órgão de recursos humanos, de indicação de licença para tratamento de saúde do artigo 202 da Lei nº 8.11/90 ou aposentação por invalidez com a possibilidade de, ao fim do processo, haver, se o fato for punível com demissão, cassação de aposentadoria e, caso seja revel, designação de defensor dativo (§2° do artigo 164 da Lei nº 8.112/90).

A não sugestão de instauração de incidente de sanidade mental e a não realização de perícia ensejam a nulidade da instrução do processo administrativo disciplinar, como já observou Maria Christina Seabra Dutra:

“É realmente tarefa difícil examinar e julgar situações em que se envolvem os servidores, o que requer ir muito além do exame dos fatos, incluindo todas as circunstâncias que envolveram os acontecimentos, para propor, a final, uma solução justa para a execução da autoridade competente.

(…) o que reputo mais dolorosos de terem sido apreciados foram os casos de servidores que cometeram infrações em surtos de doenças mentais, e os casos de servidores alcoólicos e drogaditos, estes dois últimos em quantidade considerável, que foram enviados para julgamento, na maioria dos casos pelo desespero das próprias chefias, que já não tinham meios de contornar as situações que vinham ocorrendo. Tais fatos, sempre aliados à falta de apoio dos órgãos de Previdência, que chegam ao cúmulo de recomendar a demissão destes doentes, caso seja proposta a sua aposentadoria provisória por invalidez.

A perícia médica, nesses casos, será a medida indispensável para formação do seguro juízo a propósito das condições de saúde do servidor sobre cuja capacidade haja fundada dúvida. Afinal, doenças comprovam-se através de exames médicos, sendo necessários laudos que se pronunciem sobre as mesmas. Por conseguinte, somente após a indispensável inspeção médica que instrua procedimento próprio é que se tornará possível aferir se o servidor deve voltar ao serviço, se é preciso lhe outorgar licença para tratamento de saúde ou, em determinadas circunstâncias, deferir-lhe a aposentadoria, em razão de incapacidade superveniente para o exercício de competência pública que impede se ultime punição disciplinar. Segundo Zanobini, a aposentadoria, se embasada na inabilitação a continuar no serviço, deve necessariamente ser acompanhada da necessária documentação sanitária.”

No Parecer nº 13.076, aprovado pelo governador do Rio de Janeiro em 31.07.2001, a Procuradoria daquele Estado já assentara:

PROCESSO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR.

1. AGENTE PENITENCIÁRIO PORTADOR DE TRANSTORNO DE PERSONALIDADE PARANÓIDE E TRANSTORNO PSICÓTICO AGUDO TRANSITÓRIO QUE COMETE AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS CAPITULADAS NO ART. 191, INCS. III E IX, DA LEI COMPLEMENTAR N.º 10.098/94, SENDO, À ÉPOCA, PARCIALMENTE CAPAZ DE ENTENDER O CARÁTER CRIMINOSO DO FATO MAS INCAPAZ DE DETERMINAR-SE DE ACORDO COM ESTE ENTENDIMENTO, NÃO PODE SER PUNIDO ADMINISTRATIVAMENTE POR INIMPUTÁVEL.

2. ARQUIVAMENTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR COM SUGESTÃO DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ PARA O SERVIÇO PÚBLICO EM GERAL.”

Raquel Carvalho afirma que:

“Denota-se que a própria Administração Pública, bem como o Judiciário, no controle de alguns atos disciplinares, tem atentado para a presença de patologias como transtornos psicóticos agudos e transitórios, personalidade paranoica e outras doenças mentais que impedem a responsabilização do agente. Afinal, se o mesmo tornou-se inimputável, impõe-se o dever de absolvição no tocante a eventuais infrações administrativas praticadas quando já presente o quadro de doença mental. Se o servidor já não possuía mais a capacidade de entendimento e determinação, não compreendendo os seus atos e as respectivas consequências em sua inteireza, inviável demiti-lo; afigura-se inadmissível punir alguém que, doente, requer tratamento e acompanhamento de diversos profissionais de saúde.

(…)

Registre-se a especificidade de, na esfera disciplinar, ser interesse do Poder Público reunir os dados fáticos que permitam definir sobre a viabilidade, ou não, da punição do servidor, incluindo-se a sanidade mental caracterizadora da sua capacidade. Não se trata somente de “interesse da defesa” reunir elementos técnicos sobre a eventual doença mental de quem teria praticado infração disciplinar, mas consubstancia ônus da própria Administração, em observância à verdade material, aferir autoria, veracidade da infração e aspectos essenciais como a capacidade do acusado.

Isso não significa, entretanto, que é possível obrigar o servidor público a se submeter ao exame pericial. O que se exige é que o Poder Público instaure o incidente devido e enseje a realização da perícia médica cuja finalidade é avaliar a sanidade mental do acusado à época da infração. Cumprido esse dever pela Administração Pública, caso o servidor não se submeta ao exame e mantenha sua recusa, cabe à comissão processante avaliar se há outros elementos probatórios suficientes que permitam a conclusão sobre a incapacidade por doença mental. Em caso negativo, a falta de evidências probatórias da incapacidade implica considerar o servidor mentalmente são, motivo por que se dará prosseguimento ao processo disciplinar. Em caso positivo (hipótese rara, visto que se trata de conclusão técnica dependente de perícia), considerar-se-á o servidor incapaz, excluindo-se a atribuição punitiva do Estado.”

Há também jurisprudência do STJ nesse sentido. Eis acórdão:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR PÚBLICO. ABANDONO DE CARGO MOTIVADO POR QUADRO DE DEPRESSÃO. ANIMUS ABANDONANDI. NÃO-CONFIGURAÇÃO.

I – É entendimento firmado no âmbito desta e. Corte que, para a tipificação da infração administrativa de abandono de cargo, punível com demissão, faz-se necessário investigar a intenção deliberada do servidor de abandonar o cargo.

II -Os problemas de saúde da recorrente (depressão) ocasionados pela traumática experiência de ter um membro familiar em quadro de dependência química, e as sucessivas licenças médicas concedidas, embora não comunicadas à Administração, afastam a presença do animus abandonandi. Recurso ordinário provido. (STJ – RMS: 21392 PR 2006/0026259-8, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 17/12/2007, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/03/2008)

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também enfrentou a questão. Eis acórdão:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – PROCEDIMENTO COMUM – DECLARAÇÃO DE NULIDADE – ATO ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – PROCESSO ADMINISTRATIVO – DEMISSÃO – TRANSTORNO DEPRESSIVO – FATO CONHECIDO DA ADMINISTRAÇÃO – PERÍCIA MÉDICA – SUPRESSÃO – OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA – ILEGALIDADE – OCORRÊNCIA – REINTEGRAÇÃO NO CARGO.

  1. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LIV e LV, CF).
  2. Pretensão à declaração de nulidade de ato administrativo consistente na aplicação de pena de demissão a servidor público e reintegração no cargo. Servidora demitida por inassiduidade habitual. Notícia no procedimento administrativo de que era portadora de doença depressiva e que realizava tratamento psiquiátrico. Fato de conhecimento da Administração. Quadro patológico que impunha a realização de perícia médica para apuração do real estado de saúde da servidora. Supressão da prova que atenta contra o devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Anulação da demissão e reintegração no cargo. Admissibilidade. Pedido procedente, em parte. Estabilidade gestacional não configurada. Horas extras não comprovadas. Dano moral indevido.

Sentença reformada.

Recurso provido.

(TJ-SP – AC: 10028478920168260068 SP 1002847-89.2016.8.26.0068, Relator: Décio Notarangeli, Data de Julgamento: 16/06/2021, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 16/06/2021)

Isto posto, em conclusão, tem-se que, se a comissão de PAD não oportunizar ao indiciado — ainda que ele não acompanhe o processo —, a possibilidade de demonstrar que, à época da ação ou da omissão ilícita, estava acometido de patologia mental, violará frontalmente o inciso LV do artigo 5º da CF/88, tornando a dilação probatória do processo administrativo disciplinar nula.

Autores

  • é professor auxiliar de Direito Administrativo da Universidade do Estado da Bahia, mestre em Direito pela UFBA e autor do livro "Curso de Direito Administrativo, 4ª ed., Saraiva: 2020".

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