Opinião

Neurodireitos: ciência e direitos individuais

Autor

  • Laura Affonso da Costa Levy

    é professora da pós-graduação da Universidade de Caxias do Sul (UCS) mestre em Bioética pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA) especialista em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade IDC e consultora em Biodireito.

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22 de maio de 2024, 10h20

A evolução da neurociência e, em paralelo, da neurotecnologia [1] é imparável. Nas próximas décadas, veremos dispositivos capazes de decodificar informações em nosso cérebro, amplificar nossos sentidos ou modificar nossas memórias.

Rawpixel/Freepik

Sendo assim, entram em jogo os limites éticos e, nesse sentido, os neurodireitos, que podem ser definidos como uma nova estrutura jurídica internacional de direitos humanos destinados especificamente a proteger o cérebro e sua atividade à medida que ocorram avanços em neurotecnologia [2], mostrando-se essenciais para proteger nossa privacidade mental.

A revista Exame publicou em abril de 2024 que a startup irlandesa Neurovalens, que há mais de dez anos produz tecnologias que visam a estimular eletricamente o sistema nervoso de forma não invasiva, acabou de ter mais um aparelho aprovado pela norte-americana Food and Drug Administration, agência responsável por proteger a saúde pública por meio de regulamentos.⁣

Agora, a startup tem dois aparelhos aprovados nos Estados Unidos: um para tratar o transtorno de ansiedade generalizado e um para insônia. O primeiro foi aprovado em abril de 2024, e o segundo, em outubro de 2023. A empresa também está trabalhando em dispositivos que miram tratar a obesidade e o transtorno de estresse pós-traumático.⁣

Os produtos são basicamente instrumentos que aplicam estímulos elétricos à pele atrás da orelha, logo atrás do nervo vestibular, como forma de estimular o hipotálamo e outras partes do tronco cerebral.⁣

No gigantesco universo da tecnologia aplicada à saúde, nos deparamos com progressos fascinantes, porém exigentes nas reflexões entre o limite da mente, da tecnologia e da ética.

Spacca

Não se olvida que os avanços neurotecnologicos são benéficos para a ciência e para qualidade de vida de milhares de pessoas, como os diagnósticos mais precisos, tratamentos de doenças até hoje consideradas incuráveis e até mesmo o restabelecimento de funções cerebrais perdidas. No entanto, esses avanços também levantam questões profundas sobre privacidade, autonomia, equidade no acesso, consentimento e manipulação da mente humana.

Eletrodos no cérebro

A estimulação cerebral profunda por meio de eletrodos implantados no cérebro é um avanço no campo da biotecnologia, que já foi utilizado com sucesso, por exemplo, para melhorar os sintomas de pessoas que sofrem da doença de Parkinson ou epilepsia. O projeto Neuralink, de Elon Musk, vai um passo além, pois visa a desenvolver uma interface bidirecional capaz não apenas de estimular partes do cérebro, mas também de receber e interpretar os sinais provenientes dele.

Uma vez estabelecida essa conexão, e através do uso da inteligência artificial, identificar emoções, controlar dispositivos ou induzir estados. Alguns cientistas acreditam que uma versão futura altamente sofisticada desse sistema ou de um sistema similar poderia ler os pensamentos de uma pessoa, acessar sua memória e até mesmo controlar ambos, o que se considera um perigo potencial para a humanidade.

A análise dessas informações, através de técnicas de big data e a capacidade de influenciar as pessoas, forneceria ferramentas para o denominado neuromarketing, induzindo à realização de certas compras. Mas também poderia ser aplicado em outras áreas mais sensíveis, como a política, afetando o sentido do voto e, portanto, violando direitos humanos básicos. Por essas e outras razões, os neurodireitos são uma necessidade.

Assim, o trabalho exige um desenvolvimento de um Código de Ética aos cientistas, somado ao reconhecimento internacional dos neurodireitos.

A plataforma NeuroRights Initiative estabelece os seguintes cinco neurodireitos:

  • i) identidade pessoal, na qual consiste em limitar qualquer neurotecnologia que possa alterar o sentido do eu das pessoas e impedir que a identidade pessoal se perca através da conexão a redes digitais externas;
  • ii) livre arbítrio, em que busca preservar a capacidade dos indivíduos de tomar decisões de forma livre e autônoma, ou seja, sem qualquer manipulação ou influência mediada pelas neurotecnologias;
  • iii) privacidade mental, que protege os indivíduos do uso de dados obtidos durante a medição de sua atividade cerebral sem seu consentimento e proíbe expressamente qualquer transação comercial com tais dados;
  • iv) acesso equitativo, busca regular a aplicação das neurotecnologias para melhorar as capacidades cerebrais, de modo que não estejam ao alcance de poucos gerando desigualdade na sociedade;
  • v) proteção contra os vieses, evitar que as pessoas sejam discriminadas por qualquer fator, como um pensamento que pode ser obtido através do uso da neurotecnologia.

Em escala mundial, a causa dos neurodireitos registra avanços. O Chile foi o primeiro país do mundo a aprovar uma emenda constitucional[3] para incluir os direitos digitais e a proteção da “integridade mental” perante o avanço das neurotecnologias. Muitos outros países estão adotando os ciberdireitos em um contexto de transformação digital, no intuito de colocar as pessoas no centro do processo.

A NeuroRights Initiative[4], por sua vez, propôs uma espécie de juramento hipocrático, semelhante ao feito pelos médicos de todo o mundo com o compromisso de proteger seus pacientes, mas aplicado às empresas. O objetivo é alcançar um compromisso para garantir que os avanços digitais não interfiram nos neurodireitos e ter como foco a aceitação de tal juramento pelas principais empresas tecnológicas mundiais, como Facebook ou Google, entre outras.

Recomendações internacionais

Em nível internacional, a OCDE[5] realizou uma série de declarações incluídas na Recomendação sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia[6], enquanto que a Comissão de Bioética do Conselho da Europa (DH — BIO) elaborou o “Guia para Debate Público sobre Direitos Humanos e Biomedicina[7]“,com foco em direitos humanos e novas tecnologias biomédicas.

No Brasil, em fevereiro de 2022 foi promulgada a Emenda Constitucional 115/2022, que acrescentou dispositivos à Constituição relacionados ao direito fundamental à proteção de dados pessoais, que passou a fazer parte do rol de direitos e garantias fundamentais.

No mesmo ano, a procuradora do Estado de São Paulo Camila Pintarelli levou a pauta para o Senado, tornando-se uma das principais vozes sobre neurodireitos no País. O projeto foi acolhido pelo senador Randolfe Rodrigues e, em junho de 2023, foi protocolado a proposta de emenda constitucional (PEC 29/23[8]) para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica.

A PEC 236/29 afirma que as neurotecnologias trazem “evoluções tecnológicas e científicas que vão além de a proteção de dados pessoais já inserida dentre os direitos fundamentais de nossa Constituição, pois dizem respeito à própria integridade psíquica e física do ser humano – são verdadeiros neurodireitos”.

Assim, não se olvida a magnitude que o impacto da tecnologia, em especial da inteligência artificial, tem sobre a saúde e sobre os direitos individuais, em especial ao direito de personalidade[9], que se caracteriza por ser a autoconcretização e atributos essenciais da pessoa humana.

Dito isto, é essencial garantir que o progresso científico esteja alinhado com os valores fundamentais da dignidade humana, privacidade, autonomia, e da justiça, somado aos preceitos bioéticos que atuam transversalmente à proteção do ser humano, que se caracteriza como ser unitário na sua totalidade.


[1] A neurotecnologia é definida como qualquer tecnologia que registra informações da atividade cerebral ou interfere na mesma.

[2] O conceito foi desenvolvido pela plataforma NeuroRights Initiative, liderada pela Universidade de Columbia em Nova York e impulsionada por uma comunidade internacional de neurocientistas.

[3] Em setembro de 2021, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a instituir a proteção legal aos neurodireitos, ou direitos do cérebro e da mente, com a aprovação da Lei nº 21.383. A alteração do artigo 19, inciso I, da Carta Fundamental chilena teve por objetivo proteger a integridade e a segurança em relação ao avanço das neurotecnologias, estabelecendo que o desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e mental. Íntegra do da Lei disponível em https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=242302 Acesso em 16.04.2024.

[4]Disponível em:  https://neurorightsfoundation.org/

[5] Disponível em: https://www.oecd.org/

[6] Disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/fr/instruments/oecd-legal-0449

[7] Disponível em: https://rm.coe.int/inf-2018-11-final-port-revista/16809ea3ce

[8] Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158095. A PEC 29 ainda aguarda indicação do relator da matéria pelo presidente da CCJ.

[9] Sobre o tema de direito geral da personalidade, Nelson Rosenvald conceitua como sendo situações jurídicas existenciais que tutelam os atributos essenciais do ser humano e o livre desenvolvimento da vida em relação e tutelam uma cláusula geral de tutela da pessoa humana. In: ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade Civil: Teoria Geral. Ed. Foco Jurídico, 2024.

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