Opinião

Precisamos falar sobre teratologia

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2 de maio de 2024, 13h17

Desde que começamos a lidar com o direito, ouvimos falar em teratologia, palavra que não aparece no vocabulário comum das pessoas, mas que entrou, já há muito tempo, para o jargão jurídico. Uma rápida pesquisa na página de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça com as palavras-chave teratologia ou teratológica nos apresenta dois enunciados de súmula (sendo que só em um deles, o 665, a palavra teratologia aparece), 6.513 acórdãos e impressionantes 180.868 decisões monocráticas.[1] No Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, pesquisa idêntica encontrou 69.856 pronunciamentos de 2ª instância, entre acórdãos e decisões monocráticas.[2]

Devo confessar, porém, que não obstante a frequência com que o termo aparece na prática judiciária, trata-se de fenômeno que sempre me incomodou. E este texto vem para apresentar as razões desse meu incômodo.

A primeira razão diz mesmo com a própria palavra. Na linguagem jurídica brasileira, chama-se teratológico aquilo que é uma monstruosidade, uma aberração jurídica. Assim, por exemplo, a ministra Assusete Magalhães, ao decidir monocraticamente o REsp 1983429 (em decisão publicada em 15/03/2022), expressamente afirmou que “decisão teratológica é a decisão monstruosa, que afronta gravemente a lei [, que] não se coaduna com as regras mais básica[s] do ordenamento jurídico”.

Sobre isso tive oportunidade de escrever em livro dedicado ao estudo do mandado de segurança, em trecho que agora tomo a liberdade de reproduzir:

“Essa denominação, a rigor, é equivocada. Teratologia, literalmente, é a “especialidade médica que se dedica ao estudo das anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete teratologia). Portanto, nem mesmo em sentido figurado o termo pode ser considerado bem empregado. É que terat(o) é antepositivo que tem origem no grego téras atos, a significar “coisa monstruosa, monstro” etc. e, portanto, “teratologia” seria a ciência que estuda as coisas monstruosas. Uma decisão “teratológica” seria, assim, uma decisão “científica”. Mais adequado, pois, seria qualificar a decisão monstruosa, aberrante, como “teratogênica” (já́ que teratogênico é o que causa teratogenia, formação e desenvolvimento no útero de anomalias que levam a malformações). O que há́ na decisão aberrante é uma teratogenia, e não uma teratologia. Mas seria muito difícil modificar esse vício de linguagem a essa altura…”.[3]

Superado esse ponto, porém, e admitido o uso (não sem algum inconformismo) da palavra teratologia, outros dois pontos surgem que devem ser examinados.

O primeiro deles está no fato de que a qualificação de um ato jurídico, especialmente quando se trata de uma decisão judicial, como teratológico leva a uma inadmissível confusão entre o Juízo de admissibilidade e o Juízo de mérito de diversos atos postulatórios.

Etapas de julgamento

Spacca

Como sabido, todo ato postulatório deve ser apreciado em duas etapas: uma, chamada Juízo de admissibilidade, é preliminar à outra, que se chama Juízo de mérito.[4] Examina-se, em primeiro lugar, se estão ou não preenchidos os requisitos necessários para que o conteúdo da postulação seja apreciado e, caso seja positivo o Juízo de admissibilidade, aí — e só aí — se passa ao exame do mérito, ou seja, da própria postulação deduzida.

Assim, por exemplo, não se pode examinar o pedido formulado em uma demanda se não estiverem preenchidos todos os pressupostos processuais e as condições da ação. O exame dessas questões prévias, portanto, se dá no Juízo de admissibilidade da demanda e, caso seja positivo o Juízo, aí se passa ao Juízo de mérito, quando será examinado o objeto principal do processo.

O mesmo fenômeno se dá com os recursos. Primeiro se examina, por exemplo, sua tempestividade, ou o interesse em recorrer. Positivo o juízo de admissibilidade, passa-se ao exame do mérito.

Quando a teratologia entra em campo, porém, a técnica é totalmente esquecida, especialmente quando se trata de mandado de segurança contra ato judicial. Veja-se, por exemplo, a seguinte ementa de acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO MANDADO DE SEGURANÇA. IMPETRAÇÃO CONTRA ATO JURISDICIONAL DE ÓRGÃO FRACIONÁRIO DO STJ. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE OU TERATOLOGIA. SUCEDÂNEO RECURSAL. INADMISSIBILIDADE. DESPROVIMENTO DO AGRAVO INTERNO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA.

I – A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça admite, em caráter excepcionalíssimo, o mandado de segurança para questionar decisão judicial quando se tratar de ato manifestamente ilegal ou que se apresente com fundamentação teratológica.

II – Contudo, no caso vertente, não há qualquer teratologia ou manifesta ilegalidade nas decisões proferidas por este Tribunal no processo originário. Tem-se que o objetivo do Impetrante nada mais é do utilizar a ação mandamental como sucedâneo recursal, haja vista que se trata de um claro inconformismo com o resultado prolatado por este Tribunal Superior. Nesse sentido: AgInt no MS n. 28.294/DF, relator Ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial, julgado em 21/3/2023, DJe de 24/3/2023; AgInt nos EDcl no MS n. 28.707/DF, relator Ministro Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 13/12/2022, DJe de 21/12/2022 e AgInt no MS n. 28.522/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 13/12/2022, DJe de 16/12/2022.

III – Agravo interno improvido.

(AgInt no MS n. 29.297/PR, relator Ministro Francisco Falcão, Corte Especial, julgado em 8/8/2023, DJe de 10/8/2023, sem grifos no original)

O que se vê dessa decisão é que o STJ admite o mandado de segurança contra ato judicial quando sua decisão é teratológica. Por isso, não havendo teratologia, o mandado de segurança é inadmissível (como está no primeiro parágrafo da ementa). Ora, mas se a existência de uma teratologia é requisito de admissibilidade do mandado de segurança contra ato judicial, então como distinguir o juízo de admissibilidade do juízo de mérito? Afinal, em um caso assim, ao se reconhecer a teratologia da decisão, estaria o Tribunal a julgar, desde logo, procedente o pedido (pois não haveria mesmo sentido em se julgar improcedente o pedido de desconstituição de uma decisão que contenha uma aberração jurídica). De outro lado, não havendo teratologia, o mandado de segurança seria inadmissível. Facilmente se percebe que não sobraria espaço para um julgamento de improcedência do pedido.

Não se trata de um caso isolado. Veja-se este outro:

AGRAVO INTERNO NO MANDADO DE SEGURANÇA. ATO JUDICIAL. EXCEPCIONALIDADE. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FERIADO LOCAL. CÓPIA DE PÁGINA DA INTERNET. DOCUMENTO IDÔNEO.

  1. O mandado de segurança contra ato judicial é medida excepcional, admissível somente nas hipóteses em que se verifica de plano decisão teratológica ou ilegal. Precedentes.
  2. Nos termos da atual jurisprudência do STJ, a juntada de página extraída da internet ou de cópia de calendário do Tribunal de origem é hábil a comprovar a existência de feriado local. Precedente.
  3. Agravo interno provido.

(AgInt no MS n. 28.538/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 19/4/2023, DJe de 27/4/2023, sem grifos no original)

Insista-se: se a teratologia é verificada no Juízo de admissibilidade, nada sobra para o Juízo de mérito, pois toda vez que o remédio contra a decisão teratológica for admitido, o pedido formulado terá de ser julgado procedente.

Segurança jurídica

A técnica processual não é uma mera filigrana. Ela é uma garantia de segurança jurídica. E por isso impõe-se enfrentar essa questão. A Lei nº 12.016/2009 (Lei do mandado de segurança), por exemplo, estabelece ser inadmissível mandado de segurança contra decisão judicial de que caiba recurso com efeito suspensivo (artigo 5º, II) ou já transitada em julgado (artigo 5º, III).[5]

No caso de decisão já transitada em julgado o problema da teratologia não se põe, já que é tranquilo o entendimento segundo o qual o mandado de segurança não é sucedâneo de ação rescisória. O problema está no caso de decisões judiciais não transitadas em julgado. Pois aqui é fundamental verificar se a decisão (seja ela teratológica ou não) é impugnável por recurso dotado de efeito suspensivo. Acontece que, no sistema processual civil, todas as decisões judiciais podem ser atacadas por recurso.[6] E todos os recursos, no direito processual civil brasileiro, podem ser dotados de efeito suspensivo. É que em alguns casos o efeito suspensivo se produz por determinação legal (como acontece, em regra, na apelação), hipóteses em que se fala em efeito suspensivo ope legis. Nos demais casos, porém, sempre será possível postular-se a atribuição de efeito suspensivo por decisão judicial (o efeito suspensivo ope iudicis). Ora, se sempre é possível, em tese, a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, jamais se deverá admitir mandado de segurança contra atos judiciais de natureza decisória.[7] Fosse o mandado de segurança admissível, aí sim seria o caso de se verificar se a decisão impugnada é ou não contrária ao ordenamento jurídico. Mas o Juízo de admissibilidade deve ser, invariavelmente, negativo, não se podendo chegar ao Juízo de mérito.

Nos casos em que a confusão entre o Juízo de admissibilidade e o Juízo de mérito não acontece (por exemplo, nos agravos de instrumento), e a teratologia da decisão é examinada apenas quando o remédio processual é reputado admissível, continuamos a ter problemas, porém. É que existe um “mito” segundo o qual certas decisões só devem ser reformadas se forem teratológicas. Veja-se, por exemplo, o que diz o enunciado 227 da súmula de jurisprudência dominante do TJRJ: “A decisão que deferir ou rejeitar a inversão do ônus da prova somente será reformada se teratológica”. Ou o enunciado 162 da súmula do mesmo Tribunal: “A decisão que disponha sobre o efeito suspensivo aplicável à impugnação ao cumprimento da sentença e aos embargos à execução só será reformada se teratológica”. O TJRJ “gosta” de uma teratologia. Veja-se o enunciado 156: “A decisão que defere ou indefere a produção de determinada prova só será reformada se teratológica”. Ou o enunciado 59: “Somente se reforma a decisão concessiva ou não, da tutela de urgência, cautelar ou antecipatória, se teratológica, contrária à lei, notadamente no que diz respeito à probabilidade do direito invocado, ou à prova dos autos”

O que se vê, então, é a ideia — consolidada em enunciados de súmula de jurisprudência dominante — de que algumas decisões só devem ser reformadas se forem teratológicas, ou seja, se forem aberrações jurídicas. Acontece que afirmar isso é o mesmo que dizer que o direito aceita decisões erradas que não sejam monstruosas. É como se um Tribunal afirmasse que a decisão tem uma espécie de “margem de erro”. Errar por pouco pode, e não se mexe na decisão. Mas se o erro for grosseiro, aí se reforma a decisão. Ora, se só se reforma a decisão que é “teratológica ou contrária à lei ou à prova dos autos”, então muito pouco se controla. Como já fiz em outras ocasiões, valho-me das palavras de Georges Abboud: “se o direito servir apenas para apontar teratologia ou bizarrice, o direito, então, não servirá para quase nada”.[8]

O papel de um tribunal não é, não pode ser, o de reformar apenas as decisões bizarras. Toda decisão que se repute equivocada deve ser reformada. Afinal, o titular do direito faz jus à tutela processual, e esta deve ser o resultado de uma decisão correta. É preciso reconhecer que reconhecer que, no Estado democrático de direito, existe uma resposta correta para cada caso submetido ao Judiciário [9]. E por resposta correta se deve entender a “resposta constitucionalmente adequada”[10]

Dizendo isso de outro modo, o que quero deixar claro é que o papel do direito (e, por conseguinte, dos tribunais, que aplicam o direito) não pode ser o de controle de aberrações jurídicas. Isso não significa, evidentemente, que decisões aberrantes não devam ser corrigidas. Mas não só elas. Qualquer decisão que se repute incorreta deve ser reformada, ainda que não seja uma monstruosidade. Afinal, se o papel do direito é dar a cada caso a melhor solução possível, qualquer equívoco se revelará uma denegação de proteção a quem tem razão.


[1] Pesquisa feita em 17/04/2024.

[2] Pesquisa feita em 17/04/2024 (considerando apenas os órgãos cíveis, e com um banco de dados que localiza decisões proferidas a partir de 1975).

[3] CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual do mandado de segurança. São Paulo: Atlas, 2013, pág. 335-336, nota de rodapé 17. Acrescento, aqui, que um exemplo de fenômeno estudado pela teratologia é o efeito do uso do álcool durante a gestação.

[4] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 27ª ed., 2008, pág. 115-116.

[5] Usa-se, aqui, o mandado de segurança por ser o instituto processual em que, com mais frequência, se enfrenta a questão da teratologia da decisão judicial. Raciocínio análogo, porém, deverá ser aplicado a qualquer outro remédio processual destinado a impugnar pronunciamentos judiciais.

[6] Isso se aplica, inclusive, àquelas decisões interlocutórias que, por força do disposto no art. 1.015 do CPC, não são impugnáveis por agravo de instrumento. É que nesse caso a decisão poderá ser atacada por meio de apelação (CPC, art. 1.009, § 1º). E isso sem falar na tese da “taxatividade mitigada” (Tema Repetitivo 988 do STJ). Mas aí já é outra teratologia…

[7] Daí o acerto do enunciado 267 da súmula de jurisprudência dominante do STF: “não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”.

[8] ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial. São Paulo: RT, 1ª ed. Eletrônica, Introdução, sem paginação.

[9] DWORKIN, Ronald. Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos? In: DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. bras .de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pág. 175 e seguintes

[10] A respeito da resposta correta como resposta constitucionalmente adequada, confira-se ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial. op.cit., Introdução, onde se lê que “a Administração e o Judiciário devem oferecer ao cidadão a resposta correta para a decisão de sua questão jurídica, além de privilegiar a posição do cidadão e de seus direitos, resgata caráter crítico da própria teoria do direito. A referida resposta correta somente exsurge diante da especificidade do caso concreto, por consequência, no Estado Constitucional, ela deve ser vislumbrada como a resposta constitucionalmente adequada para o deslinde da demanda.

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