Opinião

Cassação de chapa de senador: o segundo colocado deve assumir

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26 de março de 2024, 9h19

Os avanços autoritários em diversas partes do mundo fazem com que constitucionalistas, cientistas políticos e outros estudiosos voltem quase que instintivamente suas atenções à jurisdição constitucional, e isso porque suas instituições costumam ser os alvos preferidos do populismo autoritário que, arrogando para si a percepção e a elaboração dos sentimentos populares, busca minar a credibilidade das instituições que atuam de modo essencialmente contramajoritário.

Essas circunstâncias, contudo, não podem nos afastar de análises mais minuciosas das engrenagens dos poderes políticos, mesmo daquelas que aparentam certa simplicidade por conta de sua natureza formal ou procedimental. Não raras vezes, são precisamente esses mecanismos que, operacionalizando o direito ao sufrágio — núcleo dos direitos políticos e, portanto, da democracia — podem promover melhorias substanciais na qualidade da representação democrática e das próprias deliberações parlamentares.

Assim, não podemos sucumbir à tentação muito bem apontada por Jeremy Waldron de hipostasiar os objetivos de controle/restrição/limitação do poder político pelos aparatos constitucionais às custas do descrédito da política majoritária. [1]

Não pretendemos com isso, evidentemente, subscrever sem reservas o entusiasmo que o professor nutre em relação à democracia majoritária; antes, o leitor observará com facilidade a importância que damos ao modelo de democracia em parceria do mais ilustre contendor de Waldron, Ronald Dworkin, para quem, numa democracia, a vontade da maioria não é, muitas vezes, o método mais apropriado para se definir o que os membros da sociedade devem ser orientados a fazer. [2]

De qualquer modo, a presença do majoritarismo é inescapável em qualquer democracia digna desse nome. Incumbe-nos aprimorar a qualidade da representação, em especial no âmbito do Congresso Nacional, que é quem detém a imensa maioria das mais importantes competências legislativas em nosso pacto federativo.

Nessa toada, a grande importância de um determinado problema referente à representação dos estados federados destoa das poucas oportunidades que o Supremo Tribunal Federal teve de analisá-lo, a saber: como mitigar os riscos e os efeitos da sub-representação de um Estado no Senado Federal decorrentes da cassação de um(a) Senador(a) da República e de seus suplentes?

Outrossim, é correto atribuir a fenômenos jurídicos diversos: cassação de mandato e vacância — as mesmas consequências?

Os problemas, tal como as soluções por nós propostas para essas questões decorrem do desenho constitucional do Senado da República, que congrega os representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário (artigo 46, CF), diferentemente do que ocorre com a Câmara dos Deputados, que reúne representes do povo, eleitos pelo sistema proporcional (artigo 45, CF).

Spacca

Ao passo em que o número de deputados federais é proporcional à população de cada Estado, o número de senadores é fixo, de modo que cada estado e o Distrito Federal elegem três senadores, cada um com dois suplentes (artigo 46, §§1º e 3º, CF).

Ocorre que após a forma de escolha majoritária e proporcional, a Constituição brasileira normatiza sempre em conjunto senadores e deputados daí a imprescindibilidade de examinar a distinção entre cassação e vacância à luz dos artigos 55 e 56 da CF.

Isso faz com que os senadores da República se encontrem sempre em um equilíbrio muito mais delicado. Afinal, a eventual cassação de uma chapa — composta pelo titular do cargo e dois suplentes — culmina inequivocamente em sub-representação do Estado federado, além de outros problemas que persistiram mesmo com a análise, pelo STF, das duas mais importantes ações sobre o tema: as ADPFs 643 (ajuizada pelo PSD) e 644 (ajuizada pelo governador do estado de Mato Grosso).

Nas referidas ações, o STF foi instado a conferir interpretação conforme a diversos artigos do Regimento Interno do Senado Federal, a saber:

(i) art. 28, III (verificação de vaga senatorial por perda de mandato);
(ii) art. 32, V (perda do mandato por decisão da Justiça Eleitoral); e
(iii) art. 45 (convocação de suplente), considerando-se que não há disposição normativa que impeça a sub-representação de um estado até a realização das novas eleições e a posse do candidato vencedor, conforme artigo 224, §3º do Código Eleitoral), circunstância que vulnera diretamente o próprio pacto federativo.

Conforme abordado nas ações, antes do advento da Lei 13.165/2015 — que incluiu o já mencionado §3º ao artigo 224 do CE — o TSE costumava prestigiar a eleição já realizada mediante nomeação de “um candidato já por elas sufragado — ainda que com menos votos do que o que perdeu o mandato.” [3]

Ao estabelecer a realização de novas eleições como consequência direta e imediata do indeferimento do registro, cassação do diploma ou perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário, a lei buscou reproduzir a regra do artigo 56, § 2º, da CF/88 de forma indiscriminada.

Ocorre que a interpretação conforme a Constituição do §3º do artigo 224 do CE impõe sua aplicação tão somente aos casos de prefeitos e governadores uma vez que as hipóteses para presidente e senadores possuem fundamento constitucional próprio. Nosso artigo será dedicado à sistematização da perda de mandato senatorial de modo a assegurar a interpretação sistêmica entre os artigos 55 e 56 da CF.

Ao apreciar o pedido liminar formulado nas ações, o ministro Dias Toffoli entendeu, de modo muito acertado, que “na hipótese de eventual vacância, em razão da cassação, pela Justiça Eleitoral, da chapa senatorial eleita, seja dada posse interina ao legítimo substituto, qual seja o candidato imediatamente mais bem votado na eleição em que ocorreu a cassação, até que seja empossado o eleito no pleito suplementar ordenado pelo artigo 56, § 2º, da CF/88.[4]

Possibilidade rejeitada

Nada obstante, em 31/11/2023 o Plenário do STF rejeitou a possibilidade de ocupação interina da vaga de senador pelo candidato imediatamente mais votado até a realização de novas eleições, fixando o entendimento de que a vacância deve ser suprida tão somente pela eleição suplementar, calcado, em essência, na ausência de disposição legal para a referida ocupação interina e a necessidade de se impedir que um candidato que tenha obtido menos votos num pleito majoritário seja empossado. Ademais, extrapolaria o âmbito do Regimento Interno do Senado dispor sobre a ocupação precária de vaga aberta decorrente de cassação pela Justiça Eleitoral.

Com a devida vênia, consideramos que a questão constitucional não foi exaurida na referida decisão do STF. Em relação a vaga no Senado é crucial compreendermos que a Constituição, de forma textual, diferenciou o regime de aplicação para cassação de mandato (artigo 55) em relação à vacância (artigo 56).

Assim, o problema parece girar em torno de se assumir como legítima a universalização do pleito suplementar acolhida pela Lei nº 13.165/2015 “independentemente do número de votos anulados”, conforme afirmado pelo STF na ADPF 643, com suposto fundamento no artigo 56, §2º da CF. Esse argumento equipara situações flagrantemente distintas, que são as de perda do mandato, que inclui a sua cassação pela Justiça Eleitoral (artigo 55, V, CF) e a de vacância, para a qual o artigo 56, §2º da CF que prevê pleito suplementar no caso de faltarem mais de 15 meses para o término do mandato.

A primeira distinção importante é a de que a perda do mandato implica um juízo de desvalor do constituinte originário. Tanto assim é que os incisos I a VI do artigo 55 da CF tratam de situações em que o mandatário é, de alguma forma, penalizado por sua conduta, incumbindo à Câmara dos Deputados ou ao Senado decidi-la (§2º), ou à Mesa da Casa respectiva declará-la.

Situação muito diversa é a do artigo 56, em que o constituinte se limitou a estabelecer situações em que o mandatário não perderá o cargo porque dele se afastou por razão justa, ocorrendo simples vacância (e.g., falecimento ou renúncia) que, prolongada, justifica o novo pleito.

Essa distinção é sutil, mas de suma relevância. Se analisarmos o artigo 28 do Regimento Interno do Senado veremos que os dois primeiros incisos — referentes ao falecimento e à renúncia — tratam de simples vacância, na qual não há sanção ou juízo de valor, diferentemente do que ocorre no inciso III, atinente à perda do mandato, em que o próprio constituinte optou por sancionar.

Não fosse assim seria injustificado o comando do artigo 55, §4º da CF referente á renúncia de parlamentar submetido a processo que objetiva ou possa leva-lo a perder o mandato, e isso porque as consequências dos respectivos fenômenos jurídicos são diversas, e uma não pode ser usada como escape da outra.

A simples vacância deve ser compreendida como um vício individual e que, nessa condição, só pode ser remediado pelo chamamento de novas eleições. A cassação, por sua vez, é um vicio coletivo em que a parcela ludibriada dos eleitores deve ver seus votos anulados, sem prejuízo dos votos válidos, o que implica a necessidade não de um novo pleito, mas do recálculo do coeficiente eleitoral no caso dos Deputados e a convocação do segundo candidato mais bem votado no caso dos Senadores.

O próprio artigo 224, §3º do Código Eleitoral prevê a necessidade de realização de novas eleições “independentemente do número de votos anulados” nos casos de indeferimento do registro, cassação do diploma ou perda do mandato do candidato eleito, todas hipóteses em que incide o juízo de desvalor positivado no artigo 55 da CF.

Leonardo Sá/Agência Senado

A simples vacância, por sua vez, não importa a anulação de votos, mas a simples ausência episódica de mandatário, essa sim a ensejar novas eleições porque a vontade popular precisa se renovar dado que sua escolha anterior se esvaiu.

A inconstitucionalidade do dispositivo eleitoral, se não interpretado conforme a Constituição, reside no estabelecimento de uma distinção inconstitucional entre deputados e senadores que é a decorrência da hipostasia do elemento “majoritário” das eleições em detrimento da real nota distintiva das formas de extinção do cargo.

Pode-se dizer, portanto, que o problema da sucessão não está imediatamente atrelado ao cargo — deputado ou senador — ou ao tipo do pleito — se proporcional ou majoritário — mas sim ao vício que maculou a extinção do mandato, se por ato tido por repreensível pelo constituinte (cassação/perda do mandato), ou se por simples ausência ocasional de mandatário (vacância).

Reanálise

Nessa perspectiva, merece reanálise a decisão do Pleno do STF que cassou a correta decisão emitida anteriormente pelo ministro Dias Toffoli. Isso porque a previsão constitucional (artigo 56, §2º) pretensamente secundada pela previsão do Código Eleitoral (artigo 224, §3º) de novas eleições em caso de falhas no mecanismo da suplência — primeira barreira de contenção à sub-representação — não seria esvaziada de seu conteúdo essencial pela convocação interina do segundo candidato mais votado; antes, a solução do ministro Dias Toffoli, que implicitamente emitiu sentença constitucional de natureza aditiva, era a que melhor conjugava a necessidade de novas eleições com os riscos da sub-representação em caso de vacância completa da chapa, algo que poderia, inclusive, ser instrumentalizado e maliciosamente aproveitado por adversários da chapa cassada, em detrimento da isonomia entre os estados em que se baseia o pacto federativo.

O prazo estipulado pelo caput do referido artigo 224 para a realização de novas eleições — de 20 a 40  dias — a sub-representação manter-se-ia por prazo extremamente relevante, dentro do qual propostas importantes poderiam ser apreciadas sem a devida participação do estado federado sub-representado.

A decisão do Plenário na ocasião representa um desprestígio em relação ao pleito eleitoral que elegeu a chapa cassada. Afinal, a cassação do mandato de um senador e de seus suplentes não implica em quebra da lisura de nenhum aspecto das eleições, que representam sistemicamente um interesse democrático muito maior.

Ao contrário, quando a cassação de uma única chapa é suficiente para neutralizar o resultado de toda uma eleição, o que se enfraquece é a própria soberania popular.

Ademais, a convocação de novo pleito significaria a diluição dos votos viciados, e não sua anulação, como seria de rigor, preservando-se os votos válidos daqueles eleitores que não foram ludibriados e, portanto, os candidatos que teriam sido escolhidos caso o vício não tivesse ocorrido.

Vale salientar, na hipótese do artigo 55, inciso V, deve haver anulação dos votos depositados na chapa cassada e a respectiva recontagem. Por conseguinte, não pode haver discrímen entre deputado e senador. Pelo contrário, a regra constitucional estabelece uma simbiose entre ambos. Assim, na cassação há recontagem de votos forçando nova convocação, daí não se convocar o suplente e sim o segundo mais votado.

É de se indagar, inclusive, a aptidão da decisão do STF para gerar o resultado pretendido, a saber, proteção da soberania popular. Afinal, o prazo de vinte a quarenta dias é grande quando se pensa em tudo o que pode ser apreciado pelo Congresso no período, mas é pequeno em comparação aos pleitos eleitorais regulares, nos quais pressupõe-se uma participação mais ativa e esclarecida dos eleitores do que aquela que deverá se verificar nas eleições suplementares.

Assim, preservar o pleito originário mediante empossamento do segundo candidato mais votado pode ser vislumbrado como prestigiar o resultado, ainda que não ideal, de eleições muito mais maduras cognitivamente.

Não fosse o suficiente, tal como colocada pelo Plenário do STF, a decisão abriria a possibilidade de produtos legislativos aprovados em período de vacância senatorial serem impugnados na Corte por inconstitucionalidade formal, além do possível uso estratégico de nulidades de algibeira em matéria eleitoral, no qual uma chapa poderia forçar sua própria cassação para desprestigiar o conjunto do pleito eleitoral. Ou seja, essa solução em vez de fortalecer fragiliza o sufrágio universal.

Novamente, trata-se aqui de assunção interina do cargo de senador da República com o intuito único e exclusivo de impedir a sub-representação do estado federado no período compreendido entre a decisão da Justiça Eleitoral — que, conforme estipulou o STF na ADI 5.525, a ser tratada em outra ocasião, deve ser executada imediatamente, independentemente do julgamento dos embargos de declaração — e a posse do candidato eleito nas eleições suplementares.

Se o artigo 56, §2º da CF c.c. artigo 224, §3º do Código Eleitoral não preveem a possibilidade de ocupação interina pelo segundo candidato mais votado, tampouco a proíbem. Se seria plausível extrair tal conclusão da interpretação dos dispositivos do Regimento Interno do Senado, com maior razão o é a simples colmatação de omissão inconstitucional decorrente da Lei 13.165/2015. Contudo, não podemos perder de vista um ponto fulcral há real distinção no regramento normativo estabelecido para cassação no artigo 55, inciso V da CF e o artigo 56, §2º da CF.

Destarte, é fundamental assegurarmos a preservação máxima das eleições de modo a impedir que a cassação de uma chapa senatorial tenha por consequência a invalidação de votos válidos depositados no segundo candidato mais votado.

No momento conturbado pelo qual passam diversas democracias do mundo, dentre as quais o Brasil, não podemos cair na falácia de acreditar que apenas o STF merece um escrutínio tendente, supostamente, à melhora de seu funcionamento. Todas as instituições da República podem e devem ser constantemente aprimoradas, e a garantia do pacto federativo, bem como a melhora na qualidade da representação são que demandam respostas claras das instituições com máxima urgência.

 

____________________________

[1] WALDRON, Jeremy. Political Political Theory, Harvard University Press, 2016, p. 29-34.

[2] CF. ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1434 e ss.

[3] Petição Inicial da ADPF 644, p. 14/24.

[4] STF, decisão monocrática do então presidente do STF, Min. Dias Toffoli, ADPF 644 MC-DF, rel. Min. Rosa Weber, j. 31.1.2020.

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