Opinião

Os animais no anteprojeto de reforma do Código Civil

Autor

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

2 de maio de 2024, 6h08

Acompanhamos, no dia 17 de abril, a entrega formal do anteprojeto de reforma do Código Civil em mãos do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, resultado do trabalho dos membros da comissão de juristas, instituída em 24 de agosto de 2023.[1]

A comissão foi presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão e vice-presidida pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, ambos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e contou com a relatoria geral a cargo dos professores Flávio Tartuce e Rosa Maria Andrade Nery.

Os juristas que compuseram a comissão foram distribuídos em nove subcomissões temáticas, cada qual com um relator parcial:

  • Parte Geral — Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch (relator parcial), ministro João Otávio de Noronha (STJ), Estela Aranha e Rogério Marrone Castro Sampaio;
  • Direito das Obrigações — José Fernando Simão (relator parcial) e Edvaldo Brito;
  • Responsabilidade Civil — Nelson Rosenvald (relator parcial), ministra Maria Isabel Gallotti (STJ) e Patrícia Carrijo;
  • Direito dos Contratos — Carlos Eduardo Elias de Oliveira (relator parcial), Angelica Carlini, Cláudia Lima Marques e Carlos Eduardo Pianovski;
  • Direito das Coisas — Marco Aurélio Bezerra de Melo (relator parcial), Carlos Vieira Fernandes, Maria Cristina Santiago e Marcelo Milagres;
  • Direito de Família — Pablo Stolze Gagliano (relator parcial), ministro Marco Buzzi (STJ), Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno;
  • Direito das Sucessões — Mario Luiz Delgado (relator parcial), ministro Cesar Asfor Rocha (STJ), Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Gustavo Tepedino;
  • Direito Digital — Laura Porto (relatora parcial), Laura Mendes e Ricardo Campos;
  • Direito de Empresa — Paula Andrea Forgioni (relatora parcial), Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Flavio Galdino, Moacyr Lobato e Daniel Carnio.

Perante essa Comissão foram realizadas três audiências públicas: em São Paulo (23/10/2023), em Porto Alegre (20/11/2023) e em Salvador (7/12/2023), com manifestações de especialistas e debates com os presentes sobre diversos temas. Canais digitais de comunicação com a comissão foram abertos, a partir do Senado, para a recepção de sugestões por parte de entidades e da sociedade em geral.[2]

Os primeiros relatórios parciais foram apresentados em meados de dezembro de 2023, com diversas propostas para o aprimoramento da codificação civil de 2002.[3]

Após os relatórios parciais, a comissão deliberou em admitir o professor Dierle José Coelho Nunes como novo membro titular da comissão (subcomissão de direito digital), além de quatro membros consultores: Ana Cláudia Scalquette, Layla Abdo Ribeiro de Andrada, Maurício Bunazar e Vicente de Paula Ataíde Junior.[4]

Nova audiência pública da comissão foi realizada em 26 de fevereiro de 2024, desta vez em Brasília (DF), oportunidade em que foi ouvido o ministro da Suprema Corte argentina, Ricardo Luis Lorenzetti, presidente da Comissão que elaborou o novo Código Civil argentino, de 2014. Nessa mesma ocasião, foi apresentado o relatório final, consolidando, e alterando em parte, os relatórios parciais, visando aos debates finais da comissão, realizados, de forma concentrada, na semana de 1º a 5 de abril de 2024.

Nessa última e exaustiva semana de debates foram discutidos e votados os principais temas da reforma do Código Civil, que originaram o texto do anteprojeto entregue ao presidente do Senado.

Como membro-consultor para direitos animais na comissão de juristas, trago neste pequeno ensaio uma síntese das propostas incluídas no anteprojeto que dizem respeito aos animais.

A qualificação jurídica dos animais na parte geral do Código Civil

Certamente um dos temas mais polêmicos e disputados, dentro da reforma do Código Civil, com ampla cobertura midiática, foi a revisão e a atualização da qualificação jurídica dos animais.

Spacca

Como se sabe, a parte geral do Código Civil não define a natureza jurídica dos animais. A qualificação tradicional dos animais como bens semoventes é decorrente da interpretação dada, sobretudo, ao atual artigo 82, considerando que os animais são “suscetíveis de movimento próprio”, “sem alteração da substância ou da destinação econômica-social”.

A primeira proposta de reforma, contida no relatório da subcomissão da parte geral, criando um artigo 82-A no Código Civil, nos causou, de fato, uma tremenda preocupação, dado que qualificava os animais como “objetos de direito”. Essa mesma qualificação novamente constou do relatório final (de 26/2), com a diferença que deslocava o dispositivo para o artigo 91-A, ainda no livro dos bens.

Essa preocupação transcendeu os trabalhos da comissão e gerou uma reação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que emitiu nota técnica contrária a essa qualificação dos animais como objetos de direito por entendê-la como retrocesso em termos de proteção do meio ambiente e dos animais.

Os embates em torno dessa qualificação surtiram efeito, de modo que, nas sucessivas redações do artigo apresentadas pela relatoria geral, a expressão “objetos de direito” foi suprimida do proposto artigo 91-A.

O artigo 91-A, aprovado pela comissão e constante do anteprojeto de reforma do Código Civil, é o seguinte:

“Seção VI Dos Animais

Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.

§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.

§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.”[5]

Parece um pouco mais do que evidente que o caput do artigo 91-A é um avanço em termos da qualificação civil dos animais: não são qualificados como coisas, nem como bens, mas pelo que efetivamente são, ou seja, seres vivos sencientes, tal qual se extrai na interpretação do inciso VII, parágrafo primeiro, do artigo 225 da Constituição.

A precisa e exata qualificação jurídica dos animais foi delegada à lei especial (§ 1º), a qual, no entanto, precisará respeitar dois vetores fundamentais:

  1. deverá dispor sobre um tratamento físico e ético adequado aos animais;
  2. deverá respeitar a natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes, por isso passíveis de proteção jurídica especial.

Queremos crer que a construção da lei especial para proteger juridicamente os animais deverá ser fatiada, ou seja, várias leis especiais deverão ser aprovadas para constituir um estatuto dos animais, dada a diversidade de características entre as espécies de animais e os diferentes graus de dependência e vulnerabilidade em relação aos seres humanos, sobretudo entre animais domésticos e silvestres, o que poderia gerar dificuldades para a aprovação de um único estatuto geral dos animais.

Mas o que gerou uma forte objeção da nossa parte, especialmente na semana de debates concentrados foi a adoção do regime subsidiário de bens aos animais, enquanto não vier a lei especial exigida para a sua definitiva qualificação jurídica.

Não obstante, é de se notar que a aplicação desse regime subsidiário de bens é atenuada ou mitigada, pois apenas serão aplicáveis aos animais as disposições sobre bens, que não forem incompatíveis com a sua natureza especial de seres vivos sencientes.

Isso quer dizer que, mesmo com esse regime patrimonial transitório, não se descarta a possibilidade de se atribuírem direitos a animais, pois isso está de acordo com a sua natureza especial de seres vivos sencientes e, pela interpretação conforme a Constituição, dotados de dignidade própria.

Mais do que isso, esse regime subsidiário de bens, por ser aplicado de forma mitigada aos animais, de maneira a respeitar o seu estatuto da senciência, não perturba as leis estaduais e municipais mais avançadas, as quais já definem animais como sujeitos de direitos ou atribuem aos direitos determinados direitos fundamentais.[6]

De qualquer forma, vamos levar ao Congresso Nacional uma alternativa a esse regime subsidiário de bens, trazido pelo anteprojeto: o regime subsidiário de entes jurídicos despersonalizados, conforme já defendemos perante a comissão de juristas e escrevemos, em coautoria com o Prof. Daniel Braga Lourenço, para o Conjur.[7] Como entes jurídicos despersonalizados, os animais deixam, definitivamente, a qualificação jurídica de bens, ainda que não ingressem, como deveriam, na definição de pessoas.

Também nos parece possível propor ao Congresso Nacional uma modificação topográfica do artigo sobre animais, como o fez a reforma do Código Civil português, em 2017, no sentido de localizá-lo fora do livro relativo aos bens da parte geral, prevenindo qualquer interpretação no sentido de atribuir aos animais essa qualificação reducionista e incompatível com o estatuto da senciência animal, de índole constitucional.

Os animais no direito de família

Pouca resistência se apresentou para regulamentar dois temas muito frequentes na prática forense das varas de família: a convivência compartilhada dos animais de estimação e a repartição das despesas para sua manutenção após a dissolução do casamento ou da união estável.

Desses temas tratou o parágrafo terceiro do artigo 1.566, constante no anteprojeto:

“Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges ou conviventes:

[…]

§ 3º Os ex-cônjuges e ex-conviventes têm o direito de compartilhar a companhia e arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação, enquanto a eles pertencentes.”

Será possível ainda aperfeiçoar a redação desse dispositivo durante a tramitação legislativa no Congresso Nacional, até para substituir a expressão “a eles pertencentes” por outra mais condizente com o estatuto da senciência animal.

De qualquer forma, com esse dispositivo aprovado haverá pacificação da jurisprudência sobre os temas e ficará claro que as questões relativas à destinação do animal de estimação após a ruptura da sociedade conjugal ou convivencial são de direito de família (de competência das varas de família) e não de direito das coisas (decididas em varas cíveis).

A afetividade humana por animais como direito da personalidade

Do relatório parcial da subcomissão da parte geral até os últimos momentos dos debates durante a decisiva semana de abril, o artigo referente aos animais na parte geral continha um parágrafo adicional, com a seguinte redação:

“§ 3º. Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.”

Esse parágrafo foi sugerido pela professora Rosa Maria de Andrade Nery, relatora-geral da comissão, especialmente após a nossa intervenção na audiência pública realizada na OAB-SP, e parecia muito bem-vindo para deixar claro que animais também fazem jus à reparação de danos.

Nos estertores das discussões orais sobre esse artigo, optou-se por suprimir esse parágrafo da parte geral e deixar, apenas, um artigo semelhante no capítulo dos direitos da personalidade, com redação menos ousada:

“Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.”

O artigo é interessante para reconhecer que existe um “entorno sociofamiliar da pessoa” do qual animais também fazem parte. Além disso, conecta animais humanos e não-humanos por relações de afeto, nas quais há um dever humano direto em cuidar e proteger os animais, ante sua dependência e vulnerabilidade.

Teremos que avaliar, com mais vagar, as consequências jurídicas de estabelecer essa afetividade entre humanos e animais como direito da personalidade humana, dado que, inequivocamente, em alguns aspectos e em algumas situações, o interesse animal deverá sobrepujar o interesse humano. É o caso de animais silvestres utilizados, indevidamente, como pets. Nesse caso, a afetividade humana com animais, considerada como direito da personalidade humana, poderia redundar num cativeiro doméstico desses animais, conduta hoje considerada criminosa pela Lei dos Crimes Ambientais (artigo 29 da Lei 9.605/1998).

Considerações finais

O anteprojeto de reforma do Código Civil poderia ter ousado mais quanto à qualificação jurídica dos animais. Já temos a Ciência para reconhecer a senciência animal. Temos precedentes do STF e STJ reconhecendo que animais têm dignidade própria. Existem inúmeras leis estaduais e municipais que já declaram os animais como sujeitos de direitos ou atribuem a eles direitos fundamentais.

Mais do que tudo, temos uma Constituição que, ao proibir a crueldade contra animais, reconhece o valor intrínseco e a dignidade própria dos animais, ensejando a construção hermenêutica da subjetividade jurídica dos animais, objeto, hodiernamente, da disciplina autônoma e transversal do direito animal.

Mas, compreendendo os limites do tempo e do pensamento no ambiente civilista, talvez tenhamos coarctado o retrocesso e impulsionado, também na legislação civil, o progresso civilizacional representado pelas instituições animalistas.

O anteprojeto é um primeiro passo na escadaria que levará à atualização do Código Civil, tornando-o mais adequado para responder, eficazmente, às exigências de uma sociedade que já perpassa mais de duas décadas do novo século, com múltiplas alterações em seu tecido constitutivo.

O que realmente vai avançar, o que vai ficar como está ou mesmo o que corre o perigo de retroceder, está agora nas mãos do Congresso Nacional.


[1]Cf. Ato do Presidente do Senado 11/2023, disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9448992&ts=1703612895184&disposition=inline&_gl=1*1gz6c0z*_ga*MzAzMjA0ODk5LjE3MDcyMjM1NzE.*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwNzkxMDc0MS4yLjEuMTcwNzkxMzYxMS4wLjAuMA. Acesso em: 23 abr. 2024.

[2]Cf. https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. Acesso em: 23 abr. 2024.

[3]Relatórios parciais disponíveis em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7935&codcol=2630. Acesso em: 23 abr. 2024.

[4]Cf. Decisão n.º 1 da Comissão, disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. Acesso em: 23 abr. 2024.

[5]Cf. RELATÓRIO FINAL disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. Acesso em: 23 abr. 2024.

[6] Como é o caso das leis de Santa Catarina (2018), Paraíba (2018), Espírito Santo (2019), Rio Grande do Sul (2020), Minas Gerais (2020), Roraima (2022), Pernambuco (2022), Goiás (2023) e Amazonas (2023).

[7]Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-25/teoria-dos-entes-despersonalizados-como-alternativa-para-animais-na-reforma-do-codigo-civil/. Acesso em: 23 abr. 2024.

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UFPR e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenador do Programa de Extensão em Direito Animal da UFPR, coordenador do Zoopolis – Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD da UFPR, membro-consultor da Comissão de Juristas para a revisão e atualização do Código Civil e juiz federal em Curitiba.

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