Opinião

Teoria dos entes despersonalizados como alternativa para animais na reforma do Código Civil

Autores

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • Daniel Braga Lourenço

    é coordenador do Centro de Ética Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Antilaboratório de Direito Animal da UniFG (Andira) professor adjunto de Biomedicina e Direito Ambiental da UFRJ professor titular de Direito Ambiental do IBMEC-RJ professor permanente do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da UniFG-BA doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela UGF-RJ e membro do Oxford Centre For Animal Ethics.

25 de março de 2024, 17h24

Podemos dizer que a qualificação jurídica dos animais, em tempos de reforma do Código Civil, está entre o sonho e o pesadelo.

O sonho: que os animais, porquanto seres vivos dotados de sensibilidade e consciência, pudessem ser alçados à categoria de pessoas naturais não-humanas, favorecidos pela atribuição de uma personalidade jurídica adaptada à sua natureza especial.

O pesadelo: animais afirmados como objetos de direito, reduzindo-os ao status de coisas ou de bens, com isso inviabilizando qualquer tentativa de proteção especial pela atribuição de direitos fundamentais.

Não nos parece que a reforma do Código Civil, em andamento na sua fase preliminar perante a Comissão de Juristas, vá conduzir os animais ao céu ou ao inferno, nem ao sonho, nem ao pesadelo.

Nada indica que tenha chegado a hora de personificar os animais, abastecendo-os com essa aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações, ainda que muitos estudos de ética animal assim o recomende.

Por outro lado, a intenção inicial, contida nos primeiros relatórios da Comissão de Juristas, no sentido de afirmar os animais como objetos de direito, ainda que reconhecidos como “seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial”, parece definitivamente afastada, especialmente após a nota técnica, em sentido contrário, encaminhada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com respaldo pela respectiva consultoria jurídica.

Não obstante, o novo artigo proposto (artigo 91-A no relatório geral) continua sendo localizado no livro do Código Civil destinado aos bens e prevê o regime subsidiário dos bens enquanto não for aprovada a lei especial para regular a proteção jurídica dos animais.

Fabian Burghardt/Unsplash

Se essas normas forem efetivamente aprovadas, muda-se o nome, rebusca-se a terminologia empregada, mas mantém-se o mesmo regime jurídico, o que, ao fim e ao cabo, significa continuar submetendo os animais, ao menos no plano normativo do Código Civil, à categoria de coisas ou bens.

O presente ensaio pretende esboçar uma proposta de equilíbrio para a qualificação dos animais na reforma do Código Civil. Nem ao céu, nem ao inferno. Não se atende ao sonho, mas também não se conduz ao pesadelo. Um meio-termo que não trate animais como pessoas, mas também não os destrate como se fossem bens. Esse ponto de equilíbrio parece estar na teoria dos entes despersonalizados.

Um tertium genus entre pessoas e bens, que evite a opressão e a violência geradas pela coisificação animal e, ao mesmo tempo, possibilite o desfrute de alguns direitos, não como uma aptidão genérica, mas como uma manifestação expressa do legislador para atender as necessidades de proteção jurídica decorrentes da natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes.

Teoria dos entes jurídicos despersonalizados

Na redação do relatório geral da Comissão de Juristas, elaborado pelos professores Rosa Maria Nery e Flávio Tartuce, há um artigo, sobre fideicomisso, que expressamente menciona os “entes jurídicos despersonalizados”.

Confira-se:

“Art. 1.953-A. Pode ser fideicomissário qualquer sujeito de direito, ente jurídico despersonalizado ou pessoa determinável, ainda que não concebida no momento da instituição do fideicomisso.”

Quem são os entes jurídicos despersonalizados?

A bipartição conceitual entre “pessoas” e “coisas” proporcionou a consolidação, no século 20, da teoria da personalidade jurídica, por meio da qual “a noção de sujeito de direito passou a ser uma prerrogativa de todos os seres racionais”, notadamente, em um primeiro momento, do ser humano. Como decorrência, formou-se, portanto, ao longo do tempo, uma indevida vinculação e equiparação dos conceitos de “pessoa” e de “sujeito de direito”, tratando-os como verdadeiros sinônimos.

No entanto, os conceitos merecem importante distinção. Nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são necessariamente seres humanos, como pode ser observado claramente a partir da subjetividade jurídica atribuída às pessoas jurídicas.

Assim sendo, a categoria “sujeito de direito” seria um gênero que abarcaria, de um lado, sujeitos personalizados (que seriam as pessoas propriamente ditas: naturais — tipicamente o caso dos seres humanos — e jurídicas) e, de outro, sujeitos não-personificados ou, por outra terminologia, entes jurídicos despersonalizados [1].

Os entes despersonalizados, basta pensar exemplificativamente na massa falida, na herança jacente ou vacante, no espólio, nas sociedades sem personalidade jurídica (sociedade em comum e em conta de participação) e no condomínio, ocupam muitas vezes a posição de detentores de direitos subjetivos e são dotados de capacidade de direito e de capacidade processual segundo as conveniências de política legislativa.

A própria situação do nascituro é emblemática para ilustrar tal fato. A redação do artigo 2º do Código Civil é bastante clara ao dispor que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

A par das acaloradas discussões acerca da natureza jurídica do nascituro, que fundamentalmente repousam na equivocada equiparação entre sujeito de direito e pessoa, não há, em todo o ordenamento, dispositivo mais claro no sentido de estender a qualidade de sujeito de direitos a um ente despersonalizado.

O nascituro é aquele que ainda está por nascer e que, portanto, ainda não recebeu a “roupagem” da personalidade jurídica. Ainda não é pessoa. No entanto, ainda assim, (não sendo pessoa) possui direitos fundamentais reconhecidos pelo ordenamento jurídico.

Assim é que a “personalidade” (conceito umbilicalmente atrelado ao de “pessoa”) e a “possibilidade de ser titular de direitos” (noção vinculada à de “sujeito de direito”) consubstanciam realidades necessariamente distintas.

A teoria dos entes despersonalizados, baseando-se na distinção conceitual entre “pessoa” e “sujeito de direito”, permite, portanto, que se prescinda da qualificação do ente como “pessoa” para que ele venha a titularizar direitos subjetivos.

No que diz respeito aos animais ela poderá, com tranquilidade, ser aplicada para caracterizá-los como autênticos sujeitos de direitos despersonalizados que passarão a titularizar direitos no momento e na forma que a sociedade, por meio do Poder Legislativo, entenda adequada.

Proposta para a qualificação jurídica dos animais na reforma do Código Civil, de acordo com a teoria dos entes jurídicos despersonalizados

Depois de oficialmente constituída e após a realização de três audiências públicas (São Paulo, Porto Alegre e Salvador), vieram a lume os relatórios parciais das subcomissões temáticas da Comissão de Juristas para a reforma do Código Civil.

No relatório parcial da Subcomissão da Parte Geral foi apresentada a proposta de um artigo 82-A para qualificar os animais no Código Civil:

“Dos Bens Móveis e Animais

(…)

Art. 82-A Os animais, que são objeto de direito, são considerados seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica, em virtude da sua natureza especial.

§1º. A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento ético adequado aos animais;

§2º. Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza e sejam aplicadas considerando a sua sensibilidade;

§3º. Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.”

Posteriormente, na redação do relatório geral, apresentado pelos professores Rosa Maria Nery e Flávio Tartuce, o texto foi alterado e trasladado para outra seção do livro sobre os bens:

“Seção VI Dos Animais

Art. 91-A. Os animais, objetos de direito, são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.

§1º. A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais;

§2º. Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam, considerando a sua sensibilidade, incompatíveis com a sua natureza;

§3º. Da relação afetiva, entre humanos e animais, pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão reparatória por danos experimentados por aqueles que desfrutam de sua companhia.”

Foi sobre essa redação do relatório geral que o primeiro autor deste ensaio, na condição de membro-consultor da Comissão de Juristas, apresentou a seguinte proposta de emenda, registrada sob n.º 29[2]:

“LIVRO I

DAS PESSOAS

(…)

TÍTULO IV

DOS ANIMAIS

“Art. 78-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.

§1º. A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico, psíquico e ético adequado aos animais;

§2º. Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos entes jurídicos despersonalizados, desde que não sejam, considerando a sua sensibilidade, incompatíveis com a sua natureza;

§3º. Da relação afetiva, entre humanos e animais, pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão reparatória por danos experimentados por aqueles que desfrutam dessa relação.”

A principal mudança sugerida se opera no caput do proposto artigo 91-A, com a supressão da expressão “objetos de direito”, que já vem sendo considerada pela Comissão, especialmente após a nota técnica emitida pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e parece haver consenso, não obstante terem sido oferecidas emendas com a manutenção da aludida expressão (cf. emendas nº 30 e 31). Trata-se de medida necessária para não obstar outros avanços da matéria pela lei especial referida no parágrafo primeiro do artigo proposto.

Em um segundo plano, propõe-se a inserção da palavra “psíquico” no § 1º do artigo 91-A para não deixar o parágrafo incompleto, uma vez que a dimensão psíquica dos animais integra a sua senciência (admitida no caput), e já é reconhecida pelas ciências veterinárias, como é exemplo a Resolução 1.236, de 26 de outubro de 2018, do Conselho Federal de Medicina Veterinária.

Também nos parece imprescindível a substituição, no § 2º do artigo 91-A, do regime subsidiário dos bens pelo regime subsidiário dos entes jurídicos despersonalizados, exatamente para ajustar a proposta ao que se conquistou, até o momento, pela jurisprudência nacional, em termos de proteção jurídica própria para os animais, como é notável o precedente extraído do REsp 1.713.167 (STJ, 4ª T., relator: ministro Luís Felipe Salomão, j. 19/6/2018, p. 9/10/2018), no qual o voto vencedor do relator admitiu que os animais são um “terceiro gênero”, ou seja, nem bens, nem pessoas.

Dessa forma, atribuir aos animais, até que advenha a lei especial, o regime jurídico dos entes jurídicos despersonalizados significa avançar para resgatá-los da situação de bens, mas sem caracterizá-los como pessoas. É o meio-termo, justo e adequado para a quadra histórica em que vivemos e em que se situa a reforma do Código Civil, como defendido neste ensaio.

No artigo 91-A, § 3º, propôs-se emenda de redação para evitar a ambiguidade gerada pela expressão “de sua companhia”, que pode se referir tanto aos humanos, quanto aos animais. É importante que o avanço representado por esse parágrafo (que espelha o contido no art. 19 do relatório geral, traduzindo a afetividade pelos animais do entorno sociofamiliar da pessoa como um direito da personalidade) beneficie diretamente os animais enquanto entes jurídicos despersonalizados.

Por fim, também é muito relevante a proposta de nova localização topográfica do artigo, indicando-se uma nova numeração (artigo 78-A), referente à estrutura atual do Código Civil (e não à numeração da redação da relatoria geral).

A emenda propõe que o artigo sobre animais seja trasladado do Livro II, relativo aos bens, para o Livro I, relativo às pessoas, mas em novo Título, de forma a deixar claro, à interpretação sistemática, que animais não são bens, mas também não são pessoas naturais, nem jurídicas (melhor considerados como um tertium genus, conforme jurisprudência do STJ e o proposto neste ensaio).

Essa nova posição normativa está de acordo com a opção do legislador português de 2017 (também inspirador da nossa reforma), que tratou de inserir os artigo 201º-B a 201º-D, sobre a proteção jurídica dos animais, em subtítulo próprio do Código Civil, separado das pessoas e das coisas. Essa emenda de correção topográfica se sintoniza com a proposta de regime subsidiário dos entes jurídicos despersonalizados, conforme proposta ao § 2º do artigo 91-A do relatório geral.

Considerações finais

Os dogmas e as certezas jurídicas devem ser questionados na medida em que passam a não oferecer resposta satisfatória às demandas sociais. Um desses paradigmas a ser enfrentado é justamente o do “ser” e o do “não-ser” do Direito. É chegada a hora do Código Civil brasileiro, tal como vem ocorrendo mundo afora, reconhecer que a categoria de bens, de coisas, não está afinada com a melhor compreensão científica acerca da titularidade de interesses fundamentais para os animais.

Evidentemente que essa transição pode ser estrategicamente mais suave e factível sem que seja necessário, nesse momento, atribuir aos animais personalidade jurídica. Podem ser enquadrados em um terceiro gênero, a saber o dos entes despersonalizados que, embora não possuam personalidade jurídica, podem titularizar direitos fundamentais a serem reconhecidos paulatinamente pelo legislador.

Conciliando as propostas iniciais da Comissão de Juristas com a Emenda nº 29 apresentada, parece razoável a remessa à lei especial para que trate acerca do “tratamento físico, psíquico e ético adequado aos animais”. Não obstante, o Código Civil não pode ser um obstáculo aos avanços, mesmo na futura lei.

Por isso é importante mudar de lugar o artigo sobre a qualificação jurídica dos animais, situando-o fora do livro destinado aos bens. Além disso, deve-se apostar no regime jurídico subsidiário dos entes despersonalizados até que a nova lei exsurja.

Mas, para além de tudo isso, nessa reta final de trabalhos, é preciso ver consolidada, no anteprojeto de reforma do Código Civil, que animais não são objetos de direito.

 

 


[1] Nesse sentido: COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: parte geral. 9. ed. v. 1. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 148-165. Nesse local, há, inclusive, uma ligeira discussão sobre se animais podem ser sujeitos de direito (p. 165).

[2] Emendas disponíveis em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=8032&codcol=2630. Acesso em: 19 mar. 2024.

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UFPR e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenador do Programa de Extensão em Direito Animal da UFPR, coordenador do Zoopolis – Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD da UFPR, membro-consultor da Comissão de Juristas para a revisão e atualização do Código Civil e juiz federal em Curitiba.

  • é doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ), mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF-RJ), professor adjunto de Biomedicina e de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor titular de Direito Ambiental do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), Professor Permanente do Programa de Mestrado em Direito da UniFG-BA, pesquisador bolsista do Instituto Ânima, professor convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, da Pace Law School (EUA) e da pós-graduação em Direito Ambiental Brasileiro da PUCRio, coordenador do Centro de Ética Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-RJ e fellow do Oxford Center for Animal Ethics.

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