Opinião

Amazonas cria nova lei estadual sobre direitos para animais

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  • é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

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30 de janeiro de 2024, 15h13

As presentes considerações se referem à Lei 6.670/23, do estado do Amazonas, que “institui o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Amazonas”, publicada no Diário Oficial Eletrônico, de 22 de dezembro do mesmo ano, com previsão de vigência na data de sua publicação oficial (artigo 66).

A lei é oriunda do Projeto de Lei 136/21, apresentado pela deputada estadual Joana Darc (UB).

Com essa lei, o Amazonas passa a ladear os estados que possuem leis tipicamente animalistas, ou seja, fontes normativas que protagonizam os animais, reconhecendo-os como sujeitos de direitos, atribuindo-lhes direitos ou, sem expressamente afirmar essas condições, tratando-os como seres vivos dotados de interesses próprios a serem protegidos juridicamente.

Paraíba foi inspiração
O código amazonense de direito animal foi nitidamente inspirado no Código de Direito e Bem-estar Animal da Paraíba, a lei estadual mais avançada em termos de proteção animal, pela técnica da atribuição de direitos, o qual também foi usado como base para o Código de Direito e Bem-estar Animal de Roraima, de 2022.

O objetivo deste pequeno ensaio é posicionar a nova lei dentre as demais do mesmo gênero, além que noticiar algumas das suas principais instituições.

O Direito Animal nas leis estaduais
Do ponto de vista jurídico e normativo, o direito animal pode ser conceituado como o “conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ecológica, econômica ou científica”.[1]

A competência legislativa para o direito animal é concorrente entre União e estados, conforme artigo 24, VI, “fauna”, da Constituição, cabendo as normas gerais às leis federais e as normas específicas às leis estaduais, sem desconsiderar a suplementação legislativa cabida às leis municipais (artigo 30, II, CF).

Isso significa que a leis estaduais ocupam um lugar de destaque no ordenamento jurídico animalista, pois compete a elas fixar um regramento mais detalhado sobre a subjetividade jurídica dos animais e, até mesmo, atribuir os direitos materiais a que esses seres vivos fazem jus, em observância ao princípio da dignidade animal e em concretização do direito fundamental à existência digna de todos os animais.[2]

A atribuição de direitos a animais é uma nova tecnologia jurídica para a tutela da fauna, mas que tem o propósito fundamental de proteger os animais enquanto seres vivos dotados de consciência e de dignidade próprias.

Ano zero
Foi, sobretudo, a partir de 2017 (coincidentemente, ou não, no mesmo ano de publicação do acórdão do histórico precedente do STF sobre a vaquejada, que marcou a autonomia do direito animal no Brasil [3]), que novas leis estaduais foram produzidas, com o reconhecimento expresso de que animais são sujeitos de direitos, chegando-se, inclusive, a estabelecer um autêntico rol de direitos fundamentais animais.

Portanto, foi exatamente no âmbito do direito animal dos estados que se registraram os maiores e mais significativos avanços em termos de positivação dos direitos animais no Brasil.

A inovação começa em 2017, com a edição do Código de Proteção aos Animais do Estado de Sergipe (Lei 8.366/17), que pode ser considerada um verdadeiro prenúncio à eclosão das leis estaduais animalistas posteriores, consideradas mais avançadas por adotarem, explicitamente, a linguagem dos direitos animais.

Sujeitos de direitos
Em 2018, Santa Catarina tornou-se o primeiro estado a reconhecer, em lei, que animais são sujeitos de direitos (Lei 17.485/18), ainda que elegendo algumas poucas espécies alcançadas por esse reconhecimento (cães, gatos e cavalos; posteriormente limitada a cães e gatos pela Lei 17.526/18, de duvidosa constitucionalidade).

No mesmo ano da inovação catarinense, foi editada a lei estadual mais avançada do Brasil sobre direitos animais: o Código de Direito e Bem-estar Animal do Estado da Paraíba (Lei 11.140/18). O destaque do código paraibano de direito animal fica por conta da especificação dos direitos animais, não realizada diretamente pelas outras leis estaduais (até o advento do código de Roraima e, agora, do Amazonas), que se limitaram a reconhecer animais como sujeitos de direitos, sem discriminar esses direitos.[4]

Mais iniciativas
Na sequência, uma série de leis estaduais foram promulgadas, ampliando o espectro da típica legislação animalista.

O estado do Espírito Santo editou a Lei Complementar 936/19 para instituir a política estadual de proteção à fauna silvestre, reconhecendo os animais não-humanos como sujeitos de direitos.

Em 2020, duas outras leis estaduais foram publicadas reconhecendo animais como sujeitos de direitos: Rio Grande do Sul (Lei 15.434/20), em relação aos animais domésticos de estimação, e Minas Gerais (Lei 23.724/20), mais universal, abrangendo  todos os animais.

O estado do Rio Grande do Norte editou o seu Código de Defesa e Proteção aos Animais, por meio da Lei 10.831/21, alinhando-se com as características do precursor código de Sergipe, de 2017, sem afirmar, categoricamente, que animais são sujeitos de direitos, mas reconhecendo a senciência animal e os princípios das cinco liberdades animais.

Roraima na vanguarda
No ano de 2022, o Estado de Roraima assumiu a posição de destaque, ao instituir o seu Código de Direito e Bem-estar Animal (Lei 1.637/22), reconhecendo, expressamente, animais como sujeitos de direitos (artigo 2º), com artigo nitidamente inspirado na codificação paraibana, mas que foi além na especificação de direitos, o qual, por isso, vale a pena ser transcrito:

Art. 5º – Todo animal tem o direito:

I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas;

II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida;

III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar;

IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados;

V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador;

VI – água e alimentos adequados;

VII – vacinação anual contra raiva, que deverá ser ministrada por médico veterinário, que emitirá o competente certificado.

Atualmente, o Código de Roraima é a lei mais aderente ao Código da Paraíba (mais do que o Código do Amazonas), ainda que, em alguns pontos — como nas flexibilizadas restrições à caça, por exemplo — dele se afaste.

Também em 2022, o estado de Pernambuco, ainda que não afirme que animais são sujeitos de direitos, alterou o seu Código Estadual de Proteção aos Animais, de 2014, por meio da Lei 18.031/22, para acolher todos os princípios exclusivos e compartilhados do direito animal [5], o que equivale a afirmar a subjetividade jurídica animal.

Ainda em 2022, o estado do Piauí editou seu Código Estadual de Defesa e Proteção aos Animais (Lei 7.752/22), igualmente se coadunando com as características do Código de Sergipe (e do posterior Código do Rio Grande do Norte)

Em 2023, o estado de Goiás editou lei para reconhecer, na linha inaugurada por Santa Catarina, cães e gatos como sujeitos de direitos (Lei 22.031/23).

Essa lista de leis estaduais é fechada, agora, com o novíssimo Código de Direito e Bem-estar Animal do Estado do Amazonas, Lei 6.670/23, o qual, também inspirado pela codificação paraibana (e pela posterior roraimense), atribui, expressamente, direitos a todos os animais.

Animais como sujeitos de direitos no Código do Amazonas

“Art. 3º Os animais são seres sencientes e nascem iguais perante a vida, devendo ser alvos de políticas públicas governamentais garantidoras de suas existências dignas, a fim de que o meio ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida dos seres vivos, mantenha-se ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Art. 4º É dever do Estado e de toda a sociedade garantir a vida digna e o bem-estar, bem como combater os abusos e maus-tratos de animais.

Art. 5º O valor de cada ser animal deve ser reconhecido pelo Estado como reflexo da ética, do respeito, da moral universal, da responsabilidade, do comprometimento e da valorização da dignidade e diversidade da vida, contribuindo para livrá-los de ações violentas e cruéis.”

Os dispositivos legais transcritos acima são repetições, quase sem retoques, dos artigos 2º, 3º e 4º do Código da Paraíba (e 2º, 3º e 4º do Código de Roraima, ainda que este, em particular, afirme, expressamente, que os animais são sujeitos de direitos), e servem para reafirmar as bases estruturantes do direito animal nos estados: a interdição constitucional aos maus-tratos e às práticas cruéis contra animais e o reconhecimento da dignidade animal, como decorrência da sua consciência (da qual decorre a senciência, enquanto capacidade de sentir e de sofrer), conduzindo-os à sua inclusão em nossa comunidade moral e jurídica.

O mais importante, no entanto, fica por conta do seu artigo 6º, que repete, com pequenas alterações, o extraordinário artigo 5º do Código da Paraíba (um pouco menos amplo que o artigo 5º de Roraima):

Art. 6º Todo animais tem o direito:

I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas;

II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida;

III – de um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para exercer o seu comportamento natural de acordo com a sua espécie;

IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados; e

V – de um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador.

Parece evidente que não basta dizer que animais são sujeitos de direitos, sem que se especifique quais direitos esses novos sujeitos possuem. O Código do Amazonas, seguindo a tradição inaugurada pelo Código da Paraíba, e seguida pelo de Roraima, cataloga os direitos animais básicos, dotados, claramente, de fundamentalidade material.

Importante destacar que os três códigos estaduais (PB, RR e AM) respeitam o princípio da universalidade, extraído do artigo 225, § 1º, VII da Constituição,[6] ao catalogarem os direitos fundamentais animais para todos os animais, sem distinção de espécie ou de utilidade para os seres humanos.

Notas sobre o Direito Animal no Código do Amazonas
Ainda que o Código do Amazonas se destaque pela catalogação expressa de direitos animais universais (como o paraibano e o roraimense), outros dispositivos também merecem referência, alguns positivos, outros negativos:

1) O artigo 8º, § 2º da lei mantém a tendência das demais leis estaduais no sentido de apresentar um catálogo próprio e atualizado de situações que caracterizam maus-tratos a animais, como base de atuação da fiscalização administrativa, tanto do Estado, como dos seus Municípios. No extenso catálogo de 35 situações, notabilizam-se o abandono (inc. V), as rinhas de animais (inc. VIII), a engorda mecânica de animais, como para a produção do foie gras (inc. XVII), a zoofilia (inc. XXVI), a promoção de sorteios, ação entre amigos, bingos, rifas ou eventos em que constem como prêmios animais vivos  (inc. XXX) e utilização em circos e similares (inc. XXXII). Ainda assim, essa relação de situações de maus-tratos poderia ser mais extensa, caso também abrangesse outros casos de crueldade envolvendo animais explorados na pecuária, como o fizeram, corajosamente, o Código da Paraíba (art. 7º, § 2º) e o Código de Roraima (art. 8º, § 2º);

2) O artigo 19 proíbe a caça de animais silvestres, seja profissional, seja amadora, nesse sentido mais protetivo que o artigo 24 do Código de Roraima;

3) O capítulo sobre animais domésticos, iniciado no artigo 20, apresenta o regime da tutela responsável (usando, portanto, a denominação mais atual no tratamento do tema), com deveres para os tutores (artigo 21) e restrições severas para a proteção do direito à vida desses animais (artigos 23, 24 e 27). Ressente-se, no entanto, que o código permita que os tutores possam se “desinteressar” pelos seus animais domésticos, desde que garantam uma transferência adequada (artigo 22), como, aliás, também permitem o artigo 27 do Código de Roraima e o artigo 24 do Código da Paraíba;

4) O artigo 39 proíbe qualquer utilização de animais em circos ou similares;

5) Em relação à utilização de animais como meios de tração veicular, o Código de Amazonas, como o da Paraíba e o de Roraima, não proibiu tal prática cruel, mas estabeleceu uma série de requisitos que podem, de certa maneira, desestimular tal atividade, caso bem fiscalizada, inclusive pelas autoridades de trânsito (artigos 41 a 48). O ideal, de fato, seria prever mecanismos de substituição do animal, com estímulos para que a população que ainda usa animais em tração tenha meios para mudar suas opções de vida. A abolição gradativa desse meio de tração veicular é medida imperiosa, tanto do ponto de vista dos direitos animais, como dos direitos humanos;

6) Lamenta-se que o Código do Amazonas — tal como o fizeram os Códigos da Paraíba e de Roraima — ainda permita que sujeitos de direitos, como cães e gatos, possam ser objeto de comércio, como se vê pelos artigos 53 e seguintes. Cães e gatos não são animais explorados na pecuária ou na ciência. São animais dotados de capacidade jurídica plena, com o acervo mais completo de direitos animais, o que é incompatível com sua comercialização, como se fossem coisas;[7]

7) Diferentemente do que fizeram os Código da Paraíba e de Roraima, o do Amazonas omite-se quanto a disposições para a proteção de animais na pesca, na pecuária e na experimentação científica. São os animais hipervulneráveis. Não obstante, o artigo 6º do código, que cataloga os direitos animais, também é aplicável a esses animais;

8) Por fim, nenhuma disposição é apresentada para conter as cruéis vaquejadas e os lamentáveis rodeios, até porque a Constituição do Amazonas foi emendada, em 2018, na tentativa de constitucionalizar a crueldade contra os animais envolvidos em tais atividades (EC 99/2018).

É inequívoco, portanto, o processo contemporâneo de positivação dos direitos fundamentais animais, o que reforça, cada vez mais, a autonomia científica do direito animal no Brasil.


[1]             ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais: a judicialização do Direito Animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 56.

[2]             ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 63-76; 90-95.

[3]             STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.

[4]                  ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula (coord.). Comentários ao Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba: a positivação dos direitos fundamentais animais. Curitiba: Juruá, 2019.

[5]             ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 85-113.

[6]             ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 95-98.

[7]             ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Capacidade processual dos animais, cit., p. 212-214.

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor da Faculdade de Direito da UFPR, nos cursos de graduação, mestrado e doutorado, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, doutor e mestre em Direito pela UFPR, pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

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