Opinião

O princípio da unicidade orgânica e as procuradorias do Poder Legislativo

Autor

  • Ricardo Benetti Fernandes Moça

    é procurador efetivo da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo atualmente subprocurador-geral da Assembleia Legislativa do Espírito Santo e presidente da Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo (Anpal).

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22 de junho de 2024, 15h25

As funções essenciais à justiça foram tratadas em um capítulo próprio da Constituição da República, qual seja o Capítulo IV, do Título IV, não sendo funções integrantes do Poder Judiciário, porém reconhecidas como órgãos de estatura constitucional essenciais à função jurisdicional do Estado e de efetivação do nosso sistema de justiça.

Ricardo Benneti Moça, presidente da Anpal

No presente texto iremos nos ater à redação contida no artigo 132 da Constituição da República, notadamente à sua parte final, que diz caber com exclusividade aos procuradores do Estado (e do DF) a representação judicial e a atividade de consultoria e assessoramento jurídico da respectiva entidade da Federação.

O Supremo Tribunal Federal reiteradamente passou a denominar como “princípio da unicidade orgânica” ou de “princípio da unicidade da representação judicial e extrajudicial dos Procuradores do Estado” a interpretação que se dá da parte final do caput do artigo 132 da Constituição.

Precedentes

É por essa razão, que encontramos inúmeros precedentes declarando a inconstitucionalidade de normas estaduais criadoras de carreiras ou cargos isolados (efetivos ou comissionados) sem vinculação com a Procuradoria Geral do Estado para o desempenho de funções de representação judicial ou extrajudicial de órgãos e de entidades da administração pública ao qual se atrelam.

Numa análise detida desses precedentes, a primeira atenção que se chama é que de todos os precedentes até então transitados em julgado na nossa Suprema Corte de aplicação do princípio da unicidade orgânica das PGEs, o que foi declarado inconstitucional foi a criação de cargos comissionados ou efetivos de assessor jurídico, consultor jurídico e procurador jurídico, paralelos à estrutura das Procuradorias estaduais, mas pertencentes à estrutura do próprio Poder Executivo [1].

De outro lado, sempre o Supremo Tribunal Federal fez questão de trazer as exceções ao princípio da unicidade orgânica das PGEs, o que para muito além de meras exceções, em relação às Procuradorias Legislativas, significa a bem da verdade a não aplicação desse princípio [2].

Advocacia pública estadual no Legislativo

Pois bem. Passamos a nos deter, a partir de agora, à criação das Procuradorias de Assembleias Legislativa e da Câmara Legislativa do DF para demonstrar que em relação à advocacia pública estadual no Poder Legislativo, não estamos diante de uma exceção ao princípio da unicidade orgânica das PGEs, mas sim de um caso da não aplicação desse princípio por se tratar de carreira criada fora da estrutura do Poder Executivo.

O Princípio da Separação dos Poderes corresponde a um dos pilares estruturantes do Estado de Direito e, como tal, a Constituição brasileira confere-lhe tratamento de máxima relevância, tanto por qualificá-lo como princípio fundamental (CF, artigo 2º) como por alçá-lo à condição de cláusula pétrea (CF, artigo 60, § 4º, III), o que resulta na divisão das “funções estatais” entre os Poderes Constitucionais de forma autônoma e independente entre si, evitando-se a antidemocrática concentração do poder nas mãos de um único mandatário ou de um grupo de agentes políticos.

Disso decorre a autonomia institucional e administrativa dos Poderes de Estado, inclusive para promover a condução de suas atividades internas (autogoverno), desfrutando de competência constitucional para criar órgãos e dispor de quadro próprio de servidores.

É o que se depreende, em relação ao Poder Judiciário, do disposto no artigo 96, inciso I, alíneas “a” e “b”, e inciso II, “b”, c.c. o artigo 99, todas do Texto Maior. Da mesma forma, quanto ao Poder Legislativo, a Carta Republicana consagra idêntica diretriz nos moldes dos artigos 51, IV, e 52, XIII, da CF, o que se mostra extensivo, de forma expressa, às Casas Legislativas estaduais com espeque no artigo 27, § 3º, da CF.

Lição do especialista e entendimento do STF

Acerca da matéria, afigura-se assaz elucidativa o percuciente magistério do professor titular da Fadusp e ex-procurador-geral do estado de São Paulo, dr. Elival da Silva Ramos, que assim descortina a questão em relevo:

“Afirma-se que o anteprojeto circunscreve, em contraste com o artigo 132 da Constituição Federal, a atividade de consultoria e assessoramento prestada pela PGE ao Poder Executivo (e autarquias vinculadas). O que se pretende é que a PGE preste consultoria e assessoramento aos demais Poderes do Estado, o que, flagrantemente, conflita com a independência constitucionalmente assegurada a esses Poderes. Não se interpreta a Constituição aos pedaços. O artigo 132, caput, da Constituição não pode ser lido de forma dissociada do princípio da separação dos Poderes, insculpido no artigo 2º da Lei Maior e declarado cláusula pétrea em seu artigo 60, parágrafo 4º, inciso III.” Imagine-se condicionar a decisão da Mesa da Assembleia Legislativa ou da Presidência do Tribunal de Justiça a um parecer de órgão integrante da estrutura do Poder Executivo. Aliás, por essa ordem de motivos, o artigo 30 da Constituição do Estado estabelece que compete à Procuradoria da Assembleia Legislativa exercer a consultoria e o assessoramento técnico-jurídico do Poder Legislativo, assim como a representação judicial nos casos em que lhe seja dado defender, perante o Poder Judiciário, suas prerrogativas de independência ” [3] (d.n.).

Vale ressaltar, ainda a esse respeito, que os membros das PGEs subordinam-se ao princípio da hierarquia tanto na estruturação interna como em face do chefe do Poder Executivo, consoante difundida orientação pretoriana do egrégio STF, plasmada nas decisões tomadas na ADI 217-1-PB (rel. min. Ilmar Galvão), ADI 2.729-RN (rel. min. Eros Grau) e ADI 291/MS (rel. min. Joaquim Barbosa), o que reforça a incompatibilidade de a atividade consultiva desempenhada por tais instituições vir a exorbitar as raias do Poder Executivo.

E ainda que fosse aplicável — de lege ferenda — o princípio da unicidade orgânica das PGEs à criação de Procuradorias nas Assembleias Legislativas, a ideia de um órgão consultivo em “sobreposição a todos os Poderes da República” não se revelaria adequada à tessitura constitucional, mormente tendo em vista o próprio artigo 2º da Carta Federal. Nessa circunstância, a título ilustrativo, de um lado, o Poder Legislativo (atividade-fim) promoveria o controle externo fiscalizatório do chefe do Poder Executivo dos atos da administração que os pratica sob orientação de órgão jurídico a ele vinculado, de outro, o Poder Legislativo em seus atos de gestão (atividade-meio) teria de consultar o “mesmo órgão jurídico” na consecução de seus atos administrativos, o que configuraria , s.m.j.,  situação nitidamente desfuncional e conflituosa.

Observemos que o Supremo Tribunal Federal em nenhum dos seus precedentes tratando da unicidade orgânica das PGES ou da constitucionalidade da criação das Procuradorias Legislativas conferiu a uma pluralidade de órgãos jurídicos a representação judicial do Poder Legislativo a depender da matéria discutida. De forma alguma.

Jurisprudência

A representação judicial das Casas Legislativas é sempre de sua procuradoria própria. Contudo, o seu ingresso em juízo, sua capacidade de ser parte, é excepcional, na defesa de suas prerrogativas institucionais. A discussão é tipicamente processual e não da aplicação do princípio da unicidade orgânica das PGEs.

Não sendo o caso de ingresso no polo ativo ou passivo, ou seja, hipóteses de proteção das prerrogativas institucionais, esses órgãos não gozam de legitimidade para estarem em juízo, consequentemente ingressará o ente federativo ao qual pertence, cuja representação processual compete à Procuradoria do Executivo, o que se dá, na maioria das vezes, nas matérias tipicamente fazendárias e patrimoniais. Todavia, definido a legitimidade processual a algum desses órgãos, competente apenas a sua procuradoria o exercício postulatório.

No que se refere às Casas Legislativas, estão estas constitucionalmente autorizadas a atuar em juízo em nome próprio para promover a defesa de suas competências, prerrogativas, de sua independência, autonomia, de seu pleno funcionamento e de seus interesses peculiares.

A título de exemplo, cite-se o amplo contencioso judicial em torno do funcionamento das Comissões Parlamentares de Inquérito, bem como a jurisdição constitucional em torno do controle concentrado de constitucionalidade das normas emanadas pelo Poder Legislativo, que, não é incomum, pode girar em torno de questões concernentes à iniciativa parlamentar para deflagrar o processo legislativo de proposições infraconstitucionais ou, mesmo, de emenda à Constituição, ou, ainda, em torno dos limites de o Parlamento emendar projeto de lei de autoria do Chefe do Poder Executivo.

Da mesma forma, há extensa jurisprudência reconhecendo a atuação da Casa Legislativa em nome próprio, na defesa das prerrogativas parlamentares, nas hipóteses de imunidade material (inviolabilidade) e formal (CF, artigo 53, caput, e § 3º), a exemplo do decidido no RMS nº 8967-SP  pelo Colendo STJ, no HC nº 83.162-1/SP , no RE 987.930/SP , pela Corte Suprema, posto que as franquias constitucionais visam resguardar o livre exercício do mandato no plano individual bem como a autonomia e independência do Poder Legislativo, no plano institucional.

Recentemente, nos embargos de declaração da ADI nº 2.820-ES, ficou bastante claro que o critério de legitimidade da atuação da Procuradoria da Assembleia Legislativa diz respeito ao conteúdo e à finalidade da atuação e jamais a existência obrigatória de um conflito com outro Poder, in verbis:

“3. A legitimidade da atuação da Procuradoria da Assembleia Legislativa na defesa da autonomia e independência do órgão alcança o resguardo das prerrogativas, competências e funcionamento da Casa e de seus membros. Essas atividades podem ocorrer em feitos de natureza jurídica contenciosa e consultiva, compreendendo os de caráter extrajudicial.

  1. O critério de legitimidade da atuação da Procuradoria da Assembleia Legislativa diz respeito ao conteúdo e à finalidade da atuação. Possibilidade de defesa das prerrogativas da Casa Legislativa a cargo de sua Procuradoria-Geral não só em relação aos Poderes Executivo e Judiciário, como também frente a órgãos de envergadura constitucional e dotados de independência, como Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Contas”. (Embargos de Declaração na ADI n° 2.820, rel. min. Nunes Marques, Tribunal Pleno, j. 30/10/2023, DJe 4/12/2023).

Em arremate, de um estudo detalhado dos precedentes do Supremo Tribunal Federal aplicando o princípio da unicidade orgânica das PGEs, podemos concluir que:

  1. Trata-se de princípio aplicável única e exclusivamente as normas criadoras de carreiras ou cargos isolados (efetivos ou comissionados) sem vinculação com a Procuradoria-Geral do Estado para o desempenho da representação judicial e extrajudicial nos órgãos e entidades estruturados dentro do próprio Poder Executivo;
  2. O princípio da unicidade orgânica das PGEs não se aplica as Procuradorias criadas nas Assembleias Legislativas Estaduais e na Câmara Legislativa do DF;

O assessoramento jurídico, a representação judicial e extrajudicial das Casas Legislativas no âmbito dos Estados se dá por órgão de Advocacia Pública própria, o que se mostra vital ao altaneiro funcionamento institucional do poder.

 


[1] Vide ADIs 6.252 e 5.109, julgadas pelo Plenário da Suprema Corte..

[2] Seriam as seguintes exceções: a) as carreiras de advocacia estadual criadas anteriores a CF/88 por força do ADCT 69; b) a possibilidade de existência de Procuradorias próprias nos Poderes Legislativos, Judiciário e Tribunais de Contas em razão do postulado da separação dos poderes; c) as advocacias das empresas públicas e sociedades de economia mista estaduais e d) as Procuradorias das Universidades Públicas Estaduais em razão da autonomia universitária consagrada no art. 207 da CF/88.

[3] http://www.conjur.com.br/2012-ago-23/elival-ramos-criticas-lei-organica-pge-nao-fundamento. Acesso em 8/6/2016.

Autores

  • é procurador efetivo da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, atualmente subprocurador-geral da Assembleia Legislativa do Espírito Santo e presidente da Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo (Anpal).

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