Opinião

Princípio da segregação das funções nas licitações e nos contratos públicos

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  • é advogado no Ibaneis Advocacia e Consultoria mestrando em Direito das Relações Sociais pelo Centro Universitário do Distrito Federal e especialista em Direito Previdenciário.

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8 de junho de 2024, 9h28

O princípio da segregação das funções foi positivado em nosso ordenamento jurídico com o advento da Lei nº 14.133/2021 que, em seu artigo 5º, assim dispôs:

Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Por sua vez, o artigo 7º do referido diploma legal, ao tratar do tema assim estabelece:

Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos:

(…)

§ 1º A autoridade referida no caput deste artigo deverá observar o princípio da segregação de funções, vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação.

§ 2º O disposto no caput e no § 1º deste artigo, inclusive os requisitos estabelecidos, também se aplica aos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração.

Portanto, apesar de já ser um tema bastante debatido no âmbito do tema licitações e contratos, o legislador ordinário optou por positivá-lo na nova lei de licitações, especialmente em decorrência da sua íntima ligação com outros princípios também positivados, tais como o da impessoalidade, da moralidade, da eficiência e da probidade administrativa.

No âmbito infraconstitucional, o artigo 12 do Decreto nº 11.246/2022 trouxe o conceito do princípio em análise, bem como critérios para sua aplicação. Vejamos:

Art. 12. O princípio da segregação das funções veda a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na contratação.

Parágrafo único.  A aplicação do princípio da segregação de funções de que trata o caput:

I –  será avaliada na situação fática processual; e

II – poderá ser ajustada, no caso concreto, em razão:

a) da consolidação das linhas de defesa; e

b) de características do caso concreto tais como o valor e a complexidade do objeto da contratação.

Ainda no que diz respeito a definição conceitual do referido princípio a doutrina estabelece da seguinte forma:

Marçal Justen Filho

O princípio da segregação de funções reflete a concepção da limitação do poder pelo próprio poder. Implica a vedação à concentração de atribuições em um único sujeito e a exigência do fracionamento do exercício de um poder decisório entre uma multiplicidade de agentes estatais.

(…)

A segregação de funções implica o fracionamento do exercício das atribuições inerentes a essa competência e a sua distribuição entre órgãos e agentes diversos. Há uma redução da concentração de atribuições e a pluralidade de sujeito envolvidos propicia a redução do poder individual, ampliando-se os mecanismos de controle da atividade administrativa.[1]

Manual de orientações técnicas da atividade de auditoria interna governamental do Poder Executivo Federal

Segregação de funções: consiste na separação de funções de tal forma que estejam segregadas entre pessoas diferentes, a fim de reduzir o risco de erros ou de ações inadequadas ou fraudulentas. Geralmente implica dividir as responsabilidades de registro, autorização e aprovação de transações, bem como de manuseio dos ativos relacionados[2].

No mesmo sentido, finalizando o aspecto conceitual do princípio em discussão, o Tribunal de Contas da União possui acórdão no seguinte sentido:

TCU – Acórdão 5615/2008

1.7.1. Que observe em suas unidades gestoras o princípio de segregação de funções que consiste na separação de funções de autorização, aprovação, execução, controle e contabilização das operações, evitando o acúmulo de funções por parte de um mesmo servidor[3];

Da leitura e análise de todos os conceitos retro mencionados, verifica-se que a finalidade essencial do princípio da segregação das funções é evitar a ocultação de erros e a prática de fraudes, uma vez que ao impossibilitar a prática de atos distintos pelo mesmo servidor a norma traz possibilidade a maior fiscalização, ampliando-se, pois, os mecanismos de controle da atividade administrativa.

Ressalte-se que, apesar de ser essa a finalidade essencial do princípio da segregação das funções, ele pode ser também interpretado com vistas a assegurar a especialização no desempenho de funções, evitando atuações generalistas no âmbito da atividade administrativa[4].

Ressalte-se que a aplicação do princípio da segregação das funções não deve ter uma rigidez absoluta, devendo ser observados, conforme estabelece o já citado parágrafo único do artigo 12 do Decreto nº 11.246/2002, os seguintes critérios: análise situação fática processual; ajuste de acordo com a consolidação das linhas de defesa e a característica do caso concreto tais como o valor e a complexidade do objeto da contratação.

Nesse contexto é que a aplicação do referido princípio deve se dar sempre em conjunto com os princípios da eficiência, da razoabilidade e do interesse público [5].

Assim sendo, verifica-se que sempre que for aplicar o princípio em discussão, deve o administrador analisar o caso concreto, podendo, a depender do caso, não se limitar a uma interpretação restritiva da norma de regência, adotando-a com um fim em si mesmo, mas interpretando-a de forma sistemática com os demais princípios norteadores das licitações e dos contratos, de modo a aprimorar a moralidade e a probidade administrativa, mas sem ignorar a eficiência e o interesse público buscado com o procedimento licitatório [6].

Citamos exemplo prático proposto por André Baeta em que se mostraria adequada a aplicação do princípio da segregação das funções:

“No caso mencionado, em que um servidor público trabalhou meses na concepção ou análise de um projeto básico de uma obra, conhecendo-o em todas as suas minúcias, não parece razoável atribuir a fiscalização da obra a outra agente com total desconhecimento do objeto ou que não detêm habilitação legal ou conhecimento técnico necessários.

Na prática, estarão sendo desperdiçados recurso públicos para que o novo agente percorra todo uma curva de aprendizado quando o órgão licitando já dispunha de outro servidor com grande conhecimento do objeto que será fiscalizado [7].”

Note-se que no exemplo em referência entendemos que não há uma mitigação propriamente dita do princípio da segregação das funções, mas sua correta aplicação em decorrência da adequada interpretação da situação fática [8], bem como da precisa aplicação diante do caso concreto tendo em vista a sua complexidade [9], de modo a afastar o conceito restritivo do princípio em discussão, que visa apenas a coibir erros e ocorrência de fraude, aplicando-o sob a vertente da especialização no desempenho das funções [10], em harmonia com os princípios da eficiência e do interesse público.

Outra possibilidade de mitigação do princípio em análise de modo a possibilitar o acúmulo de funções pode se dar quando a atuação do agente público se der em múltiplas funções, mas em processos de contratação distintos, ou, ainda que envolva o mesmo processo, a atuação ocorrer por intermédio de uma equipe/colegiado, de modo que o agente público não tome decisões de forma isolada a respeito de determinada fase/etapa do processo administrativo [11].

Portanto, entendemos, em conclusão ao presente artigo, que o princípio da segregação das funções, apesar da sua enorme relevância no que diz espeito a observância dos princípios da moralidade, probidade e impessoalidade, não deve ser interpretado de forma restritiva, devendo ser aplicado sempre analisando-se o caso concreto, suas peculiaridades, em harmonia com os princípios da eficiência e do interesse público.

 


[1] Justen Filho, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas, 2ª Ed, São Paulo, Thomson Reuters, Brasil, 2023, Pp.131-132

[2]Manual de Orientações Técnicas da Atividade de Auditoria Interna Governamental do Poder Executivo Federal,Brasília,2017,P.138, aqui, acesso em 3 de junho de 2024.

[3] NÚMERO DO ACÓRDÃO 5615/2008 – SEGUNDA CÂMARA – RELATOR RAIMUNDO CARREIRO – PROCESSO – 009.879/2004-8

[4]Justen Filho, Marçal, op.cit, p.133.

[5] BAETA, André, As dificuldades e Pontos Polêmicos para o pleno atingimento do princípio da segregação das funções, Apostila 2024, Congresso Nacional de Licitações e Contratos, p. 22-23.

[6] Ibdem, p.23.

[7] BAETA, André, op. cit.p.23.

[8] Decreto 11.246/22:

Art. 12.  O princípio da segregação das funções veda a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na contratação.

Parágrafo único.  A aplicação do princípio da segregação de funções de que trata o caput:

I –  será avaliada na situação fática processual;

[9] Idem

Art. 12.  (…)

Parágrafo único.  A aplicação do princípio da segregação de funções de que trata o caput:

(…)

II – poderá ser ajustada, no caso concreto, em razão:

(…)

  1. b) de características do caso concreto tais como o valor e a complexidade do objeto da contratação.

[10] Justen Filho, Marçal, op.cit, p.133

[11] https://zenite.blog.br/nova-lei-de-licitacoes-e-a-segregacao-de-funcoes/

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal e autor dos livros: “Prescrição e Decadência dos Benefícios Previdenciários" e “A Falência do Custeio da Previdência à luz da sociedade de risco na indústria 4.0 e da nova demografia brasileira".

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