Caminho torto

Moralismo e oportunismo explicam falta de investimentos em ressocialização

Autor

27 de janeiro de 2024, 9h51

Uma pesquisa feita pela Plataforma Justa, especializada em dados sobre o Poder Judiciário, mostrou que existe no Brasil um abismo entre o investimento em policiamento e sistema prisional e o que é destinado à política de ressocialização de ex-detentos.

Em média, segundo o levantamento, para cada R$ 4.389 investidos em policiamento e R$ 1.050 em sistema prisional, apenas R$ 1 é gasto na ressocialização de egressos do sistema prisional. O Rio de Janeiro é o estado que mais gasta com polícias, destinando 10,8% de seu orçamento para despesas com as Políticas Militar e Civil.

Pesquisa da Justa aponta falta de investimentos em ressocialização de presos

Esses números integram o estudo “O funil de investimento da segurança pública e prisional no Brasil”. Em nota divulgada à imprensa, a diretora-executiva da Justa, Luciana Zaffalon, afirmou que é preciso inverter o funil de investimentos no sistema de segurança pública.

“Os estados gastam cada vez mais com o encarceramento, mas se preocupam muito pouco com políticas para as pessoas que cumprem pena e deixam a prisão. Além disso, os recursos distribuídos para as polícias estão concentrados no policiamento ostensivo, realizado pela Polícia Militar, deixando de lado o trabalho investigativo e a produção de provas, realizados pelas Polícias Civil e Técnico-Científica. Os dados evidenciam uma prioridade de distribuição orçamentária em políticas que comprovadamente não dão resultado.”

A revista eletrônica Consultor Jurídico ouviu defensores públicos, advogados e membros do Ministério Público sobre o tema e a impressão geral é que é preciso repensar a política de segurança pública e prisional no país.

“O investimento da forma como é realizado pelo Estado não impacta de maneira relevante na diminuição da violência. O que vemos é um investimento em policiamento ostensivo e repressivo e pouco investimento em investigação e políticas públicas mais benéficas”, afirma o defensor público Diego Rezende Polachini, que atua no Núcleo de Situação Carcerária de São Paulo.

Polachini explica que, além de não contarem com políticas públicas de reinserção eficazes, os egressos muitas vezes recebem uma pena de multa cujo não pagamento se torna uma barreira para o acesso aos seus direitos básicos de cidadania, como a possibilidade de votação e a regularização de documentos.

Moralismo e oportunismo eleitoral
A advogada criminalista e estudiosa de direitos humanos Juliana Bertholdi acredita que a escassez de investimentos em políticas de reinserção de egressos do sistema prisional é motivada, em parte, pelo moralismo e pelo senso comum de não enxergar o detento, ou ex-detento, como cidadão digno de direitos.

“A gente precisa pensar no quanto o investimento na população carcerária é visto de uma forma negativa. Então, quando se fala em investimento voltado à população carcerária ou aos egressos, a reação da população muitas vezes segue uma lógica de que existem investimentos mais urgentes. É a ideia de que o Estado vai gastar com um bandido, quando na verdade o Estado vai investir em segurança pública.”

Além dos aspectos morais, outro fator que colabora para a falta de uma política pública séria para os egressos, segundo ela, é o oportunismo eleitoral.

“Levando em conta que a questão da segurança pública recebe grande destaque nas propagandas eleitorais, aliado à falta de conscientização de grande parte da sociedade e dos atores políticos envolvidos, isso (falta de investimentos em políticas para egressos) não surpreende. Existe uma ideia enraizada de que a segurança pública está estritamente relacionada à resposta criminal contra a prática do crime. Ou seja, acredita-se que a segurança pública diz mais respeito à punição aplicada para aquele que pratica um ilícito do que efetivamente a todas as consequências posteriores da prática desse crime na sociedade”, afirma o advogado Frederico Brusamolin.

Entendimento parecido tem o defensor público Glauco Mazetto. Segundo ele, o Estado parte da premissa de que o combate ao crime se dá exclusivamente, ou prioritariamente, com a prisão. “A forma mais rápida de alcançar isso é mediante a atuação da Polícia Militar, já que ela atua principalmente em prisões em flagrante. Daí temos um investimento muito alto na PM, em detrimento, por exemplo, da Polícia Civil e de egressos.”

Juliana chama a atenção para o fato de que a falta de investimentos em políticas para egressos vai na contramão da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), que tem o foco na ressocialização do preso. “Tudo o que está na LEP, ao menos em tese, foi construído para que a pessoa que está dentro daquele sistema prisional, paulatinamente, vá se reintegrando à sociedade. Mas sabemos que, na prática, a LEP não é aplicada da maneira como deveria. E quando a gente vê que a política para egressos recebe um orçamento tão baixo, fica muito claro por que a gente tem uma reincidência tão alta. Essas pessoas nunca têm a oportunidade de efetivamente voltar a integrar a sociedade.”

Caminhos
O defensor público Mateus Moro entende que a atual política para segurança pública e o sistema prisional no país não é pautada por aspectos técnicos e promove o encarceramento em massa. “A política pública não é feita de forma técnica. O pensamento lógico seria o de que o investimento no egresso, com capacitação e direitos sociais, iria fazer com que essa pessoa não fosse reincidente.”

Especialista defende incentivo fiscal para contratação de ex-detentos

Moro destaca que boa parte das pessoas que entram no sistema prisional cometeu crimes patrimoniais como roubo e furto, ou crimes relacionados ao tráfico de drogas. Em comum, todos esses delitos têm o fato de serem costumeiramente voltados para angariar algum tipo de renda.

“Então, para mim, parece lógico pensar em distribuição de renda, direitos sociais, saúde, habitação etc. Você teria de uma forma técnica um investimento em menos criminalidade.”

Antonio Henrique Graciano Suxberger, promotor de Justiça do Distrito Federal e professor titular do mestrado e do doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (CEUB), acredita que é preciso pensar no tema sem cair na tentação de acreditar que o investimento em segurança pública é, de alguma maneira, um adversário da política para egressos do sistema prisional.

“É preciso compreender o caráter complexo dessas políticas destinadas aos egressos do sistema prisional. Existe uma dificuldade do ponto de vista federativo porque são políticas implementadas nos níveis estaduais e municipais, embora geralmente a gente apresente esse problema como nacional.”

O promotor entende que a chave para a construção de políticas de ressocialização efetivas é entender as necessidades locais e o contexto em que o detento ou egresso está inserido. “Outro ponto aqui também é a necessidade de se discutir estímulos como incentivos fiscais ao empresariado que eventualmente se engaje em oferecer trabalho a egressos do sistema prisional. Nós temos uma ampla política tributária de isenções, como as gozadas por entes religiosos, mas essa possibilidade é um pouco bloqueada quando se trata de políticas para egressos.”

Por fim, a criminalista Dora Cavalcanti defende que destinar mais recursos para o apoio a egressos deve ser visto como um investimento, e não como gasto. “Investimento certeiro em segurança pública, pois tem repercussão direta nos índices de reincidência. Esse estudo da Plataforma Justa é muito relevante e chega no momento em que o governo deve formular um plano para a implementação da ADPF do sistema prisional (ADPF 347)”, lembra a advogada.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!