Opinião

A solicitação de medidas provisórias pela África do Sul contra Israel na CIJ

Autor

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

19 de janeiro de 2024, 15h13

No apagar das luzes de 2023, a África do Sul submeteu à apreciação da Corte Internacional de Justiça (CIJ) um caso contra Israel por seus atos na Faixa de Gaza, os quais violam, ao seu ver, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, o que é veementemente negado pelo Estado respondente. No pedido, requisitou que medidas provisórias fossem outorgadas pela Corte com o objetivo de que esta ordene a suspensão das operações militares levadas a cabo por Israel em e contra Gaza, protegendo consequentemente os seus residentes de atos genocidas.

A solicitação de medidas provisórias no âmbito da CIJ não são incomuns. Foram mais de 40 ordens concedidas pela Corte até os dias de hoje. Nos termos do artigo 41.1 do Estatuto da Corte, estas são pleiteadas com o propósito de resguardar os direitos das partes de consequências irreparáveis enquanto o mérito ainda não for decidido. Trata-se, portanto, de uma medida urgente, cujo risco deve ser avaliado pela Corte (CIJ, 2022, parágrafo 66).

Os requisitos para solicitar as medidas provisórias são três, tal como explicitamente exposto pela Corte no caso Bélgica x Senegal (CIJ, 2009, paras. 56-57): as medidas a serem outorgadas devem buscar tutelar direitos que uma das partes do caso possuam; os argumentos trazidos pelo Estado aplicante devem ser plausíveis, permitindo que se conclua pela jurisdição da Corte sobre o caso; e as medidas solicitadas devem ser consideradas necessárias para a proteção de tais direitos, devendo, portanto, haver um link entre eles.

Tal como ocorreu recentemente no caso envolvendo Ucrânia e Rússia (2022), em que a Corte apreciou o pleito ucraniano de medidas provisórias com base na mesma convenção utilizada pela África do Sul, presume-se que a Corte tenha jurisdição sobre o caso na medida em que ambos os países envolvidos na contenda são seus signatários. Israel ratificou a Convenção em 9 de março de 1950, e África do Sul, em 10 de dezembro de 1998. E nos termos do artigo IX da Convenção, tem-se que as controvérsias surgidas no âmbito do tratado serão resolvidas pela CIJ, a não ser que existam reservas ao citado artigo, como ocorreu no caso Estados Unidos x Iugoslávia (CIJ, 1999, para. 25) — o que não é aqui o caso.

Há, porém, duas grandes diferenças entre os casos russo-ucraniano e o aqui em apreço, os quais importam para verificar o cumprimento dos requisitos 1 e 2 acima apontados.

A primeira se refere à existência de uma disputa. Cabe referir que a existência de uma disputa é um dos três requisitos que devem ser satisfeitos preliminarmente para que a Corte avance posteriormente para a análise do mérito. Porém, no caso da Convenção de 1948, a  existência de uma disputa é uma condição explicita constante no aludido artigo IX, devendo estar presente para que a Corte tenha jurisdição com base no referido tratado até mesmo para outorgar as medidas provisórias, sobretudo, quando não há declarações das partes ao artigo 36.2 do Estatuto da Corte (CIJ, 2016, para. 36).

Uma disputa, como a Corte mesmo afirmou no caso das Ilhas Marshall contra o Reino Unido,  é um claro desacordo entre as partes litigantes em relação a um ponto legal ou fático (CIJ, 2016, para. 37).  Ou seja, as partes devem apresentar olhares distintos a certa obrigação internacional. Trata-se, ainda, de uma “oposição positiva”, como pontuou a Corte no caso South West Africa (CIJ, 1962, p. 328) e como bem lembrou Malcolm Shaw, representante legal de Israel perante a corte no caso em apreço durante a audiência realizada no dia 12 de janeiro. Isso significa que não basta uma parte dizer que ela existe; mas a outra deve ativamente se opor a ela. Ao contrário, tratar-se-ia de uma “unispute” — termo trazido pelo jurista.

Uma da formas de manifestação desta adversidade é justamente a parte aplicante buscar a parte respondente na tentativa de solucionar a controvérsia por vias diplomáticas antes de recorrer ao fórum internacional, como bem se pontuou no caso Colômbia x Nicarágua (CIJ, 2016, para. 72). Outra forma é atestar que o Estado respondente estaria ciente da existência de uma controvérsia antes da propositura do caso (CIJ, 2016, para. 73), o que pode ser feito simplesmente pela comprovação de sua falha em replicar/contestar os argumentos apresentados quando assim se solicitou diplomaticamente, nos termos apontados pela Corte no caso Geórgia x Rússia (CIJ, 2011, para. 30).

No caso em tela, este é um ponto em aberto, pois, se de um lado África do Sul enviou à Israel uma note verbale à Israel questionando-a por sua conduta em Gaza [1], a qual não foi respondida, como assinalou no seu memorial (para. 13), por outro, por tê-lo feito em 21 de dezembro, oito dias antes de protocolar a ação na CIJ, compreende-se o prazo exíguo que o país respondente detinha para fazê-lo, como frisou Shaw na sua sustentação oral.

A segunda concerne a propositura da ação. Enquanto no caso russo-ucraniano, o Estado atingido — Ucrânia — é que submeteu o caso para a corte; aqui não foi a Palestina, que assim agira, em que pese pudesse fazê-lo por igualmente ser signatária da Convenção desde 2 de abril de 2014. Assim sendo, para além de jurisdição, impende esclarecer a existência de standing, ou seja, a existência um interesse legal por parte da África do Sul em relação às diversas violações de direitos que ocorrem no território palestino, que lhe permita ir até a Corte e argumentar em seu nome. E este interesse advém do fato de todos os Estados-Parte da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948 deterem uma obrigação erga omnes inter partes para seguir o que ela prescreve, em particular, a prevenção e punição do crime de genocídio, que é o seu objetivo, nos termos do artigo I.

Em termos práticos, uma vez que o Estado aplicante demonstre a plausibilidade do cometimento de genocídio por parte de outro signatário, independentemente do local do crime ou contra quem este é cometido, cumprir-se-ia o citado requisito. Afinal, como bem pontuou a Corte na Opinião Consultiva de 1951 sobre as reservas ao tratado aqui em comento, todos os Estados-Parte apresentam um interesse comum de evitar o cometimento de genocídio (p. 23).

Situação esta que, aliás, tampouco é inédita haja vista Gâmbia ter apresentado uma ação com pedido de medidas provisórias perante a Corte contra Mianmar nestes mesmos termos (CIJ, 2020, para. 40 e 42). Neste caso, Gâmbia apresentou uma série de evidências que comprovariam a intenção genocida por parte de Mianmar contra a população rohingya no país. Na decisão que outorgou as medidas, a Corte se pautou não só pelos argumentos gambianos, mas também em resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) que apontavam para a ocorrência de crimes graves de direito internacional, incluindo atos genocidas (paras. 53-55), de modo que a argumentação do Estado aplicante seria, sim, plausível (para. 56).

Já no caso entre África do Sul e Israel, aquele apresentou em seu memorial nove páginas de manifestações de oficiais israelenses que denotam a intenção genocida (para. 101) de suas condutas — o que foi igualmente reforçado durante a audiência do dia 11 de janeiro [2]. Nesta, inclusive, o ministro da Justiça do país, Ronald Lamola, chegou a afirmar que os atos sistemáticos de opressão e violência não teriam iniciado como resposta ao ataque do Hamas do dia 7 de outubro de 2023, mas há 76 anos; e que desde 2004, quando Israel passou a exercer controle sobre Gaza, a situação vem se deteriorando cada vez mais, chegando a um ponto inaceitável, especialmente à luz dos artigos II [3] e III [4] da Convenção de 1948.

Pontualmente, sustentou a África do Sul que Israel estaria cometendo genocídio haja vista a realização de atos deliberados [5] contra os palestinos em Gaza, causando a morte massiva de civis, em especial de mulheres e crianças [6], as restrições de água e comida, os deslocamentos forçados e o sofrimento físico e moral da população palestina, além dos atentados contra alvos indisponíveis em uma ofensiva militar, em especial, do sistema de saúde, gerando ainda mais óbitos.

Ainda, para corroborar com o argumento sul-africano, importa frisar o apoio que o país recebeu de diversos experts dos procedimentos especiais da ONU, os quais já vinham apontando em seus pareceres diversas condutas antijurídicas por parte de Israel ao longo dos anos. Isso é especialmente importante quando se observa a relevância de pareceres de missões fact-finding da ONU para a concessão de medidas provisórias no caso Gâmbia x Mianmar (CIJ, 2020,  para. 27), como referido supra.

Por outro lado, afirmou Israel que as alegações sul-africanas não apresentaram, com clareza, a intenção genocida que é necessária para que as suas condutas sejam consideradas como tal à luz da convenção. Ademais, insistiu que seus atos são pautados pelo seu direito inerente de auto-defesa aos ataques do dia 7 de outubro [7] e que buscam minimizar as mortes de civis, dando, para tanto, avisos à população e orientando suas tropas militares. Por isso, ao seu ver, as suas condutas seriam legais e proporcionais aos olhos do direito internacional humanitário. Afinal, como expressou Shaw perante à CIJ, nem todo conflito é “genocidal”.

Outrossim, cabe relembrar que para a análise das medidas provisórias, não é necessário que a Corte pondere sobre a violação de direito, de fato, pois isso só ocorrerá na análise de mérito. Logo, a Corte deve apenas ponderar sobre a sua plausibilidade, como bem frisou no caso Catar x Emirados Árabes Unidos (para. 43-44).

Destarte, se de um lado a África do Sul tem o direito de questionar a conduta atentatória à Convenção de 1948 por ser parte dela, assim como Israel (requisito 1), de outro, a plausibilidade da ocorrência de genocídio demonstrada pela África do Sul parece bastante contundente, particularmente pelas declarações de autoridades e números do conflito (requisito 2). O ponto de inflexão, porém, resta na existência de uma disputa entre as partes litigantes.

Já em relação ao item 3 para a concessão de medidas preliminares, o questionamento que este requisito envolve seria o seguinte: de que maneira a proteção do direito (no caso, a proibição do cometimento de genocídio) se relaciona com o que se solicita com as medidas provisórias (no caso, a suspensão das operações militares conduzidas pelas forças israelenses em e contra Gaza)?

Em relação a isso, novamente mostra-se imperioso citar o caso Ucrânia x Rússia (2022). Nos para. 58-60 da decisão que outorgou medidas preliminares, a Corte confirmou a ilegalidade do uso unilateral da força russo para prevenir ou punir um alegado genocídio cometido pelos ucranianos em Luhansk e Donetsk. Apesar de não ser exatamente essa a situação, pois Israel é que estaria cometendo genocídio através do uso da força, a Corte trouxe uma importante reflexão de que quaisquer atos realizados pelos Estados devem estar de acordo com a Carta da ONU, que proíbe o uso da força e promove a solução pacífica de controvérsias. Com isso, considerando que os atos armados de Israel em sede de legítima defesa causam, potencialmente, genocídio, tem-se que a suspensão daqueles igualmente cessariam este, havendo, portanto, o necessário link.

Por conseguinte, verifica-se que, se seguir os seus precedentes, a Corte só não outorgará as medidas provisórias pleiteadas pela África do Sul caso entenda não haver uma disputa entre os dois países. Isso, pois, os demais requisitos estão presentes.


[1] Não é necessário que o Estado aplicante cite o tratado que será usado como base argumentativa posteriormente perante a CIJ, como, por exemplo, no caso em comento, a Convenção para a Prevenção e punição de genocídio, como frisou a Corte no caso das Atividades Militares e Paramilitares na e contra a Nicarágua (CIJ, 1984, para. 83).  Basta que se apresente com clareza o assunto.

[2] Por seu caráter de urgência, a sua apreciação precede a de casos pendentes perante a Corte, nos termos do art. 74 das Regras da Corte. Por essa razão é que nos dias 11 e 12 de janeiro a Corte se reuniu para ouvir os argumentos orais de ambos os países.

[3] Art. II. Na presente Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

[4] Art. III. Serão punidos os seguintes atos: a) O genocídio; b) O acordo com vista a cometer genocídio; c) O incitamento, direto e público, ao genocídio; d) A tentativa de genocídio; e) A cumplicidade no genocídio.

[5] No caso Bósnia Herzegovina x Sérvia, a Corte aponta que “matar” e “causar prejuízo mental ou físico sério” devem ser intencionais, conscientes e deliberados (CIJ, 2007, para. 186). Ademais, para a CIJ, a fim de que genocídio se configure, é necessário apresentar a intenção precisa (para. 187). Este “algo a mais” ao ato deliberado, chamado de dolus specialis, é essencial segundo a Corte. Segundo ela,  o genocídio “é um ato extremo de perseguição e altamente desumano”, que não pode ser confundido com outras razões ou motivos, devendo ser, por isso, claro. Neste caso, porém, a Corte teceu que infligir deliberadamente nas condições de vida de um grupo para promover a sua destruição física no todo ou em parte poderiam ser considerados atos genocidas, desde que provado, ainda, o aludido dolus specialis na realização da conduta pelo agente, a não ser que “uma demonstração convincente acerca da existência de um plano geral arquitetado para tal fim” (para. 373) seja apresentada. Para mais sobre essa sentença, v. aqui.

[6] Os números apresentados no memorial soa: 247 palestinos mortos por dia, sendo 117 crianças. Ainda, há10 crianças com ao menos um membro amputado por dia (muitos, sem anestesia). Criou-se, por fim, a sigla WCNSF – wounded child, no surviving family.

[7] Segundo Tal Becker, um dos representantes de Israel na CIJ e o primeiro a falar em seu nome, quem estaria sendo objeto de um genocídio é Israel, afirmando na audiência do dia 12 de janeiro que seria absurdo negar a Israel a defesa de seus cidadãos contra uma organização que almeja aniquilá-los. Por isso, para ele, conceder as medidas provisórias à África do Sul seria uma distorção da Convenção de 1948.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e Direito do Consumidor da UFRGS e professora do PPGD/UFU e do PPGRI/UFSM, mestre pela Unisinos. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, membro da ILA-Brasil e do Brasilcon.

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