Opinião

O conflito entre Israel e o Hamas à luz do Direito Internacional

Autor

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

23 de outubro de 2023, 19h33

O último dia 7 de outubro marcou o início de mais um capítulo da triste crise que assola o Oriente Médio desde 1947, quando da criação do Estado de Israel por meio da Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas).

Isso porque, os ataques do grupo terrorista islâmico Hamas geraram uma contraofensiva sem precedentes por parte de Israel no século 21, que já vitimou 5.185 pessoas (3.785 do lado palestino e 1.400 do lado israelense), e deixou mais de 12.000 feridos.

ONU
Diplomata brasileiro Oswaldo Aranha presidiu 2ª Assembleia Geral da ONU, que votou plano que resultou na criação de Israel
ONU

Apesar de diversas análises desde a política internacional poderem ser feitas, desde o olhar do Direito Internacional, este conflito, porém, apresenta diversas questões que devem ser avultadas para uma melhor compreensão acerca da sua (i)legalidade à luz do Direito Internacional. Vejamos sete delas.

1) A contraofensiva israelense, sob o manto do direito à legítima defesa, a qual, inclusive, fez com que os Estados Unidos rechaçassem uma resolução clamando por um cessar fogo no âmbito do Conselho de Segurança da ONU em 18 de outubro, não deveria prosperar. Em que pese a Carta da ONU preveja no artigo 2(4) e no artigo 51 o direito de legítima defesa, este só é aplicável contra Estados que tenham cometido um ataque armado, nos termos da Resolução 3314/1974 da Assembleia Geral da ONU. E o Hamas não é um Estado — trata-se de um grupo militante islâmico que prega a destruição de Israel, sendo por muitos considerado um grupo terrorista, a exemplo dos Estados Unidos. Logo, o uso da força "tradicional" contra o citado grupo não segue o prescrito pelo Direito Internacional da Guerra (jus ad bellum).

2) O Direito Internacional não apresenta uma definição única de terrorismo. São mais de 13 Convenções no âmbito internacional que versam sobre terrorismo, sem que, porém, uma definição única seja apontada, fazendo com que cada país apresente a sua própria definição. É por isso que terrorismo é considerado um crime transnacional — e não internacional, como aqueles crimes que são da competência do Tribunal Penal Internacional (crime contra humanidade, crime de guerra, genocídio e agressão). Nesse sentido, a classificação do Hamas como grupo terrorista por uns e por outros não é compreensível desde o Direito Penal Internacional.

3) Um ponto de atenção, contudo, é que o Hamas é o governo de facto da Faixa de Gaza. Isso significa que ele controla o território e exerce sua autoridade sobre as pessoas que ali se encontram. Governo é um dos quatro elementos formadores de Estado (povo, território, governo e soberania), mas isso não significa que o Hamas seja o representante da Palestina como um todo. O território do Estado da Palestina, reconhecido pela Assembleia Geral da ONU enquanto um país não membro da Organização em 2012, é dividido em dois: a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Enquanto o primeiro é governado pelo Hamas desde 2006, o segundo é governado pela Autoridade Nacional da Palestina (ANP), que ainda é o representante legítimo segundo o direito internacional para representar os interesses dos palestinos. Entretanto, quaisquer negociações a serem realizadas com a ANP no plano internacional provavelmente terão efeito limitado na Faixa de Gaza, justamente por esta ainda não exercer sua autoridade naquela localidade, tal como acordado junto ao Hamas em 2014. Eis a dificuldade das negociações para um cessar-fogo ou mesmo a paz na região. Para o estabelecimento desta, aliás, seria igualmente necessário que Israel reconhecesse a existência do Hamas enquanto governo de facto da Faixa de Gaza — e certamente esse é um limitador haja vista o citado propósito do grupo.

4) De toda sorte, existe um conjunto mínimo de regras que devem ser aplicadas no conflito, mesmo que envolva um ator não-estatal e Israel. Trata-se do Direito Internacional Humanitário (ou jus in bello), que é composto por uma série de tratados internacionais dentre os quais se destacam as quatro Convenções de Genebra de 1949 e os seus dois Protocolos Adicionais de 1977. De fato, para um conflito armado internacional, tais regras são aplicáveis sempre que haja recurso às hostilidades entre dois ou mais Estados. Os parâmetros para a sua aplicação são muito baixos, de modo que a mera captura de uma pessoa poderia habilitar a sua aplicação. O problema no caso em tela é a aplicação dessas regras para o Hamas justamente por este ser considerado, por Israel, um ator não-estatal. Todavia, há quem defenda que esse corpo normativo é aplicável às condutas do citado grupo mesmo que este seja um ator não-estatal em virtude do caráter costumeiro (p. 10) do artigo 3 comum às Convenções de 1949. Por outro lado, há quem pontue que o Direito Internacional Humanitário seria aplicável aos mesmos por se tratar de um conflito internacional nos termos do artigo 1( do Protocolo Adicional I (p. 180) na medida em que este contempla também as ações de grupos armados organizados (para. 60 do caso Haradinaj et al., julgado pelo Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia) que buscam interromper uma dominação colonial, ocupação estrangeira ou um regime racista que impede a autodeterminação dos povos, tal como seria a corrente situação do povo palestino. Assim, se aplicável, o Hamas não poderia ter feito civis israelenses de reféns, vez que essa conduta afronta não só o artigo 3 comum às Convenções de Genebra, mas também os artigos 34 e 147 da IV Convenção de Genebra e o artigo 75 (2) (c) do Protocolo Adicional I. Ademais, a morte intencional de civis também é considerada uma grave violação às regras de direito humanitário, tal como dispõe o artigo 50 da I Convenção de Genebra, o artigo 51 da II Convenção de Genebra, o artigo 130 da III Convenção de Genebra e o artigo 147 da IV Convenção de Genebra.

5) De outra banda, Israel, enquanto Estado que ratificou às Convenções de Genebra em 6 de julho de 1951, também deveria agir consoante as mesmas normas, inclusive quando uma das partes das hostilidades não as sigam (artigo 2 da IV Convenção de Genebra), haja vista o princípio da humanidade. Primeiro, tem-se a questão da 'punição coletiva' referente ao cerco de Gaza, em que se impede o acesso à combustível/gás, à água, à eletricidade e auxilio humanitário, é totalmente ilegal consoante o Direito Internacional Humanitário. Importante lembrar que Israel controla quase todas as fronteiras da Faixa de Gaza há 16 anos como reflexo das citadas eleições de 2006, fazendo com que "65% dos palestinos [ali situados] viv[a]m na linha da pobreza e sofr[a]m de insegurança alimentar", o que, em si, já constitui uma grave violação de direitos humanos. A diferença é que no atual conflito foi implementado um bloqueio total à região, violando também o jus in bello. O artigo 54 do Protocolo Adicional I é bem claro ao dispor sobre a inviolabilidade dos bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, com especial atenção à alimentos (para. 1) e água (para 2). Ao seu turno, o artigo 33 da IV Convenção de Genebra proíbe penalizações coletivas, como a população civil em geral, tecendo ainda que todas as medidas de intimidação ou mesmo de terrorismo [1] são proibidas. Ademais, o artigo 147 da mesma Convenção aponta para a ilegalidade do tratamento desumano durante os conflitos, tal como seriam aqueles que causam problemas de saúde. Além disso, de se mencionar o art. 23 da citada Convenção, a qual impõe aos Estados a obrigação de permitir livre passagem de todas as remessas de provisões e objetos médicos e hospitalares destinados a civis — o que também é previsto no artigo 70 do Protocolo Adicional I. Outras violações ao Direito Internacional Humanitário são igualmente vislumbradas quando do ataque, por Israel, de outros bens indisponíveis durante as hostilidades, tais como civis em fuga, escolas, hospitais (em que pese a autoria israelense deste ainda não tenha sido confirmada) e pessoal médico, incluindo ambulâncias. No que toca o primeiro, impende dizer que civis são protegidos em todo momento em tempos de conflito pelo que prescreve os arts. 48(1)(2)(3) e 51 do Protocolo Adicional I, restando ‘proibidos os atos ou ameaças de violência cuja finalidade principal seja atingir a população civil’. Quanto às escolas, estas são consideradas uma edificação civil, logo, não poderiam ser alvo de operações militares, nos termos do artigos 48(1) e 52 do Protocolo Adicional I. Hospitais, ao seu turno, apresentam proteção específica na IV Convenção de Genebra, em seu art. 18, que prescreve a impossibilidade desses locais de serem alvos militares, inclusive quando inimigos — como membros do Hamas — estejam sendo ali tratados, nos termos do artigo 19 do mesmo documento. Ato contínuo, o artigo 20 prevê a proteção de todos aqueles que estejam envolvidos na ‘operação e administração de hospitais, incluindo o pessoal envolvido na busca, remoção, transporte e cuidado de civis feridos e doentes, os enfermos e os casos de maternidade’. Esta, aliás, é a regra mais antiga desse conjunto normativo, remontando ao ano de 1864.

6) O Direito Internacional Humanitário, é verdade, apresenta algumas exceções que permitiriam flexibilizar alguns dos alvos atacados por Israel. Dentre os principais princípios desse ramo normativo estão o da distinção, o da necessidade militar e o da proporcionalidade. De acordo com o primeiro, é necessário sempre distinguir alvos civis de militares (art. 48 do Protocolo Adicional I), uma vez que apenas estes é que podem ser alvo de uma ofensiva militar, mesmo em caso de dúvida (artigo 52(3) do Protocolo Adicional I). Entretanto, em caso de necessidade militar para a obtenção de êxito/vantagem definitiva nas ações planejadas, reduzindo-se a capacidade do inimigo, os bens civis – como escolas ou hospitais — podem ser afetados. Para tanto, porém, deve-se ponderar sobre a vantagem militar concreta e direta que se obterá com o ataque e os prejuízos causados ("danos colaterais"), à luz da proporcionalidade. Estes não podem ser excessivos, causando danos "supérfluos ou sofrimentos desnecessários", nos termos dos artigos 35(2) do Protocolo Adicional I e 51(5)(b) do Protocolo Adicional I, sob pena de serem considerados "ataques indiscriminados" (ilegais). Ainda, deve-se dar a devida advertência da ocorrência do ataque, sob pena de serem considerados ilegais à luz do que estipula os artigos 19 IV da Convenção de Genebra e 57(2)(c) do Protocolo Adicional I. Nesse passo, mesmo que Israel tenha advertido a população civil situada ao sul da Faixa de Gaza para sair da região ou mesmo de certos hospitais, esta advertência, por ser um tanto genérica quanto aos locais de bombardeio, não parece demonstrar a intenção do governo israelense em adotar todas as medidas possíveis para reduzir as mortes de civis. Além disso, também se pode dizer que estas medidas de evacuação, notadamente da população civil, são exemplos de deslocamento forçado, violando, com isso, o artigo 49 da IV da Convenção de Genebra, muito embora o artigo 61(1)(b) aponte a evacuação como uma medida humanitária.

7) As violações do jus in bello acima narradas poderiam ensejar o uso da jurisdição do Tribunal Penal Internacional — corte competente para complementarmente julgar crimes de guerra, contra a humanidade, genocídio e agressão, caso o Estado-Parte em cujo território ocorrera o delito não o faça ou não possa fazê-lo (artigos 17 e 20 do Estatuto de Roma) ou outro Estado não haja de tal maneira em virtude do princípio da jurisdição universal. Nessa toada, se por um lado Israel não aceitou a jurisdição deste tribunal, a Palestina o fez em 2 de janeiro de 2015, de modo que os atos realizados em seu território — Faixa de Gaza e Cisjordânia — podem ser objeto de investigação pela Procuradoria do TPI à luz do artigo 12(2)(a), mesmo se cometido por israelense ou pessoa de outra nacionalidade cujo Estado não seja signatário do Estatuo de Roma. Especificamente, poder-se-ia verificar a ocorrência de crime de guerra pelas violações das Convenções de Genebra e seus Protocolos, tal como debatidos nos pontos 5 e 6 supra, e de acordo com o artigo 8(2)(a) do Estatuto de Roma; crimes contra a humanidade, pelo homicídio de civis, a deportação/transferência forçada da população palestina e os demais atos desumanos que lhes causam intencionalmente grande sofrimento e lhes afetam gravemente a sua integridade física e/ou a saúde física/mental, como o cerco à Gaza e os bombardeiros nas rotas de fuga e nos bens civis, consoante o artigo 7(1)(a)(d)(k) do Estatuto de Roma; e até mesmo genocídio, se verificada a intenção em destruir no todo ou em parte a população palestina (por Israel) ou israelense (pelo Hamas) com base na nacionalidade ou religião, como aponta o artigo 6, caput, do Estatuto de Roma. Da mesma sorte, poderia considerar-se a ocorrência de genocídio igualmente pelas graves ofensas à integridade física/mental da população palestina ocasionada pelos ataques israelenses e pelo cerco à gaza, além da própria sujeição intencional dos palestinos a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial, como prevê o artigo 6(b)(c).

 


[1] Vale pontuar o questionamento interessante feito por Carvalho sobre a possibilidade de Israel ser considerado um Estado terrorista. Sob a perspectiva do Direito Internacional, importa lembrar que terrorismo é uma prática milenar utilizada para controlar a população por meio do medo, a qual pode ser levada à cabo tanto por autoridades governamentais, como por grupos não-estatais que buscam desestabilizar governos. Logo, na medida em que o governo de Israel realiza ataques contra a população civil palestina, na tentativa de impor-se sobre ela, pode-se dizer que este Estado está, sim, utilizando-se dessa ferramenta.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e Direito do Consumidor da UFRGS e professora do PPGD/UFU e do PPGRI/UFSM, mestre pela Unisinos. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, membro da ILA-Brasil e do Brasilcon.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!