Opinião

Ucrânia instaura ação na CIJ contra a Rússia: E agora?

Autores

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

  • Augusto Guimarães Carrijo

    é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (Gepdi/CNPq) vinculado à Universidade Federal de Uberlândia atualmente em intercâmbio junto à Saint Mary’s University (Halifax/Canadá).

3 de março de 2022, 6h37

No último dia 26, a Ucrânia submeteu diante da Corte Internacional de Justiça (CIJ) um application relativo à interpretação, aplicação e cumprimento da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio de 1948, instaurando, assim, oficialmente, outro caso [1] diante da Corte contra a Federação Russa [2]. Os pedidos ucranianos se baseiam no fato de que a Rússia estaria ilegalmente justificando a sua operação militar em território ucraniano em um genocídio que estaria sendo realizado por parte deste país em Luhansk e Donetsk, duas províncias que foram reconhecidas pela Rússia como Repúblicas independentes em 21 de fevereiro de 2022 [3]. O ponto central do raciocínio ucraniano gira ao redor da constatação de que as alegações Russas não teriam suporte legal na definição de genocídio contida na citada Convenção ou mesmo suporte fático para amparar tais alegações [4].

A Ucrânia aponta para diversas instâncias [5] nas quais autoridades russas afirmaram que um genocídio estaria acontecendo na região, com o intuito de justificar suas iniciativas militares, incluindo as declarações feitas pelo Presidente Vladimir Putin em 21 de fevereiro, quando ele se referiu ao que considerou "horror e genocídio, que quase 4 milhões de pessoas estão sofrendo" [6], e em 24 de fevereiro, quando ele explicou à sua população que o propósito da operação seria "parar esta atrocidade, este genocídio das milhões de pessoas que vivem lá e que confiaram suas esperanças na Rússia" [7].  Vale ressaltar que estas declarações unilaterais por parte do Presidente Putin podem vincular a Rússia ao seu conteúdo enquanto um ato unilateral, nos termos do que a própria CIJ já decidiu no passado [8].

Nesse sentido, a Ucrânia pede que a Corte Internacional de Justiça declare que nenhum ato de genocídio foi cometido em Luhansk e Donetsk nos termos da Convenção de 1948 e, por consequência, aponte a ilegalidade das ações Russas nos termos do mesmo documento [9]. Ademais, a Ucrânia pede que a Corte determine que a Rússia confira garantias de não-repetição, no sentido de não adotar nenhuma medida ilegal na (ou contra a) Ucrânia, incluindo o uso da força, baseado em sua falsa declaração de genocídio. Ainda, a Ucrânia requer que a Corte ordene a reparação integral por todo e qualquer dano causado pela Rússia como uma consequência de suas ações fundadas em sua falsa reivindicação de genocídio [10].

Tendo estabelecido o que a Ucrânia está buscando com esta ação diante da CIJ, é importante que algumas questões procedimentais sejam analisadas. Para que a Corte aprecie o mérito de um caso, existem requisitos que precisam ser preenchidos [11]. Merecem destaque aqui a satisfação de três elementos: jurisdição; standing; e a existência de uma disputa.

O aceite da jurisdição da Corte por ambas as partes é essencial para que o mérito de um caso seja analisado, sendo ele regido pelo princípio do consenso [12]. Neste ponto, a Corte verificará a concordância das partes para que este tribunal possa julgá-las, analisando o escopo e o conteúdo dos termos estipulados por elas para o aceite da sua jurisdição [13]. Isso porque, no Direito Internacional, nenhum tribunal pode julgar um Estado caso este não concorde com a sua jurisdição. Ainda, os Estados podem limitar o exercício jurisdicional de um tribunal, apontando quais as circunstâncias em que aceita ser julgado por ele.

No presente caso a Ucrânia está invocando a cláusula compromissória existente na Convenção sobre a Prevenção e o Punição do Crime de Genocídio, de 1948, constante no artigo IX:

"Disputes between the Contracting Parties relating to the interpretation, application or fulfilment of the present Convention, including those relating to the responsibility of a State for genocide or for any of the other acts enumerated in article III, shall be submitted to the International Court of Justice at the request of any of the parties to the dispute" [14].

É interessante notar que, embora seja razoável dizer que a Corte teria jurisdição sobre os pedidos ucranianos de que não teria havido um genocídio em Luhansk e Donetsk, existe a possibilidade da Corte entender que o artigo IX da Convenção não concede a ela jurisdição.

Essa situação decorre do fato de os ucranianos requererem igualmente que a Corte indiretamente aprecie a ilegalidade da incursão militar russa em seu território decorrente do eventual genocídio e a eventual reparação devida. E, no caso, o objeto destes pedidos possui uma relação menos óbvia com à Convenção de 1948. Dito de outro modo, o fato deles se relacionarem mais com a ofensiva militar russa do que com a interpretação do conceito de genocídio pode ser um elemento chave para que a Corte negue ter jurisdição para apreciar a solicitação ucraniana.

No que tange o standing da Ucrânia para trazer este caso até a Corte, é necessário que seja demonstrado que o Estado possui um direito ou interesse legal na matéria, ou seja, que a violação contra a qual o país se insurge afeta direitos legalmente protegidos [15]. Diferentemente de casos onde Terceiros-Estados ingressaram com pedidos na Corte com base na mesma Convenção de 1948 para proteger certos direitos que estariam supostamente sendo violados fora de seu território, como no caso Gâmbia v. Mianmar, em que a Gâmbia, enquanto um Terceiro-Estado, mesmo não sofrendo um dano individual direto, justificou seu standing a partir da natureza erga omnes partes da obrigação de evitar e punir o crime de genocídio [16], tem-se que no presente caso de Ucrânia e Rússia será mais fácil para a Ucrânia satisfazer este requisito. Afinal, ela que questiona diretamente a aplicação da Convenção em seu território.

Por fim, o terceiro item que deve ser apreciado pela Corte para que ela possa apreciar o caso, isto é, a existência de uma disputa, requer que as partes estejam diante de um desacordo em relação a um ponto legal ou fático [17]. Noutros termos, é importante que exista um conflito de visões ou interesses legais entre as partes litigantes. Entretanto, a Corte recentemente expandiu esse critério, passando a afirmar, também, que o Estado demandado precisa estar objetivamente ciente que uma disputa existe entre ele e o Estado demandante [18].


Esse elemento também estaria presente aqui a partir da argumentação ucraniana, pois uma disputa realmente existiria entre as partes com relação à interpretação e à aplicação da Convenção do Genocídio, já que Rússia e Ucrânia possuem visões opostas sobre, primeiro, se um genocídio foi cometido na Ucrânia, em Donetsk e Luhansk; e, segundo, se o artigo I da Convenção provê uma base legal para a Rússia usar força militar contra a Ucrânia para "prevenir e punir" o suposto genocídio [19].

Inclusive, no dia 26 de fevereiro de 2022, o Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia se pronunciou, afirmando que o seu país "fortemente nega as alegações Russas de genocídio e nega qualquer tentativa de usar essas alegações manipulativas como uma desculpa para a agressão ilegal Russa" [20], explicitando ainda mais a existência de uma disputa entre as nações.

Assim, ao que tudo indica, o caminho para a Ucrânia receber ao menos um julgamento declaratório da Corte relativo aos seus pedidos iniciais está presente. Contudo, é importante lembrar que, em casos anteriores, a Corte já empregou um certo nível de criatividade hermenêutica para declarar a inadmissibilidade de certas ações, surpreendendo os seus observadores [21].

De importância similar, é o fato de que a Ucrânia também requereu medidas provisórias com base no artigo 41 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça e nos artigos 73, 74 e 75 das Regras da Corte, demandando, inter alia, que a Rússia suspenda suas atividades militares e assegure que todas unidades militares comandadas, controladas ou influenciadas por ela parem o seu avanço, com base na premissa de que estaria agindo para prevenir ou punir o suposto genocídio na Ucrânia [22].

De acordo com o artigo 74 das Regras da Corte, um pedido de medidas provisórias deve ter prioridade em relação a qualquer outro caso [23], logo, tal como esperado, a Corte se reunirá nos dias 7 e 8 de março, devido à urgência da situação. Contudo, para conceder as medidas provisórias, a Corte precisa entender que possui jurisdição prima facie em relação à disputa [24] e que existe um risco urgente de dano irreparável dos direitos que o Estado demandante busca proteger [25].

Por exemplo, a Corte, em janeiro de 2020, no caso entre Gâmbia v. Mianmar, compreendendo haver elementos de jurisdição presentes, entendeu que Mianmar deveria agir de acordo com a Convenção de 1948 e demandou que o país protegesse a população Rohingya de atos genocidas dentro de seu território, em sede de medidas provisórias, pelo riso de dano irreparável que a situação demonstra. E para a concessão de tais medidas, levou em consideração o massivo influxo de refugiados Rohingya e as diversas manifestações da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos sobre o tema [26].

No presente caso, a Ucrânia alega que caso a agressão prossiga sem ter a sua legalidade verificada, existiria não apenas um risco, mas a certeza de uma significante e irreparável perda de vida e propriedade, além da instauração de uma crise humanitária na região. Apesar disso, deve-se pontuar que os dados disponíveis são bastante incipientes e desencontrados.

Por isso, será interessante acompanhar se a Corte Internacional de Justiça irá concordar com a argumentação ucraniana de que as medidas provisórias serviriam para proteger os seus direitos frente à pretensa falsa alegação de genocídio russa e, consequentemente, que a incursão armada realizada por este país em seu território seria um abuso do artigo I da Convenção, já que essa é uma argumentação relativamente inédita no direito internacional.

[1] Já existe uma ação promovida pela Ucrânia contra a Rússia, apresentada em janeiro de 2017, sobre a aplicação da Convenção internacional sobre a supressão do financiamento ao Terrorismo e sobre a Convenção Internacional para a eliminação da discriminação racial. Esta ação ainda não foi julgada, estando o prazo aberto para submissão de memoriais entre as partes. Cf. https://www.CIJ-cij.org/en/case/166.

[2] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Application instituting proceedings. 27/02/2022. p. 1-3. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[3] Ibid. p. 5.

[4] Ibid. p. 7-8

[5] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Application instituting proceedings. 27/02/2022. para. 8. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[6] ADDRESS by the President of Russia 21/02/2022. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/statements/67828

[7] ADDRESS by the President of Russia 24/02/2022. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/statements/by-date/24.02.2022

[8] CIJ. Australia v. France. Judgment. 20/12/1974, para. 42-51. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/58

[9] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Application instituting proceedings. 27/02/2022. para. 30. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182.

[10] Ibid.

[11] No passado, a Corte já afastou a sua possibilidade de apreciar disputas na falta de algum destes, como no caso Marshall Islands v. United Kingdom no julgamento de 2016, no caso South West Africa de 1966 e no caso France v. Norway, julgado em 1957.


[12] HANQIN. Jurisdiction of the International Court Justice. Brill, 2017, p. 57; TOMUSCHAT. Part Three Statute of the International Court of Justice, Ch. II Competence of the Court, Article 36. In: ZIMMERMANN et al. (ed). The Statute of the International Court of Justice: A Commentary. 3 ed. Oxford University Press, 2019, pp. 712-798. para. 19.

[14] Disponível em: https://bit.ly/35ILcl2

[15] TAMS. Enforcing Obligations Erga omnes in International Law. Cambridge University Press, 2005, p. 29

[16] CIJ. The Gambia v. Myanmar. Order 23/01/2020, p. 17-18. Disponível em: https://www.CIJ-cij.org/en/case/178

[18] CIJ. Marshall Islands v. United Kingdom. Judgment. 5/10/2016. Disponível em; https://www.CIJ-cij.org/public/files/case-related/160

[19] CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Application instituting proceedings. 27/02/2022. para. 11. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[21] Veja, por exemplo, às interpretações da Corte em relação ao conceito de standing no julgamento de 1966 do caso South West Africa; à extinção do objeto da demanda no caso Nuclear Tests; e ao conceito de disputa no caso envolvendo as Ilhas Marshall e o Reino Unido. Ainda, veja às opiniões dissidentes anexadas pelos juízes contrários à decisão da maioria para melhor compreender a problemática envolvendo as interpretações.

[22] Cf. CIJ. Ukraine v. Russian Federation. Request for the indication of provisional measures. 27/02/2022. Disponível em: https://www.icj-cij.org/en/case/182

[24] CIJ. The Gambia v. Myanmar. Order 23/01/2020, p. 9. Disponível em: https://www.CIJ-cij.org/en/case/178

[25]  CIJ. Georgia v. Russian Federation, Provisional Measures – Order 15/10/2008. p. 396. Disponível em: https://www.CIJ-cij.org/public/files/case-related/140

[26] CIJ. The Gambia v. Myanmar. Order de 23/01/2020, p. 27-28 e 30. Disponível em: https://www.CIJ-cij.org/en/case/178

Autores

  • é professora de Direito Internacional e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, mestre em Direito Público pela Unisinos, com período de estudos junto à University of Toronto, e membro da ILA-Brasil e da Abri.

  • é pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (GEPDI/CNPq), vinculado à Universidade Federal de Uberlândia, atualmente em intercâmbio junto à Saint Mary’s University (Halifax/Canadá).

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