Lavagem & Afins

Cegueira deliberada tem nome e sobrenome no Brasil

Autores

  • Felipe Fernandes de Carvalho

    é sócio do escritório Mudrovitsch Advogados doutorando em Direito Penal pela USP mestre pela mesma instituição especialista em corrupção e crime organizado pela Universidade de Salamanca e bacharel em Direito pela UnB.

  • Cíntia Anacleto Isawa

    é advogada do escritório Mudrovitsch Advogados mestranda em Direito Penal pela USP e graduada em direito pela mesma instituição com dupla graduação pela Université Lumière Lyon 2 (França).

11 de janeiro de 2024, 10h03

Muito já foi escrito a propósito da incompatibilidade entre a dogmática penal brasileira e a cegueira deliberada, de matiz anglo-saxã. Em recente artigo, Pierpaolo Bottini traz argumentos contundentes que elidem a sua conformação pelo direito brasileiro, abordando a sua aplicação ao tipo penal de lavagem de ativos. [1] Na doutrina brasileira, não são poucas as monografias de qualidade que abordam a matéria na mesma direção. [2]

O exame da jurisprudência dos tribunais brasileiros revela, no entanto, que a maior parte dos casos que mencionam a cegueira deliberada não envolvem o delito de lavagem de ativos, mas, sim, os de receptação e descaminho. Mais do que isso, a análise da jurisprudência evidencia certa desconexão dos julgadores com a doutrina especializada.

A partir de pesquisa realizada no âmbito do mestrado concluído na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, [3] conclui-se que a sua utilização tem sido, inclusive, crescente pelos tribunais brasileiros. Entre o ano de 2007 e setembro de 2013, foram identificados 11 acórdãos de Tribunais Regionais Federais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que a mencionaram. De outra sorte, entre setembro de 2013 e primeiro de maio de 2019 — ou seja, em período um pouco inferior a seis anos —, foram localizados 554 acórdãos citando-a. Por sua vez, entre 1/5/2019 e 31/12/2020 — isto é, em lapso temporal de pouco mais de um ano e meio —, foram proferidos novos 413 acórdãos.

Exame mais acurado a propósito desses julgados revela, em verdade, que sua utilização está essencialmente circunscrita a uma zona de autoridade argumentativa exercida por obra acadêmica de Sérgio Moro, cujas citações foram reproduzidas de forma totalmente irrefletida pelo Poder Judiciário, em especial por votos proferidos no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Conforme será evidenciado, a despeito de veicular substantivos equívocos a propósito da cegueira deliberada, é a obra desse autor que potencializa a utilização da cegueira deliberada no Judiciário brasileiro e que faz reverberar os substantivos equívocos acerca de sua utilização.

A primeira menção à cegueira deliberada no Brasil adveio no caso do furto ao Banco Central do Brasil [4], no qual foi invocada em sentença para fundamentar a condenação de alguns acusados pela prática de lavagem de ativos, na forma da redação original, dada pela Lei Federal n˚ 9.613/1998. A despeito de diversos problemas relativos à incidência do tipo penal sob o prisma objetivo, a sentença indicou vários elementos a partir dos quais seria possível deduzir o dolo dos denunciados e, por conseguinte, condená-los pela prática do crime de lavagem de ativos. [5]

Conquanto essa linha de fundamentação já fosse suficiente para resolução do caso, a sentença menciona que a cegueira deliberada corresponde a um substituto do conhecimento atinente ao dolo direto de primeiro grau, pois, citando as palavras de Sergio Moro, [6] “agir com conhecimento […] não é necessariamente agir com conhecimento positivo, mas agir com indiferença quanto à elevada probabilidade da existência do fato em questão”.

Trata-se, com efeito, de claro erro de tradução, como já noticiado pela doutrina especializada brasileira. Ao que tudo indica, a incorporação do vocábulo “indiferença” decorreu de assimilação irrefletida de tradução de trecho da decisão do julgamento United States v. Jewell pela Corte de Apelação do Nono Circuito Federal dos Estados Unidos.

O trecho original da corrente vencedora é: “To act ‘knowingly,’ therefore, is not necessarily to act only with positive knowledge, but also to act with an awareness of the high probability of the existence of the fact in question”. Desse modo, a tradução correta do que efetivamente a Corte de Apelação do Nono Circuito Federal decidiu corresponde a “agir ‘com conhecimento’, portanto, não é necessariamente agir apenas com conhecimento positivo, mas também agir com ciência da elevada probabilidade da existência do fato em questão”. [7] O excerto referido por Sergio Moro traduz incorretamente o vocábulo “awareness” como “indiferença”, quando, na realidade, corresponde a “conhecimento ou percepção de uma situação ou um fato”.

O papel de Sergio Moro na equivocada difusão da cegueira deliberada não parou por aí.

Em 2013, enquanto juiz federal convocado, Sergio Moro foi relator da Apelação Criminal nº 5009722-81.2011.404.7002. Em seu voto, foram reverberados todos os equívocos conceituais acima expostos. O impacto desse precedente foi nefasto para a profusão de equívocos pelo Judiciário brasileiro.

Se até 2013 eram apenas 11 acórdãos proferidos no âmbito das cortes regionais invocando a cegueira deliberada, após a prolação desse acórdão houve explosão na quantidade de acórdãos a mencionando. Entre 2013 e 31/12/2020, foram 977 acórdãos proferidos mencionando a expressão “cegueira deliberada”. Desse número, 941 correspondem a casos com menções à cegueira deliberada em julgados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e apenas 36 às demais Cortes Regionais Federais e aos já mencionados Tribunais Superiores.

Bem verdade, contudo, que nem todos esses acórdãos mencionaram a cegueira deliberada como razão de decidir. Dos 941 acórdãos nos quais foi mencionada no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a cegueira deliberada foi citada em 590 de forma lateral, sem qualquer finalidade aparente na decisão. É possível identificar, ademais, que, a argumentação expendida no voto de Sergio Moro na Apelação Criminal nº 5009722-81.2011.404.7002 esteve presente em 106 acórdãos dentre os 222 que utilizaram a cegueira deliberada como ratio decidendi até a data de 1/5/2019. [8].

Em relação ao uso da cegueira deliberada nos casos de lavagem de ativos, cumpre destacar que o referido tipo penal possui uma nuance relevante no que toca ao conhecimento do plano fático. A caracterização do delito de lavagem de ativos pressupõe a ciência da ilicitude dos valores que estão sendo transacionados pelo agente. Seja em sua redação original seja na que vige atualmente, [9] discute-se a possibilidade de imputação desse delito a título de dolo eventual, no sentido de penalizar o agente que assume o risco de transacionar valores de origem ilícita. [10]

Nessa esteira, Bottini indica que delitos que admitem o dolo eventual mencionam explicitamente a expressão “deve saber”, tais como os de perigo de contágio venéreo, previsto no artigo 130 do CP, [11] receptação qualificada, previsto no artigo 180, §1º, do CP, [12] e no excesso de exação, previsto no artigo 316, §1º do CP [13] (BRASIL, 1940). Desse modo, porquanto o delito de lavagem de ativos não veicula explicitamente essa expressão, Bottini aponta que referido delito não admite esse tipo de imputação subjetiva. [14].

Dessa forma, verifica-se que os casos na jurisprudência brasileira que tratam da cegueira deliberada se afastam do delito de lavagem, sendo mais mencionada nos julgamentos dos delitos que admitem o dolo eventual expressamente.

Não se almeja, no presente artigo, discutir propriamente o espaço da cegueira deliberada no Direito Penal brasileiro. Busca-se, no entanto, identificar os motivos pelos quais tamanhos equívocos acerca da temática têm sido reproduzidos no Judiciário brasileiro.

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[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-dez-06/o-sedutor-instituto-da-cegueira-deliberada-mas-perigoso-pela-pouca-aderencia/>. Acessado em 08/12/23.

[2] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018. PARDINI, Lucas. Imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao empresário em cegueira deliberada. – 1. Ed. – São Paulo: Marcial Pons, 2019.

[3] CARVALHO, Felipe Fernandes. A conformação da cegueira deliberada no direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021. Foram analisados todos os acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais Federais brasileiros, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal que utilizaram as expressões “cegueira deliberada” até a data de 31/12/2020. Foram excluídos da análise acórdãos proferidos em sede de embargos de declaração, embargos infringentes, agravo regimental e exames de admissibilidade de recursos especiais e extraordinários.

[4]     BRASIL. Seção Judiciária do Ceará. Ação Penal n. 200581000145860. Magistrado Danilo Fontenelle Sampaio, Fortaleza, 2007.

[5] No caso concreto, os elementos são, basicamente, o alto valor da transação, o grande número de carros envolvidos, a efetivação da operação com dinheiro em espécie, a dispensa de elaboração de recibo dos veículos, a solicitação dos compradores para que os veículos não detivessem registros no Estado do Ceará – no qual o furto foi realizado – e o estabelecimento de crédito de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) para futura compra de veículos por parte do grupo criminoso, o qual não chegou a ser registrado.

[6]     MORO, 2010, p. 90.

[7]     O impacto desse erro de tradução pode ser verificado mesmo na corrente que defende a desnecessidade da incorporação da cegueira deliberada à práxis brasileira acabam. Mesmo os votos que encampam essa vertente acabam por utilizar o parâmetro delineado por Moro em sua obra e em seus julgados. Em 64 acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Desembargador Federal Victor Laus consignou esse posicionamento em seus votos. De sua ótica, “se revela absolutamente prescindível a importação da referida doutrina estrangeira, revelando-se bastante em si o sistema legislativo-penal brasileiro”. Para chegar a essa conclusão, o Juiz ressalta que “os dois elementos acima indicados (ciência da elevada probabilidade de participação em atividade ilícita e agir indiferentemente), enquanto pressupostos exigíveis para a caracterização da referida doutrina estrangeira, ainda que retratados, conceitualmente, com cores ou matizes sutilmente diferentes, na realidade em muito se assemelham àqueles que caracterizam o dolo eventual do Código Penal brasileiro” (BRASIL. Tribunal Regional Federal, Região 4. Apelação Criminal n. 50141709320174047000. Relator Juiz Federal João Pedro Gebran Neto, Oitava Turma. Julgamento em 08/04/2019, Porto Alegre, 2019).

[8]     Em meados de 2019, por motivo não aparente, a argumentação envidada foi paulatinamente deixando de ser replicada, de modo que passou a ser utilizada, basicamente, nos votos da relatoria do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto.

[9]     A atual redação do caput do artigo 1º da Lei n. 9.613/1998, conferida pela Lei n. 12.683/2012 (BRASIL, 2012), é a seguinte: “Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

[10]    Ao abordar o tema, Ragués i Vallès pontua que, com relação aos delitos que exigem “que el sujeto activo haya obrado com conocimiento certo y actual de los elementos que integram el tipo objetivo […], tanto en la doctrina como en la jurisorudencia existen notables discrepancias acerca de si estas previsiones legales excluyen o no la posibilidad de aplicar el dolo eventual, entre otras razones porque la presencia o ausencia de estos elementos en el teno de dichos preceptos no parece explicarse por una decisión político-criminal consciente, sino por una serie de causalidades históricas o legislativas” (RAGUÉS I VALLÈS, 2008, p. 104-105).

[11]    “Art. 130 – Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: […]”

[12]    “Art. 180: […]

  • 1º Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime: […]”

[13]    “Art. 316: […]

  • 1º Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza: […]”

[14]    BOTTINI, 2012, p. 98.

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  • é sócio do escritório Mudrovitsch Advogados, doutorando em Direito Penal pela USP, mestre pela mesma instituição, especialista em corrupção e crime organizado pela Universidade de Salamanca e bacharel em Direito pela UnB.

  • é advogada do escritório Mudrovitsch Advogados, mestranda em Direito Penal pela USP e graduada em direito pela mesma instituição, com dupla graduação pela Université Lumière Lyon 2 (França).

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