Escritos de Mulher

Violência vivida e percebida pela mulher: importância das pesquisas de vitimização

Autor

  • Alice Bianchini

    é advogada vice-presidente da ABMCJ/Nacional conselheira de notório saber do CNDM doutora em Direito pela PUC-SP e autora do livro Lei Maria da Penha 2021 ed. Tirant do Brasil.

10 de janeiro de 2024, 8h00

Desde 2005, o DataSenado faz, a cada dois anos, pesquisa sobre violência contra a mulher, trazendo importante material de análise acerca da evolução do tema em nosso país. [1] Trata-se da mais longa série histórica com mulheres sobre violência doméstica no Brasil.

Dentre as várias perguntas que são feitas às entrevistadas, uma delas dirige-se, exclusivamente, àquelas que informaram ter sido vítima de violência, que é a seguinte: “E qual foi o tipo de violência sofrida?”

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A última edição, de 2023 (10ª edição), apresentou um resultado diferente das anteriores: pela primeira vez a violência psicológica aparece no topo do ranking (89% das respostas); a violência moral vem em segundo (77%), e a física em terceiro lugar (76%), empatadas tecnicamente, portanto; depois, têm-se a violência patrimonial (34%) e, por último, a sexual (25%).

A maioria das mulheres, tal qual aconteceu nas edições anteriores, apontou ter sido vítima de mais de um crime, levando a que os percentuais somados em relação às violências sofridas superassem a casa dos 100% e confirmando uma característica desse tipo de situação: a multiviolência. O fato de a vítima sofrer mais de um tipo de violência, convém ressaltar, enfraquece-a ainda mais, minando ou dificultando a capacidade de romper o relacionamento violento, o que aumenta as chances de ocorrência de feminicídio.

Voltando à Pesquisa DataSenado, duas observações importantes: (1) a violência física preponderou nas respostas dadas pelas mulheres vítimas até a 9ª edição (de 2005 a 2021, portanto); em 2023, como já mencionado, a psicológica ficou em primeiro lugar; (2) o crescimento mais expressivo da violência psicológica ocorre a partir do ano de 2021.

Interessante notar que o ano em que acontece o mais acentuado aumento da violência psicológica (2021) coincide com a entrada em vigor da Lei 14.188, a qual, dentre outras coisas, trouxe para o mundo jurídico o tipo penal de violência psicológica contra a mulher (inserindo o artigo 147-B ao Código Penal), o que contribuiu para o fortalecimento da ideia de que o Direito Penal possui uma importante função simbólica ao definir as condutas que não são aceitas socialmente. [2]

Outro fato merece referência: em 2021 a pandemia do coronavírus chegava ao seu segundo ano consecutivo e as medidas de prevenção sanitárias, incluindo o distanciamento social, permaneciam em vigor. A pesquisa “Entendendo os impactos da Covid-19 na violência doméstica no Brasil”, elaborada pela Universidade Federal do Ceará em conjunto com o Instituto Maria da Penha (IMP), constatou que “a violência emocional ou psicológica foi a que mais aumentou no período da pandemia: de 12,55% de mulheres que sofreram esse tipo de violência em 2019, o número subiu para 16,16% em 2020 e para 16,55% em 2022.” [3]

Apesar do crescimento vertiginoso da violência psicológica observado a partir de 2021, como mencionado, o que fez com que ela fosse a violência mais reportada pelas mulheres vítimas na edição DataSenado de 2023, a mesma pesquisa mostra que há um descompasso entre as violências vividas e as percebidas pelas mulheres que responderam à entrevista, principalmente em relação à violência psicológica.

Essa percepção somente foi possível em decorrência de uma inovação trazida com a 8ª edição (2019), quando o DataSenado incluiu um bloco de perguntas dirigido às entrevistadas que responderam não terem sofrido nenhum tipo de violência. Assim, após a resposta negativa da mulher, diversas situações de violência doméstica eram apresentadas, sendo que, só então, muitas delas passam a ser reconhecidas como tendo sido vivenciadas. O novo bloco, pois, “permitiu trazer dados inéditos referentes a diferenças entre a experiência de situações de violência doméstica e a sua percepção pelas mulheres que a vivenciaram.” [4]

Observou-se, portanto, na edição de 2019 e nas seguintes (2021 e 2023), que há uma diferença significativa entre viver a situação de violência doméstica e se perceber nela inserida, o que sinaliza que se trata de situações não suficientemente identificadas como violências pelas vítimas.

O mesmo fenômeno foi diagnosticado em uma outra pesquisa de vitimização, a realizada pelo Instituto Perseu Abramo no ano de 2001 e repetida no ano de 2010. [5] Na de 2001, 16% das mulheres entrevistadas que mencionaram sofrer violência doméstica declararam espontaneamente terem sofrido violência física; em relação à psíquica, eram apenas 2%. Em respostas estimuladas, entretanto, os números daquela pesquisa sobem significativamente: 33% afirmaram ter sofrido violência física (106,25% a mais que o percentual obtido nas respostas espontâneas); 27%, violência psíquica (1.250% a mais que o percentual obtido nas respostas espontâneas).

As respostas registradas no ano de 2010 também apontam uma variação marcante entre a violência vivenciada e a percebida. Em relação às entrevistadas, 12% afirmaram espontaneamente que sofreram violência física ou ameaça (à integridade física); 4%, violência psíquica/verbal. Em termos de respostas estimuladas, 24% declararam que sofreram violência física ou ameaça (à integridade física) (100% a mais que o percentual obtido nas respostas espontâneas); 23%, violência psíquica/verbal (aumento de quase 600%).

Voltando à Pesquisa DataSenado, mais um achado interessante que merece ser compartilhado: desde que o bloco que elenca diversas violências foi criado (em 2019), a pergunta que teve a maior incidência de resposta positiva (lembrando que as entrevistadas eram mulheres que haviam afirmado não terem sido vítima de qualquer tipo de violência) refere-se à mulher ter sido insultada pelo agressor, com cerca de 13% das entrevistadas informando que vivenciaram tal situação.

O descompasso entre a violência vivida (por exemplo o insulto, como acima mencionado) e a percebida nos obriga a refletir sobre a naturalização da violência, bem como sobre políticas públicas necessárias para suprimir tal alienação de circunstância, a fim de que as violências sejam cada vez mais percebidas, para que possam ser devidamente prevenidas, reprimidas e responsabilizados seus autores.

Para tanto, o assunto precisa ser colocado em pauta nas rodas de conversas, no ambiente de trabalho, na escola, nas igrejas, a fim de que, por meio da educação coletiva sobre a violência contra a mulher, possamos alterar esse quadro tão arraigado nas nossas relações sociais, ao ponto de várias situações de violência ainda passarem despercebida pelas vítimas, bem como pela sociedade e pelos órgãos e instituições responsáveis pela prevenção e enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.

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[1] Pesquisa completa, bem como a série histórica podem ser encontradas no site do Senado. Disponível e: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/pesquisanacional. Acesso em 05jan2023.

[2] Sobre o tema, consultar CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[3] Disponível em: https://www.ufc.br/noticias/noticias-de-2022/17162-ufc-apresenta-relatorio-sobre-impacto-da-pandemia-na-violencia-domestica-e-familiar. Acesso em 05jan2023.

[4] RIBEIRO, Henrique Marques. Desafios ao enfrentamento da violência doméstica: será que estamos falando a mesma língua das mulheres que a vivenciam? In: Histórias de amor tóxico: a violência contra as mulheres. Edições do Senado Federal. Brasilia, 2020. p. 188. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/578068/Historias_amor_toxico.pdf?sequence=4&isAllowed=y.

[5] Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf. Acesso em 05jan2023.

Autores

  • é autora e palestrante, com atuação especializada em violência de gênero. Doutora em Direito Penal pela PUC-SP. Vice-presidenta da ABMCJ. Conselheira do CNDM. Coordenadora da pós-graduação Direito das Mulheres.

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