Opinião

A Súmula nº 665/STJ e o seu impacto no direito disciplinar

Autor

  • Kayo César Araújo da Silva

    é advogado mestre em Direito Constitucional pelo IDP/DF professor de Direito Constitucional Administrativo e Eleitoral e membro pesquisador dos grupos de pesquisa “Observatório do Financiamento Eleitoral” e “Processo Civil à luz da Constituição Federal de 1988”.

10 de janeiro de 2024, 11h16

No apagar das luzes de 2023, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar a questão de ordem no Mandado de Segurança nº 19.995/DF, aprovou o mais importante conteúdo sumular do ano, referente ao controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar.

Conforme a Súmula nº 665/STJ, “(…) O controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar restringe-se à análise da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Não é permitida a incursão no mérito administrativo, exceto em casos de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada[1].

Apesar de reiterar algumas premissas já estabelecidas na jurisprudência da corte, como a impossibilidade de o Poder Judiciário adentrar no mérito administrativo, a Súmula nº 665/STJ, com alguma dificuldade, abre espaço para que a discussão relacionada ao PAD ainda possa ocorrer, desde que centrada nos Atos de Procedimento e de Mérito.

Explico.

No que diz respeito ao controle dos Atos de Procedimento, a súmula autoriza o Poder Judiciário avaliar se houve (ou não) alguma violação na i) regularidade do procedimento, ii) legalidade do ato e/ou no iii) contraditório, ampla defesa e devido processo legal.

Até aqui, tudo bem, e não havia nada de tão novo que pudesse ser discutido.

É, no segundo bloco, relacionado ao controle dos Atos de Mérito, que os problemas começam a surgir, pois, ao excepcionar que apenas nas hipóteses de i) flagrante ilegalidade, ii) teratologia ou iii) manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada, pode, o Judiciário, discutir a correção do mérito daquele ato administrativo.

É que, ao observar algumas das hipóteses trazidas no artigo 117 da Lei nº 8.112/90, como as descritas nos incisos IX (valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública), XV (proceder de forma desidiosa) e XVI (utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares), percebe-se o amplo espaço para que ilegalidades e abusos possam ser praticados dentro da administração pública, podendo gerar, ao final, a penalidade de demissão daquele agente público [2].

Se o mérito do ato administrativo diz respeito à margem de liberdade que “(…) os atos discricionários recebem da lei para permitir aos agentes públicos escolherem, diante da situação concreta, qual a melhor maneira de atender ao interesse público[3], a opção legal, quando genérica e autorizadora da aplicação da portaria demissional de determinado servidor, considerando o conteúdo trazido pela súmula em questão, dificilmente poderia ser sindicada pelo judiciário.

O problema é grave, e a ilegalidade reside — exatamente — neste ponto.

O Poder Judiciário não pode, contrariando o princípio da universalidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, da CF/88), que exige, em um estado democrático de direito, o respeito à legalidade na atuação da administração pública, fingir que tudo que é feito dentro da administração está correto e, por essa razão, ser — quase que absoluta — a presunção de legalidade.

Reconhecer que certos temas, por estarem inseridos na problemática do mérito administrativo, não podem ser discutidas, assemelha-se às práticas da monarquia absolutista, na qual o rei era considerado infalível, e, por conseguinte, suas decisões não poderiam ser questionadas, acaba por autorizar que práticas abusivas, geradoras de atos administrativos “(…) injustos, maus, perniciosos, desarrazoados e desacertados[4] sigam compatíveis com as regras do ambiente constitucional e democrático.

É fato notório a sucessão de decisões injustas, arbitrárias, exaradas em julgamentos desmotivados, muitas sem fundamentação legítima idônea e isenta por parte das autoridades competentes, “(…) as quais se limitam, muitas vezes, de forma temerária, devido à pura omissão ou falta de conhecimento técnico, a homologar as propostas decisões recomendadas por algumas comissões disciplinares que nem sempre atuam sob o prisma da plena objetividade, imparcialidade e rigorosa motivação de seus atos estritamente conforme a límpida prova dos autos[5], sendo, por essa razão, necessário, por parte do Judiciário, o abandono da premissa de autocontenção e limitação, como a própria súmula nº 665/STJ recomenda, e que seja adotada uma postura mais enérgica e efetiva, funcionando o controle dos atos administrativos como “(…) freio das arbitrariedades e alerta para as autoridades administrativas que pretendem abusar do poder, na medida em que tenham conhecimento de que seus atos serão de fato contrastados e revistos por juízes independentes, num controle jurisdicional zeloso dos direitos fundamentais dos cidadãos titulares de cargos públicos e vítimas de decisões autoritárias[6].

A mudança de postura, ao contrário do que registra o conteúdo da Súmula nº 665/STJ, desempenha um importante papel crucial na preservação e promoção dos direitos dos titulares de cargos públicos em nossa democracia, assegurando, sobretudo, que não se tornem vítimas de decisões autoritárias e injustas, como, vez em quando, vem acontecendo.

Até porque, é “(…) quando a lei é mal aplicada, quando o direito é espezinhado[7] que o ofendido bate as portas do judiciário para que corrija o mal, salvando o Direito com a exata aplicação da lei ao caso concreto.

Eis o primado da lei!

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[1] O conteúdo da súmula pode ser acessado aqui!

[2] Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: (…) XIII – transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.

[3] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 434.

[4] CRETELLA JUNIOR, José. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo. São Paulo: José Bushatsky, 1977, p. 259.

[5] CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. 6ª ed. rev., atual. e aum. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 54.

[6] Ibidem, p. 1.732.

[7] LIMA, Vicente Ferrer Correia. Ensaio Jurídico sobre o Processo ou Inquérito Administrativo. Brasília: DASP, 1969, p. 46.

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