Opinião

Desafios do MP na proteção da ordem democrática: uma ode ao 8 de Janeiro

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

6 de janeiro de 2024, 12h31

Repensar o Ministério Público brasileiro diante o paradigma digital faz sentido? Muitas dúvidas ainda desafiam qualitativamente esta instituição tão necessária e vinculada ao atendimento de inúmeras e complexas pautas valorativas estabelecidas na vastidão do sistema jurídico. Especialmente, aquelas situadas nas “atividades-fim”, voltadas à sociedade e ao cidadão (juste et utile).

Curial, em análise crítica, verificar três modelos de Ministério Público: o modelo institucional; o modelo constitucional; e o recente modelo digital. Parece-nos essencial desenvolver tal discussão quanto a esses três modelos de Ministério Público existentes e, via de consequência, projetarmos reflexão no enfrentamento das adversidades do porvir.

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Cumpre o registro que a exigência constante de fiscalização e a presença do Ministério Público nos tribunais são condições existenciais de procedibilidade da manifestação estatal para resolução de conflitos (jurisdição). [1] Importante recordar que antes da Constituição, o Ministério Público do país se apresentava pelo “modelo institucional”, exponencialmente voltado como apêndice do Poder Executivo. Desprovido de autonomia financeira e administrativa, sob a dependência decisória dos chefes de governo, o Ministério Público cumpria, na medida do possível, as tarefas atribuídas pela legicentrismo infraconstitucional, com especial atenção às ‘regras’ fixadas nas codificações.

A atuação dos membros era “via mão única” perante o Poder Judiciário, no dualismo cível-criminal: quando não ‘custos legis’ no âmbito cível, o representante tinha atribuição persecutória penal, numa perspectiva isolacionista e totalmente fragmentária (desprovido de visão sistêmica). [2]

Com o avançar das demandas sociais, urbanas e ambientais, tal modelo, seguindo as modificações semelhantes ao ordenamento, buscou aprimorar e alargar o âmbito de atividade e de aprimoramento interno, como no exemplo da Lei Orgânica Nacional (LC 40/81) e da Lei de Ação Civil Pública em 1985, que, respectivamente, serviram como fonte de transição para o ‘modelo constitucional’, inserindo princípios e autonomia funcional, financeira e administrativa, bem como alargando o leque de atribuições em temas difusos e coletivos. [3]

A atual ordem axiomática vigente proporcionou o “modelo constitucional”, o que significa dizer: estruturas e funcionalidades projetadas não para a satisfação de objetivos institucionais e próprios, senão para respostas às profundas mazelas humanitárias, políticas e sociais existentes. Trata-se da passagem do Estado legal para o Estado constitucional e, logicamente, o “vice-versa não é medida que se põe em pauta, sob pena de retrocesso. [4]

Esse segundo modelo, reafirmando conquistas anteriores, trouxe para o contexto da legalidade constitucional: fixação de identidade constitucional (instituição permanente para defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis); reiteração de princípios com atribuições fundamentadoras, interpretativas e integrativas, sem qualquer hierarquia; estruturação federativa, financeira e administrativa; distribuição de garantias, vedações e funções. As emendas constitucionais posteriores, introduzindo controle externo (sobre a atuação administrativa e financeira do Ministério Público) e fiscalizatória (ao cumprimento dos deveres funcionais de seus membros), complementam a noção de que o “modelo constitucional” é a ratio juris da instituição: ferramenta essencial para os prioritários direitos dos brasileiros e estrangeiros aqui residentes.

Importante ressaltar que o “modelo constitucional” está baseado em pautas que correspondem a era da massificação [5], ou seja, fundado em aspectos de lutas de classes, redução das desigualdades, proteção de bens e direitos difusos e coletivos, acesso à justiça [6], mais tarde reforçados pela orientação de democratização das instâncias deliberativas, centralidade da dignidade humana, promoção dos vulneráveis, inserção de “deveres” e “direitos” fundamentais, inclusive de abrangência social. [7] Enfim, modelo adequado ao constitucionalismo “dirigente”, pós-segunda guerra na Europa e pós-ditaduras na América Latina. [8]

Ocorre que constituições desta natureza, ainda que vigentes e de orientação hierárquica, são cada vez mais combatidas e vilipendiadas pelo atual “paradigma tecnológico” e seu inerente “processo comunicacional”, que atuam preponderantemente a favor de interesses econômicos.

Algumas fraturas deste constitucionalismo são perceptíveis nos seguintes tópicos: (i) derrocada cultural da Constituição por recentes pautas que esvaziam o controle do poder, bem como as garantias e direitos fundamentais; (ii) lesões à unidade Constitucional, já que algoritmos (regras digitais) açambarcam a força normativa da constituição analógica; (iii) indigesto retorno da “teoria das esferas”, já que enquanto a Constituição prioriza a abertura de fontes, o mundo digital, fixa-se no direito privado de mercado; (iv) ‘crise de sentidos’ que atua sobre a ‘veracidade’ do conteúdo (des)informativo, com graves efeitos na polarização da sociedade; (v) expansionismo da globalização econômica pelos grandes agentes digitais que incapacita o Estado na ‘regulação responsável’ da economia. [9]

Nesta ambiência, as plataformas digitais “criam” a ilusão de que os protagonistas são os ‘nativos’ das novas gerações, dotados de ‘outros’ estímulos e valores, conquanto, na realidade, sejam desprovidos de conhecimento e experiência das atrocidades e barbáries mundialmente sofridas no século 20 em diversos países (inclusive, entre nós, as ditaduras da América do Sul). Culturalmente, constituições, deveres e a solidariedade vão perdendo a posição de prioridade democraticamente conquistadas em anos indolentes e de chumbo, [10] dando espaço (e retorno) justamente aos cânones oitocentistas maquiados pela inovação. Uma repristinação que tem ideologia: o “iluminismo digital”.

Não se cuida em declinar simples modificações de rumos, mas ao contrário, de conviver com transformações abissais em diversas esferas, com destaque à economia (da informação, compartilhada, Internet das coisas) [11], à comunicação (derrocada da mídia tradicional) [12], à liberdade (que retornou aos preceitos franceses de 1789: ‘sem limites’ e absoluta), à datificação humana. [13]

O ‘modelo digital’ do Ministério Público (comum a outras instituições) decorre desse paradigma tecnológico e efetivamente tem sobra para encômios e aprofundamentos, assim como apresenta riscos demasiados à ordem jurídica e democrática. Este recente modelo (de transformação e retroalimentação) exige dos juristas (da própria instituição, diga-se) ‘capacidade programadora’ e ‘conhecimento específico’ até porque rompe com a vetusta estratégia de observação do passado (de lege data) para modificação do futuro (de lege ferenda): o tempo foi saqueado pela ‘hipervelocidade’ e perdemos o controle. [14]

Ademais, os inúmeros sobressaltos quanto à subjetividade dos bilhões de utentes das plataformas virtuais da mesma maneira reclamam retomar a consciência quanto à “condição humana”, nossa capacidade de ação e processo [15], sob pena de que haja conversão para a “condição digital” e, como desfecho, a “robotização” ou “reengenharia” do humano. [16]

Ao contrário dos dois outros modelos que são analógicos, o modelo digital (espectral e ininterrupto) tem como pontos positivos, a saber: racionalização dos expedientes; desmaterialização dos processos; atendimento ao público e audiências em plataformas eletrônicas; monitoramento automático de acordos, sentenças, ações; quadro estatísticos de fácil apuração; correições e demais atos correcionais em formato interativo e cibernético; consulta imediata às fontes de direito (doutrina, jurisprudência etc.); e, em virtude disso, a diminuição de custos, de danosidades ambientais e melhor aproveitamento dos espaços e horários institucionais.

Contudo, guarda também complexidade de perigos e riscos daninhos à estabilidade jurídica e democracia. Neste texto ensaiamos três dessas externalidades (outras existem!) que merecem redobrada atenção institucional quanto a desafios a serem enfrentados.

Em primeiro, o “Ministério Público Enxame” (swarm prosecutor). Os temas da massificação, das lutas sociais, estão longe de ser as causas subjacentes das redes sociais. Aliás, as plataformas, mesmo com “verniz” do coletivo, são individualistas, tratam do “sujeito digital”. A questão é o aglomerado: “o enxame” (milhões de “cybercitizens” reunidos, entretanto com interesses individualizados). [17]

Sedimentadas pelos limites e deveres constitucionais em agir de forma coerente, responsiva e com segurança, as instituições começaram a ser questionadas internamente e fora dos próprios canais, abrindo espaços para discursos inflamados, por parte de alguns de seus “próprios” operadores oficiais em detrimento desse “modelo constitucional”: sério problema de afetação do jogo democrático.

A questão não está posta no direito (e dever) de crítica que cabe ser fomentado e aplicado, mas em duas condições éticas básicas: a veracidade do conteúdo fático exposto e “compartilhado”; e a qualificação do criador do conteúdo, posto que se agente público (em todas as derivações daí decorrentes, inclusive na condição política) lhe cabe agir nos limites da “proteção da confiança”, o lado subjetivo da segurança jurídica. [18]

Enfim, o “enxame” pode ser estimulado a agir com inúmeros prejuízos à toda sociedade e à democracia. Os atos de 08 de janeiro de 2023 bem representam esse risco.

Em segundo, o “Ministério Público Mito” (myth prosecutor). A utilização das plataformas para “espetacularização da vida”, atribuindo às atividades desenvolvidas, enquanto componente institucional, aspectos de ‘eficiência processual’ especialmente em temas políticos sensíveis, podem prejudicar o processo comunicacional discursivo da sociedade.

Transparência é essencial, desde que oriundas de assessorias de comunicação, preservando-se as partes envolvidas, mediante neutralidade.

Algumas operações nestes dez últimos anos no Brasil ganharam notabilização, considerando inicialmente os objetivos alcançados: da “ética dos fundamentos” à “ética do resultado”. O interessante é que o ativo reputacional e visibilidade acabam sendo destinadas aos seus próceres e, indiretamente, à instituição. E nesse ponto, geralmente dois efeitos são verificados: um interno e outro externo.

O efeito interno liga-se a hipertrofia do princípio da independência funcional em detrimento dos demais princípios constitucionais que enformam a instituição. O efeito externo refere-se à judicialização da política: é solo fértil para a polarização da sociedade, o que coloca em risco o regime democrático, do qual o Ministério Público é defensor e legitimado, não seu algoz. [19]

Se no Estado Democrático de Direito os atos formais e públicos devem ser motivados e justificados “endoprocessualmente” para as partes e “extraprocessualmente” para sociedade, legitimando e honrando a jurisdição constitucional, no “Estado Digital” ou na “Constituição Algorítmica” a legitimidade decorrerá do número de “curtidas” (o “e-vote”) nas plataformas.

Em terceiro, o “Ministério Público Robô” (bot prosecutor). A utilização de inteligência artificial e algoritmos, nas mais variadas formas (inclusive ChatGPT), não pode substituir decisões e ações institucionais. As decisões jurídicas do Ministério Público são aquelas que derivam dos casos concretos à luz das mais diversas fontes oficiais do sistema jurídico, levando em consideração a assimilação jurídica do fato, o escopo normativo, a sindicabilidade pelo critérios de validade e, essencialmente os fundamentos constitucionais. Daí a legitimidade.

Algoritmos e a inteligência artificial não são fontes, não são finalidades da justiça e muito menos institutos jurídicos. Razão pela qual servem como meio, jamais como fim, especialmente do Ministério Público, responsável pela proteção da ordem democrática.

__________________
[1] CARBASSE, Jean-Marie. Histoire du parquet. Paris: PUF, 2000, p. 2

[2] BENJAMIN, Antônio Herman V. Um novo modelo para o Ministério Público na proteção do meio ambiente. In: Revista de Direito Ambiental. v. 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 7-13.

[3] MAZZILLI, Hugo Nigro. Inovações no Ministério Público. In: Doutrinas essenciais de Direito Constitucional. v 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. p. 1133 – 1146.

[4] BURDEAU, Georges. Une survivance: la notion de Constitution. Ecrits de Droit constitutionnel et de Science politique. Paris: Éditions Panthéon-Assas, 2011.

[5] Ver o clássico: GRINOVER, Ada Pellegrini [et al.]. Problemas e reformas: subsídios para o debate constituinte. São Paulo: Ordem dos Advogados do Brasil, Departamento Editorial, 1988.

[6] NOVAIS, Jorge Reis. A dignidade da pessoa humana. Dignidade e direitos fundamentais. v. 1. Coimbra: Almedina, 2018, p. 76.

[7] Ver José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2021, p. 357.

[8] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

[9] CALLEJÓN, Francisco Balaguer. A constituição do algoritmo. Trad. Diego Fernandes Guimarães. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 25-26.

[10] CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. 2ª ed. Coimbra: Editora Coimbra, p. VII..

[11] PERELMUTER, Guy. Futuro presente: o mundo movido à tecnologia. Barueri-SP: Companhia Editora Nacional, 2019.

[12] BENKLER. Yochai. La riqueza de las redes: como la producción social transforma los mercados y la libertad. Barcelona: Icaria Editorial, 2015, p. 68. Reflete: “herramientas que mejoren las capacidades de dichas poblaciones para producir su próprio entorno informativo em vez de comprar uno pré-fabricado”.

[13] MAYER-SCHONBERGER, V.; CUKIER, K. Big Dataa revolution that will transform how we live, work, and think. Londres: John Murray, 2013.

[14] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Ensayos de informática jurídica. Mexico: Fontamara, 2009, p. 12.

[15] ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 242.

[16] SUÁREZ, Juan Luis. La condición digital. Madrid: Editorial Trotta, 2023, p. 12.

[17] HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. Petrópolis-RJ: Vozes, 2018, p. 17. Reflete: “Os indivíduos digitais se formam ocasionalmente em aglomerados, como por exemplo, em Smart Mobs”.

[18] MIRANDA, Jorge. Direitos Fundamentais. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2018 p. 339-340. Explica: “Os cidadãos têm direito à proteção da confiança, da confiança que podem pôr nos atos do poder político que contendam com suas esferas jurídicas.

[19] Ver LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How democracies die. Nova York: Crown, 2018.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!