Opinião

O uso da linguagem simples nos atos administrativos e judiciais

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5 de janeiro de 2024, 6h12

O novo sempre vem
Belchior, compositor e poeta cearense

Como toda ciência, o Direito possui seus termos próprios e técnicos, utilizados pelos seus operadores, mas que, contudo, não são de conhecimento das pessoas leigas. Nesse contexto, a problemática existente não é relacionada ao uso dessas expressões de forma razoável, e sim ao seu uso excessivo que impede a acessibilidade e o exercício da cidadania por parte daqueles que estão sujeitos ao processo judicial.

CGJ/MA
Mário Goulart Maia, ex-conselheiro do CNJ

Nesse sentido, importante salientar que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, previstos no artigo 3º, incisos I, III e IV da Constituição.

Em vista disso, para garantir a aplicação e efetividade desses objetivos é de extrema importância o fortalecimento da relação institucional do Poder Judiciário com a sociedade, incluindo a adoção de estratégias de comunicação e de procedimentos objetivos, ágeis e em linguagem de fácil compreensão.

Inclusive, tal demanda foi estabelecida como um macrodesafio na Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 325/2020. Nos últimos anos o CNJ vem se mobilizando cada vez mais para implementar atos normativos que tragam essa proximidade Judiciário/sociedade, por meio de atividades operacionais ao mesmo tempo inclusivas e acessíveis.

Com essa diretriz, destacam-se a Resolução do CNJ nº 401/2021, que dispõe sobre o desenvolvimento de diretrizes de acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência aos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares, e regulamenta o funcionamento de unidades de acessibilidade e inclusão, e a Resolução nº 215/2015, que dispõe, no âmbito do Poder Judiciário, sobre o acesso à informação e a aplicação da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011.

Tratando de forma direta do assunto, a Recomendação de nº 144, de 25 de agosto de 2023, também do CNJ, e que tive a elevada honra de relatar, propõe aos Tribunais de Justiça, Varas e Conselhos adotar a Linguagem Simples e Direito Visual na produção de atos emitidos pelo Poder Judiciário no Brasil.

O normativo entrou em vigor no dia 1º de setembro deste ano, com o objetivo de facilitar a comunicação entre o Poder Judiciário e a sociedade, diante do maior desafio do Poder Judiciário hoje, que é o de se aproximar do cidadão. Importa levar em conta que as pesquisas de opinião situam a confiança no Poder Judiciário em lugar incômodo e, certamente, isso se deve — em grande parte — à dificuldade de acesso que as pessoas têm em relação aos conteúdos dos atos judiciais, atribuível à desnecessária complexidade da sua linguagem.

Dessa forma, é clara — e mesmo urgente — a necessidade de disseminar a produção de comunicações claras, objetivas, diretas e inclusivas que permitam que os cidadãos e cidadãs tenham acesso fácil, entendam e consigam utilizar as informações produzidas pelos órgãos do Poder Judiciário.

Não há dúvidas de que o uso da linguagem simples e acessível, com a utilização de elementos visuais que facilitem a compreensão da informação, gerará impactos positivos na sociedade que, consequentemente, passará a ver e sentir o Poder Judiciário mais próximo de si, mais acessível e empático.

Além disso, a facilitação da compreensão dos atos judiciais e administrativos e das comunicações do Poder Judiciário promove maior transparência, participação, controle social e acesso aos serviços públicos de forma mais ampla e eficaz, o que pode colaborar, inclusive, com a redução de litígios e com a sempre desejável pacificação social.

Nesse ponto, merece registro a consideração dos resultados de pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça sobre “Percepção e Avaliação do Poder Judiciário Brasileiro” (relatório publicado em 2023), que, dentre outras avaliações, pesquisou se a linguagem jurídica utilizada nos processos é de fácil entendimento.

Os resultados obtidos indicam que “cerca de 41,4% dos(as) respondentes apontaram discordar em parte e 23,5% discordam totalmente. Ainda, 50% dos respondentes concordaram plenamente que já deixaram de entrar na Justiça por considerarem o processo complicado”.

Ainda é de se destacar que, segundo a ODS 10, da Agenda 2030 da ONU, a linguagem é meio para a redução das desigualdades e para a promoção da transparência, da participação, do controle social e do acesso aos serviços públicos.

A linguagem, como veículo ou transporte da comunicação, é objeto de estudos de variados matizes e vertentes. O biologista alemão professor Josef Reichholf realizou estudos sobre a evolução dos seres humanos e concluiu que o desenvolvimento da fala é um dos fatores mais significativos da epopeia da história dos homens sobre a Terra. Seria a fala — vale dizer, a comunicação entre os indivíduos — o elemento estratégico e o conectivo produtor da ideia de pertencimento, da qual se origina — ou advém — a noção de cidadania.

Na opinião desse estudioso, até à descoberta da escrita, há alguns milhares de anos, a fala constituía o único meio de comunicação importante para o homem. Não poderem falar uns com os outros significava não se compreenderem mutuamente. A fala era — e é — a possibilidade de entendimento e, de igual modo, de diferenciação (O Enigma da Evolução do Homem. Tradução de Fernando Lopes. Lisboa: Piaget, 2012, p. 211).

Na consideração do escritor argentino Alberto Manguel, porém, a linguagem complexa é sempre deficiente, sempre uma capa estendida sobre as coisas, um envoltório que pode — e deve — ser afastado, sob o qual a vida humana vive a sua dramática história e os sentimentos das pessoas pulam soltos (A Cidade das Palavras. Tradução de Samuel Titan Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 33).

A primeira atitude histórica relevante que se pode apontar com o objetivo de aproximar as pessoas mediante o emprego de linguagem de compreensão imediata é, certamente, a tradução da Bíblica Cristã para o latim vulgar, a língua então falada pelas pessoas comuns do povo (daí ser conhecida como Vulgata). Essa tarefa gigantesca foi empreendida por são Jerônimo (347-420), venerado por toda a Cristandade, e que a realizou movido pelo poderoso ímpeto de tornar a mensagem evangélica acessível ao maior número possível de pessoas.

Na literatura brasileira merece registro o livro do imortal escritor João Guimarães Rosa (1908-1967) — Grande Sertão: Veredas — onde descreve e narra na peculiar linguagem do povo dos sertões a epopéia dos homens e mulheres que vivem nos rincões do país, das quais muitos são os que nada sabem a seu respeito ou sabem apenas por ouvir dizer. A linguagem do gigante Rosa  é tão peculiar que até se elaborou um dicionário para explicar certos termos e expressões, isso com o propósito de tornar mais fácil a compreensão da fala dos rudes sertões.

Outro magnífico exemplo de como a linguagem serve para aproximar pessoas e estabelecer pertencimentos é a guinada da Igreja Católica quanto ao  seu principal sacramento — a missa — que há algumas décadas passou a ser  celebrado na língua materna dos fiéis, com efeitos imensamente positivos, isso após séculos e séculos de prática em latim, dando surgimento à expressão estar na missa,  para indicar a presença não participativa da pessoa num evento.

Para encerrar essa digressão, rememoro a observação do jurista sueco professor Karl Olivecrona (1897-1980), lembrando-nos que a linguagem, inclusive a comum, é moldada para servir aos nossos propósitos. Na filosofia moderna afirmou-se, com frequência, que esses propósitos são múltiplos. As palavras são usadas não só para descrever a realidade ou informar acerca de fatos, mas também para expressar emoções, para provocá-las e para influir na conduta das pessoas (Linguagem Jurídica e Realidade. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 50).

É claro que a linguagem jurídica muito rebuscada e bonita pode ser admissível, mas somente na academia, nos tribunais e no círculo acadêmico. Nem todos têm acesso a essa cultura, a esse conhecimento, principalmente as pessoas mais humildes que não tiveram acesso à educação, os mais pobres, os mais necessitados, que em sua grande maioria, são os que mais precisam do Poder Judiciário. Isso é um manifesto paradoxo: os que mais precisam do Judiciário talvez sejam os que menos entendem as suas decisões.

A partir do momento que o cidadão passa a compreender de forma clara, segura e objetiva o que está sendo informado nos atos judiciais, por meio dessa linguagem acessível, ele se sente detentor de direitos, nascendo um efetivo exercício da cidadania, vinculado àquela ideia de pertencimento a que aludi.

Dessa forma, é dever do Judiciário implementar em seus respectivos atos, o uso da linguagem simples, tornando assim possível a necessária aproximação entre a sociedade e Poder Judiciário.

Venho há muito tempo cultivando a ideia de simplificação da linguagem judiciária, registrando que a popularização desse tema foi desenvolvida em seminários, palestras, aulas e encontros com vários grupos de pessoas que se interessaram vivamente pelo assunto. Verifiquei, em todas as oportunidades de abordagem da matéria, que sobretudo os estudantes aderem com entusiasmo a essa pauta.

Desde as minhas primeiras manifestações como conselheiro do CNJ, em 2021, pontuei a necessidade de que expressar em linguagem acessível os atos do Poder Judiciário era um encargo que se devia assumir com dedicação e perseverança, e que terminou sendo acolhido pelo egrégio Conselho, com a edição da Recomendação de nº 144, de 25 de agosto de 2023, que contou com o apoio decisivo da sua presidente de então, a eminente ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal.

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