Opinião

Pacto pela linguagem simples: se pode complicar, melhor simplificar

Autor

  • Rogerio Schietti Cruz

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

18 de fevereiro de 2024, 10h13

Cada vez que me ponho a escrever um artigo, como este, ou a redigir uma decisão, ou voto, ou mesmo a falar em qualquer ambiente, minha maior preocupação é a de me fazer entender.

A clareza do discurso (escrito ou falado), porém, não é seu único componente essencial. A acuidade técnica e a objetividade também pedem presença.

Spacca

Tenho procurado encontrar um ponto de equilíbrio,  nessa composição de fatores, para me comunicar adequadamente.

Minha maior dificuldade talvez seja a de minimizar a herança barroca e academicista de nosso passado.

Nós, juristas, mais ainda juristas de origem lusitana, fomos treinados para falar “bonito”, para usar linguagem rebuscada, para demonstrar erudição. Mas como abandonar esse hábito, sem o risco de cair no extremo oposto, ou seja, na excessiva informalidade da linguagem e na superficialidade no trato do tema abordado?

Não podemos abrir mão da técnica, da profundidade do conhecimento, da linguagem peculiar à nossa profissão, mas será que precisamos ter um discurso ininteligível  e usar um juridiquês que mais parece javanês?

Vou confidenciar uma pequena estória de minha história: eu era um jovem promotor, de menos de 30 anos, e resolvi estudar filosofia.

Prestei vestibular na UnB (Universidade de Brasília) e passei. Segui o curso até a metade e o abandonei após cursar uma disciplina com um professor alemão, que mal falava português. As aulas giravam em torno do filósofo Hegel e foram, digamos, traumáticas.

Na verdade, eu as odiava. Faltava didática ao professor e os textos escolhidos para seminários (quase individuais, porque pouquíssimos se arriscaram a fazer tal disciplina) eram, digamos, tortuosos (rsss). E eu era provavelmente imaturo e limitado intelectualmente para compreender Hegel, com toda a sua complexidade, não apenas filosófica, mas sobretudo linguística.

Essa desistência me trouxe profundo dissabor. Senti-me mesmo envergonhado durante anos. Achei que eu não fora persistente e competente o bastante para enfrentar o desafio.

É claro que não foi só Hegel e sua nada vã filosofia que me fizeram desistir de prosseguir, mas o fato é que Schopenhauer me “reabilitou” a moral anos mais tarde, quando li “A arte de escrever”.

O livreto, além de ser uma ode à linguagem simples, faz severas críticas a autores como Hegel e outros filósofos alemães da época, que “não se esforçaram para convencer, mas para impressionar; não buscaram ser precisos e claros, mas brilhantes e hiperbólicos, ou até mesmo incompreensíveis”.

Ao se referir a Hegel, em particular, foi inclemente ao dizer que, com Hegel “chegou a falência de toda essa escola e método”.

Nem sei se Schopenhauer está certo ou não, mas quem sou eu para divergir? Achei foi bom o reproche! Lavou minha alma (risos).

Fato é que, quando escrevemos algo, devemos pensar sempre em quem vai ler. Se escrevo apenas para juristas — por exemplo, em um artigo acadêmico a ser publicado em uma revista tradicional — posso usar todo o meu juridiquês e ser mais sofisticado. Se escrevo para um jornal a ser lido por leigos, devo me adaptar.

E se produzo um voto ou decisão, tenho de tentar encontrar o ponto mediano, pois o texto será lido (ou ouvido) por um público misto. Preciso, enfim, não esquecer que “o caminho da cabeça para o papel é muito mais fácil do que o caminho do papel para a cabeça” (Schopenhauer).

Com essas preocupações, editei há alguns dias um ato interno, para a adoção de linguagem mais simples em meus votos e decisões.​

Para contribuir com julgamentos mais rápidos e facilitar a compreensão dos textos jurídicos produzidos no meu gabinete, fixei pequenas diretrizes que deverão ser implementadas gradualmente e sem comprometer o cuidado com a análise dos processos, nem dispensar o aprofundamento das teses jurídicas em discussão.

Provavelmente ainda sairão do gabinete muitos documentos fora desse padrão que pretendo ver implementado, na medida do possível. Afinal, são milhares de processos para analisar anualmente e nem sempre teremos — eu e minha competente equipe — como seguir à risca tais diretrizes, até porque a complexidade de alguns processos é algo bem corriqueiro na jurisdição extraordinária.

Mas, insisto, é uma direção a tomar e espero que possa servir para a reflexão de colegas do Judiciário, promotores, advogados, defensores e todos que se ocupam de escrever e peticionar.

Seria alvissareiro pensar que o advogado, ao redigir a petição inicial de um habeas corpus, ou o promotor de justiça, ao oferecer uma denúncia, pudessem sempre se dar conta de que quanto maior a concisão e clareza de suas peças, maior a chance de serem lidas com atenção e boa-vontade.

Não necessariamente se está a dizer que peças mais enxutas sejam melhores; mas que elas “saem na frente”, acredito que saem.

É desanimador ler uma petição de 50, uma denúncia de 100 ou um acórdão de 1.000 páginas. E se uma petição inicial ou denúncia contêm argumentos e detalhes além do que seria suficiente para o fim a que se destinam, provavelmente a decisão judicial também será prolixa e enfadonha de se ler.

E isso vale também para nossas falas, em sessões, em palestras, em cerimônias… Por quanto tempo mais teremos paciência com sessões de julgamento intermináveis, com nominatas repetidas à exaustão, com trocas exageradas de elogios em eventos jurídicos?

Não por outro motivo o CNJ lançou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, na linha do que fixara a Recomendação nº 144/2023.

Por falar nisso, acho que este pequeno texto está ficando mais longo do que imaginei. Preciso me lembrar de que o tempo do leitor é precioso — talvez o seu bem mais precioso — e que, depois de alguns parágrafos, sua atenção começa a se esvair e ele possivelmente não consiga assimilar o que eu tenho efetivamente a dizer.

Fui!

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