Diário de Classe

O senso comum teórico dos juristas e a arte de reduzir cabeças

Autores

  • Bianca Roso

    é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos na linha de pesquisa: Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos bolsista Capes/Proex mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM com bolsa Capes pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão: Phronesis: Jurisdição e Humanidades e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Mateus Alves da Rocha

    é advogado mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos bolsista Capes/Proex e pesquisador do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

10 de fevereiro de 2024, 8h00

A “cultura jurídica” não é fácil de ser definida. Geralmente a noção de cultura é construída pelo trinômio pensar-sentir-fazer [1] em cada ação cotidiana e conforme a percepção ideológica sobre esta construção. Portanto, as práticas sociais também são criadoras da cultura em si.

Pois bem, de acordo com essa premissa, a cultura jurídica também pode ser compreendida como o modo em que a realidade é conhecida e codificada pelos juristas. É assim que ela expressa as transformações ocorridas na sociedade e que, portanto, mobilizaram as práticas cotidianas desse universo jurídico. Ocorre que essas práticas foram lapidadas conforme o professor Lenio Streck [2]  — e não é de hoje — vai dizer de uma tradição liberal-individualista-normativista.

Essa divisão exaustiva, de matriz linear, conduz a uma visão deturpada da realidade, o que vem de encontro às necessidades da sociedade atual, marcadamente complexa, para a concretização dos direitos no contexto da Constituição e do Estado Democrático de Direito que se consolidam conceitualmente ao longo da segunda metade do século 20.

Senso comum teórico
É diante desse ponto de partida — e aqui, compreendemos como originária de tal estrutura —, que podemos apresentar um fenômeno vivenciado pelos juristas: o senso comum teórico dos juristas. Foi o professor Luis Alberto Warat quem identificou essa organização. Trata-se de um sistema de produção de subjetividades científicas (uniformização de sentido), as quais agiriam em prol das verdades postas pelo Estado. Analisando essa problemática, inserido no modo de compreender o direito, Warat verificou a existência de (re)produções de verdades jurídicas, chamando esse fenômeno de senso comum teórico dos juristas.

O senso comum teórico é dotado de caráter institucional, infiltrando-se em marcos específicos. Isso quer dizer que ele está presente na rotina dos tribunais e nas escolas de Direito. Mas o problema reside no fato de que é a partir da reprodução dessas verdades consagradas que podem ser elaboradas interpretações equivocadas de determinadas teorias para satisfazer a determinados interesses. Ou, quando é pior, chega-se às instituições versões estereotipadas dos conceitos com o objetivo de simplesmente legitimá-los ou simplificá-los e “a simplificação pode parecer sedutora para quem não tolera a ambiguidade, a heterogeneidade e a plurissignificação do mundo. Mas não representa um caminho possível de ser trilhado para aquele que tem a pretensão de compreender e dar respostas às demandas do nosso contexto atual” [3].

Fato é que, com o passar do tempo, vão-se perdendo as singularidades teóricas, por se aceitar essa dispersão de conceitos pertencentes a diferentes paradigmas e disciplinas, por meio de mecanismos redefinitórios que os fundem às representações desejadas. E um ponto aqui merece muito destaque: o conhecimento não pode ser passado como certeza. Pelo contrário, “conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza” [4]. E, quanto ao Direito, transmitir esta mensagem é fundamental. Sobretudo, porque sua característica dinâmica denota justamente a transformação no transcurso do tempo.

A “cabeça bem-cheia”
É neste sentido que manifestamos o conceito de “cabeça bem-cheia” [5], segundo o qual a cabeça é “onde o saber é acumulado, empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe dê sentido”. Trata-se de um conhecimento fruto de uma “acumulação estéril”. Um saber essencialmente voltado para o que é normativamente posto. Um saber que detém o conhecimento técnico, e que não é hábil à realização de conexões com as mais diversas áreas do conhecimento. Trata-se do senso comum teórico do jurista que provoca um esvaziamento da linguagem e, consequentemente, a dessimbolização do discurso e portanto, reduzindo cabeças.

Warat sabia reconhecer que existem saberes transmitidos pela comunidade jurídica que não refletem uma racionalidade democrática. Há “verdades instituídas” que adoecem o Direito: discricionariedade decisória, más recepções teóricas ad hoc, a pseudo construção de um precedentalismo à brasileira… são apenas alguns exemplos denunciados pelo professor Lenio Streck e pela Crítica Hermenêutica do Direito, que causam a cegueira dos juristas e da dogmática jurídica. O professor Lenio Streck [6] já advertia isso denunciando tal problemática responsável pelo esvaziamento:

“O problema do Direito é a insuficiente reflexão dos alunos e profissionais fruto de uma imensa e profunda crise do ensino jurídico e da dogmática jurídica, mergulhada no senso comum teórico (Warat) e refém do criterialismo (Dworkin). Espero, aliás, que, ao dizer isso, não seja acusado de fazer “juridiquês”, como se juridiquês fosse ausência de aprofundamento teórico — esse sim abundante. É o vazio que preenche os espaços da mediocridade”.

Seguindo este padrão do “saber nenhum”, conforme denunciado pelo professor Lenio, os juristas passam a compreender seu cotidiano de forma descontextualizada (anti-hermenêutica). Essa postura é, portanto, calcada na incoerência com o paradigma do Estado Democrático de Direito (cuja compreensão, por sua vez, é indissociável do giro ontológico-linguístico). Mas não só. Essa visão linear, somada com o conhecimento em pilha, em pedaços esfacelados, simplificados, mastigados e plastificados, orientada pela “pedagogia da prosperidade” [7], tudo isso ajuda à formação de uma “cabeça bem-cheia”. Essa cabeça não encontra espaço para a organização do conhecimento (quiçá tenha acesso ao conhecimento), que deve levar em conta a complexidade, a interdisciplinaridade, o desejo de saber e, fundamental, a dúvida. Talvez a reforma do pensamento, com a superação do senso comum teórico do jurista deve iniciar pelas angústias [8] e dúvidas, que geram novas perguntas e cada vez mais necessárias. Pode estar no ensino do Direito permeado pela arte e pelo saber literário [9] para a ressimbolização do conhecimento jurídico. Afinal, o que seria de nós sem a linguagem e a literatura para evidenciar-nos o que é mal, o que é bom, o que é amor e o que é ódio? Ela escancara as perebas do mundo. O texto é o medium para que possamos nos compreender [10] e compreender.

Decadência do ensino jurídico
Recentemente, o professor Lenio alertou sobre a política do CNJ de “simplificar” a linguagem jurídica brasileira. Coadunamos com o seu alerta — e, aqui, compreendemos que a grande patologia do mundo jurídico trata-se da decadência do ensino jurídico no Brasil, que deu-se (e se dá) desacompanhada de uma proposta revisionista dos valores epistemológicos que regulam o processo de constituição de verdades consagradas, desde a sua institucionalização no Brasil. Portanto, a simplificação linguística é algo que já acontece desde há muito nas universidade brasileiras, basta visualizarmos o fenômeno da extinção cada vez mais acelerada de disciplinas propedêuticas na grade curricular mesmo de instituições de ensino prestigiadas. Os estudantes preferem, cada vez mais, estudar técnicas de marketing e empreendedorismo do que os fundamentos básicos da filosofia, sociologia, história e hermenêutica.

Foi Heidegger, quem nos alertou que a função da filosofia é indagar o ser das coisas. Dessa forma, como podemos exigir do estudante de Direito uma consciência histórica se nas faculdades o que ele vê são apenas os julgados mais recentes do STJ e do STF? Como pode romper com o senso comum teórico dos juristas denunciado por Warat, se o pensamento crítico não pode aflorar? É preciso levar o direito a sério, como afirma Dworkin. Como disse Wittgenstein, a linguagem é constitutiva do mundo, portanto, menos linguagem quer dizer menos mundo.

Por fim, apontamos que o papel da Literatura, da Arte e das Humanidades é essencial na formação dos (as) juristas, ampliando os horizontes de compreensão e propiciando a revisão crítica dos sentidos dos conceitos jurídicos. A qualidade dos textos que o acadêmico de Direito consome ao longo de sua formação é determinante na construção de um pensamento crítico e democrático, e tudo isso o ajudará no exercício de sua profissão.

Diante dessa realidade, lutemos por uma dogmática jurídica independente e que não busque apenas “empilhar conhecimento” e “reduzir cabeças”, mas fornecer os insumos básicos para uma boa educação, na direção de uma “cabeça bem-feita”.


[1] CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ARTMED, 2001.

[2] Para mais informações, consultar: STRECK, Lenio Luis. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[3] STRECK, LENIO. Simplificação é… pensar que o problema do Direito é o juridiquês. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-01/simplificacao-e-pensar-que-o-problema-do-direito-e-o-juridiques/

[4] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 18. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand, 2010.

[5] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 18. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand, 2010.

[6] STRECK, LENIO. Simplificação é… pensar que o problema do Direito é o juridiquês. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-fev-01/simplificacao-e-pensar-que-o-problema-do-direito-e-o-juridiques/

[7] STRECK, LENIO. Resumocracia, concursocracia e a “pedagogia da prosperidade”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-11/senso-incomum-resumocracia-concursocracia-pedagogia-prosperidade/

[8] Para mais informações, consultar: STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito – Hermenêutica. 1.ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

[9] Para mais informações, consultar o texto: https://www.conjur.com.br/2023-out-14/diario-classe-literatura-salvar-juristas/

[10] Ricouer, Paul. Hermenêutica e Ideologias. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, bolsista Capes/Proex, mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa Capes, pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão Phronesis: Jurisdição e Humanidades e do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é advogado, mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, bolsista Capes/Proex e pesquisador do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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