Opinião

Princípios fundamentais da investigação: análise da Lei Orgânica das Polícias Civis

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

3 de janeiro de 2024, 11h15

A Lei federal n. 14.735, de 23 de novembro de 2023, instituiu a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC), dispondo sobre suas normas gerais de funcionamento. No intuito de sistematizar os princípios institucionais básicos previstos no artigo 4º, podemos classificá-los entre aqueles que dizem respeito à devida investigação criminal (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil) e outros que dizem respeito a boa administração ou gestão policial (artigo 37, da CRFB).

Nesse artigo cuidaremos do primeiro grupo de princípios relacionados, ou seja, daqueles relacionados à investigação criminal estritamente regulamentada por lei. Isso significa que todas as etapas da investigação devem ser realizadas de acordo com o que a lei estabelece, garantindo que os direitos dos suspeitos sejam protegidos [1].

A devida investigação legal é aquela que possui duração razoável (artigo 5º, inciso LXXVIII, da CRFB). Todavia, é oportuno dizer que inexiste no direito positivo brasileiro norma que conceitue a devida investigação criminal. Trata-se de um postulado aberto, que deve ser preenchido por outras normas jurídicas, notadamente aquelas que digam respeito às regras de tratamento ao investigado. Fauzi Hassan Choukr (2001) observa que a investigação criminal enfrenta um desafio crucial no sistema de justiça penal, que é encontrar um equilíbrio delicado entre garantir a segurança da sociedade e proteger a liberdade dos indivíduos envolvidos na investigação.

Os princípios institucionais básicos e as diretrizes desempenham papéis complementares e interligados na orientação das atividades e no funcionamento eficaz dessa instituição. Os princípios servem como alicerces sólidos, representando os valores fundamentais que norteiam a atuação da polícia civil. Por outro lado, as diretrizes são como mapas estratégicos que definem caminhos específicos para alcançar os objetivos institucionais, transformando os princípios em ações concretas. Assim sendo, temos que a devida investigação criminal é aquela que observa, entre outros, os princípios institucionais abaixo tratados.

A proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais no âmbito da investigação criminal (artigo 4º, inciso I, da LONPC) é um corolário lógico do meta-princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da CRFB). Dando substância aos referidos postulados, o artigo 26, parágrafo único, da LONPC estabelece que, ao presidir o inquérito policial, deve respeitar os direitos e as garantias fundamentais. De fato, os aspectos da proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais é imperativo o tratamento humanitário dos investigados, especialmente daqueles provisoriamente presos. Sylvester (1910) já ressaltava a importância de métodos modernos e humanos para lidar com infratores, além de enfatizar o treinamento em inteligência e tato para a resolução eficaz de situações conflituosas.

O princípio da discrição e preservação do sigilo necessário à efetividade da investigação e à salvaguarda da intimidade das pessoas (artigo 4º, inciso II, da LONPC) é uma exceção ao princípio da publicidade dos atos realizados pela administração pública (artigo 37, da CRFB). Isso significa que as ações e decisões tomadas pelos órgãos governamentais, incluindo a polícia, devem ser tornadas públicas e acessíveis ao conhecimento de todos. A razão para isso é garantir não apenas que os efeitos desses atos sejam visíveis para o público em geral, mas também para permitir que os cidadãos exerçam um tipo de controle sobre esses atos, conhecido como “controle interno implícito”. É dizer: a publicidade dos atos da administração pública é essencial para permitir esse tipo de controle pelos administrados.

Contudo, no contexto das investigações policiais, a publicidade dos atos tem características diferentes. As investigações policiais muitas vezes envolvem informações sensíveis e estratégicas que não podem ser totalmente expostas ao público em geral. Portanto, existe uma exceção à regra da publicidade total, conhecida como “sigilo parcial”. Assim, certas informações relacionadas a investigações em curso podem ser mantidas em segredo. Isso é feito para proteger a integridade das investigações, evitar a destruição de evidências, garantir a segurança de testemunhas e proteger a privacidade dos envolvidos até que a investigação seja concluída.

Ademais, o artigo 34, da LONPC proíbe a divulgação de técnicas de investigação e informações obtidas por medidas judiciais pelas polícias civis, exceto em casos previstos por lei. Aqueles que violarem essa proibição podem enfrentar responsabilização civil, administrativa e criminal. A exceção é feita para cursos de formação ministrados a profissionais das instituições policiais. Em audiências, os policiais civis devem preservar o sigilo das técnicas de investigação, e as leis estaduais podem estabelecer restrições adicionais aos policiais civis. O objetivo é proteger informações sensíveis enquanto reconhece a necessidade de treinamento e formação adequados para os profissionais de segurança pública.

A busca da verdade real (artigo 4º, inciso VII, da LONPC), também conhecida como princípio da veracidade, impõe que a investigação criminal é uma parte intrínseca do processo penal que se concentra em desvendar a verdade histórica de um crime, olhando para eventos passados. Seu objetivo principal é fornecer ao julgador as ferramentas necessárias para reconstruir os fatos criminosos. No entanto, a busca se concentra na veracidade das provas, em oposição a uma verdade histórica absoluta e incontestável, o que é considerado impossível de alcançar.

A investigação criminal permite uma progressão na valoração das provas, indo da mera possibilidade (notícia-crime) para a verossimilhança (imputação/indiciamento), probabilidade (indícios racionais) e, finalmente, certeza (para condenação). Por outro lado, a investigação criminal deve ser democrática e não se limitar a uma única linha de investigação que leve à incriminação do suspeito por motivos precipitados. Deve também considerar linhas de investigação que possam corroborar a tese da inocência, conforme previsto em outras jurisdições, como as da Itália e Alemanha. A legislação processual penal brasileira também prevê a busca por provas que interessem ao investigado (artigo 240, § 1°, e, do Código de Processo Penal).

O princípio livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia (artigo 4º, inciso VIII, da LONPC) é um aspecto fundamental da atuação desse profissional. O artigo 5º, inciso, II, da LONPC estabelece que a polícia civil deve observar o caráter técnico, científico e jurídico na análise criminal da investigação policial. Isso significa que a análise e as decisões do delegado de polícia devem ser baseadas em fundamentos técnicos, científicos e jurídicos sólidos, demonstrando a importância de uma abordagem técnica e jurídica na condução das investigações.

Na mesma esteira, o já mencionado artigo 26 reforça a autonomia e a prerrogativa do delegado de polícia na direção das atividades de investigação, incluindo a presidência do inquérito policial. Ele deve atuar com isenção e autonomia funcional, no interesse da efetividade da tutela penal. Além disso, a norma assegura a análise técnico-jurídica do fato, o que significa que o delegado deve aplicar seus conhecimentos técnicos e jurídicos na tomada de decisões durante a investigação, respeitando os direitos e garantias fundamentais. Portanto, essas normas enfatizam a importância do livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia na condução das investigações criminais.

No entanto, é importante observar que a posição do Supremo Tribunal Federal sobre a autonomia do delegado de polícia evoluiu ao longo do tempo. Em 2021, o STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.579, decidiu pela inconstitucionalidade da autonomia funcional do delegado de polícia, peritos, médicos-legistas e outros cargos correlatos, bem como de toda a polícia judiciária. A justificativa para essa decisão foi que a autonomia funcional desses profissionais violava certos pressupostos constitucionais, como o poder de requisição do Ministério Público e a subordinação administrativa, funcional e financeira em relação ao governador, que possui a direção superior da administração pública estadual, conforme estabelecido no artigo 144, §6º, da CRFB.

Todavia, o STF ressaltou no mesmo julgamento que a conclusão sobre a inconstitucionalidade da autonomia funcional não afasta o dever desses servidores públicos de atuarem com independência técnica. Isso significa que, apesar de não terem autonomia funcional, esses profissionais, incluindo os delegados de polícia, devem agir com independência técnica em suas funções. Eles têm a responsabilidade de analisar vestígios, elementos de convicção e interpretá-los, sem sofrer interferências ilegítimas, com base em seus conhecimentos técnicos e experiência.

Portanto, a posição do STF reconhece que, embora não tenham autonomia funcional, esses profissionais devem gozar de independência técnica em suas atividades, especialmente nas funções de peritos criminais, médicos-legistas e datiloscopistas policiais. Para os delegados de polícia, que desempenham um papel de protagonismo investigatório, a autonomia funcional é considerada um pressuposto necessário para o desempenho de suas funções, relacionadas à investigação e à polícia judiciária. Isso significa que eles devem ter a liberdade de tomar decisões relacionadas à sua função investigativa, sem interferências ilegítimas.

O princípio da atuação imparcial na condução da atividade investigativa e de polícia judiciária (artigo 4º, inciso XII, da LONPC) tem forte inspiração em um dos princípios de Robert Peel [2] (Williams, 2003). A imparcialidade técnica é princípio-chave, que enfatiza a necessidade de a polícia fornecer serviços de maneira imparcial, independentemente da opinião pública ou da justiça das leis individuais.

Os policiais devem tratar todos os membros do público com cortesia e amizade, independentemente de sua posição social. Sylvester (1910), por sua vez, afirmava que o tratamento igualitário e imparcial é um princípio inegociável. A polícia deve prestar serviços de maneira imparcial, independentemente de raça, religião, gênero, orientação sexual, fatores socioeconômicos ou afiliações políticas das pessoas atendidas. Por tais razões o artigo 6º, inciso XXVII, da LONPC estabelece como competência da polícia civil “executar com autonomia, imparcialidade, técnica e cientificidade os seus atos procedimentais no âmbito das atribuições dos respectivos cargos.

A autonomia, imparcialidade, tecnicidade e cientificidade investigativa, indiciatória, inquisitória, notarial e pericial (artigo 4º, inciso XV, da LONPC) podem ser resumidas no princípio da unidade técnico-científica, que se refere à abordagem integrada e coordenada de todos os elementos envolvidos na investigação de crimes. Este princípio implica que a investigação criminal deve ser conduzida de forma ordenada, considerando a formalização das provas da infração penal, bem como todos os outros atos necessários para esclarecer os aspectos subjetivos e objetivos dos crimes.

Os procedimentos e atividades relacionados à investigação criminal devem ser organizados e conduzidos de maneira lógica e coordenada. Isso inclui a documentação adequada de provas, depoimentos e outros elementos relevantes para a investigação. A investigação deve reunir conhecimentos técnicos (experiência prática dos investigadores), científicos (como análises forenses) e jurídicos (orientação legal) para garantir que todos os aspectos da investigação sejam tratados de forma adequada e legal.

O delegado de polícia é a autoridade pública com formação adequada para supervisionar e coordenar a investigação, uma vez que detém conhecimentos jurídicos para garantir que todos os atos estejam em conformidade com a lei. Além disso, a investigação deve envolver conhecimentos técnicos e científicos relevantes, como perícias criminais, exames médico-legais e criminologia, para abordar aspectos técnicos e científicos dos casos.

O princípio da essencialidade da investigação policial para a persecução penal (artigo 4º, inciso XVI, da LONPC) eleva a investigação à etapa essencial do processo penal, cujo objetivo principal é buscar a verdade histórica sobre um crime. A investigação criminal é voltada para o passado e visa fornecer ao julgador informações necessárias para avaliar o ocorrido no contexto de um suposto crime. Não é por outro motivo que o artigo 1º, da LONPC estabelece que as polícias civis são instituições permanentes e têm funções exclusivas e típicas de Estado.

Além disso, são descritas como essenciais à justiça criminal e imprescindíveis à segurança pública e à garantia dos direitos fundamentais no âmbito da investigação criminal. Isso significa que a investigação policial desempenha um papel fundamental na persecução penal, sendo uma atividade essencial para a administração da justiça e a manutenção da segurança pública. O artigo 19, § 1º, da LONPC reforça a essencialidade dos cargos efetivos da polícia civil, considerando-os permanentes e típicos de Estado. Isso significa que os profissionais que ocupam esses cargos desempenham um papel fundamental na condução das atividades de investigação e são indispensáveis para o funcionamento adequado da instituição policial.

O princípio da natureza técnica e imparcial das funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, sob a presidência e mediante análise técnico-jurídica do delegado de polícia (artigo 4º, inciso XVII, da LONPC), conforme preconizado por Robert Peel, as funções policiais-executivas são enfatizadas, com a polícia aderindo estritamente às funções executivas da aplicação da lei e evitando usurpar os poderes judiciais ou de vingar indivíduos ou julgar a culpa e punir os culpados (Williams, 2003). Sylvester (1910), afirmava que a responsabilidade e a justiça são princípios que permeiam todos os demais. Os policiais devem ser responsáveis por suas ações, agindo de acordo com a lei e sem usurpar os poderes do sistema judiciário.

Conforme se verifica, a LONPC estabeleceu princípios fundamentais que norteiam a atuação das polícias civis no que diz respeito à investigação criminal. Estes princípios, que se concentram na proteção da dignidade humana, no respeito aos direitos fundamentais, na imparcialidade, na técnica e na essencialidade da investigação, representam um avanço significativo na busca por um sistema de justiça mais justo e eficaz. A LONPC também reconhece a importância do papel do delegado de polícia na condução das investigações, garantindo-lhe a autonomia técnica necessária para tomar decisões fundamentadas.

Em suma, a LONPC estabelece uma base sólida para o funcionamento das polícias civis, garantindo que a devida investigação criminal seja concretizada de maneira eficaz, respeitando os direitos dos cidadãos e promovendo a justiça. É fundamental que esses princípios sejam observados e aplicados de maneira consistente, a fim de fortalecer o sistema de justiça criminal no Brasil e assegurar que todos os envolvidos (vítimas e investigados) sejam tratados com dignidade e justiça.

 


Referências

Alsabrook, C. L., Aryani, G. A., & Garrett, T. D. (2001). Five Principles of Organizational Excellence in Police Management. Law and Order, 49(5), 109-114.

Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2001.

Sylvester, R. (1910). Principles of Police Administration. Journal of Criminal Law and Criminology, 1(3).

UNODC. (s.d.). The General Principles of Use of Force in Law Enforcement. Disponível em: de https://www.unodc.org/e4j/zh/crime-prevention-criminal-justice/module-4/key-issues/3–the-general-principles-of-use-of-force-in-law-enforcement.html. Acesso em: 1 nov. 2023.

Williams, K. L. (2003). Peel’s principles and their acceptance by American police: Ending 175 years of reinvention. The Police Journal, 76(2), 97-120.

[1] À título de comparação, a legislação portuguesa estabelece que a investigação criminal envolve uma série de ações que devem ser realizadas estritamente de acordo com a lei processual penal. Isso inclui investigar se um crime ocorreu, identificar os responsáveis e coletar evidências de acordo com os procedimentos legais estabelecidos.

[2] Em 1829, Sir Robert Peel criou a The Metropolitan Police Service (MPS), instituição responsável pelo policiamento de toda a Grande Londres, com exceção da “Square Mile” – a área da City, que possui sua própria força policial, a City of London Police. Na historiografia oficial, Peel é tido como o “pai do policiamento moderno”, ao preconizar a atuação policial pautada ética.  A polícia peeliana é baseada em nove princípios fundamentais que delineiam a atuação ética e eficaz dos agentes de aplicação da lei penal (Williams, 2003).

Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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