Opinião

Controvérsia: quando ocorre o ITCMD causa mortis?

Autores

  • Rodolfo Rebouças

    é sócio do Penna Marinho e Rebouças Advogados mestre em Direito Tributário pela USP especialista em Direito Tributário pelo IBET e MBA em Direito da Economia e da Empresa pela FGV.

  • Dhiulia Santos

    é advogada no Penna Marinho e Rebouças Advogados professora-seminarista do IBET e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

2 de janeiro de 2024, 6h28

O ITCMD causa mortis [1] é o imposto sobre a “transmissão causa mortis (…), de quaisquer bens ou direitos”, previsto no artigo 155, inciso I, da Constituição (CF). E, conforme apresentado a seguir, há uma questão cinzenta que o encobre relacionada ao momento de ocorrência do fato jurídico tributário da exação apto a fazer surgir a respectiva relação jurídico-tributária.

Boa parte da doutrina afirma que o fato jurídico tributário do ITCMD causa mortis ocorre com o falecimento do autor da herança, implicando na “automática transmissão” do acervo patrimonial do falecido aos herdeiros, com base em ficção jurídica decorrente do princípio da saisine (artigo 1.784 do Código Civil)[2].

A regra-matriz de incidência tributária do ITCMD causa mortis construída por esses autores registra que o critério material da exação ocorre com a transmissão causa mortis de quaisquer bens e direitos, o critério espacial da exação ocorre nos moldes do artigo 155, §1º, da CF[3] e o critério temporal da exação ocorre com a abertura da sucessão, o que se presume que ocorra com o falecimento do autor da herança.

No entanto, essa posição não oferece resposta para questões conceituais e práticas na aplicação desse tributo. Como esse é um tributo sobre a transmissão, é preciso que se saiba exatamente o que será transmitido e para quem será transmitido, bem como é preciso definir o exato momento em que será transmitido (morte, sucessão ou transmissão efetiva).

Atribuir ao falecimento do autor da herança o critério temporal do ITCMD causa mortis é possibilitar a ocorrência de fato jurídico tributário sem a existência de fato concreto, isto é, sem a devida apuração da transferência do patrimônio aos herdeiros e legatários, mas apenas se lastreando em uma ficção jurídica, diante do hiato temporal existente entre a morte e a transmissão.

Esse raciocínio, por sua vez, implica em uma série de problemas, pois, no momento de falecimento do autor da herança, não há clareza suficiente para determinar quem serão os herdeiros e legatários da herança e, muito menos ainda, qual será o valor da herança transmitida.

Conforme Cristiane Pires[4], o critério temporal é o que permite verificar o exato instante de ocorrência da conduta constante no critério material. Por isso, em nossa opinião, a abertura da sucessão não é o suficiente para o preenchimento dos critérios constantes no antecedente da regra-matriz de incidência do ITCMD causa mortis e, especificamente o critério temporal. De modo que, nesse momento, não há elementos suficientes para o surgimento relação jurídico-tributária apta para a cobrança do tributo.

Uma questão prática decorrente desse equívoco conceitual está em se determinar se para a venda de um imóvel com fins de quitação da dívida do espólio temos a necessidade de cobrança do ITCMD. Essa situação pode implicar, por exemplo, em uma alteração do critério espacial do tributo. Basta pensar que a venda de um imóvel na Bahia para pagar parcialmente a dívida de um espólio processado no Distrito Federal fará com que a Bahia não mais tenha qualquer recolhimento de ITCMD sobre esse imóvel e o DF passe a, possivelmente, recolher o tributo sobre o residual.

O ferramental teórico ensinado por Paulo de Barros Carvalho[5] registra que o fato jurídico tributário que precede a relação jurídica tributária somente existirá quando o elemento definidor do critério temporal estiver presente. Lado outro, é preciso que o critério material seja afirmado, informado ou confirmado pela apuração da base de cálculo[6]. Sem esses elementos não temos obrigação tributária.

Para apuração da herança e verificação dos herdeiros é necessário a instauração de procedimento de inventário e partilha (artigo 611 do CPC), sendo o único meio capaz de tornar definitiva a transmissão da herança ao herdeiro (artigo 1.804 do CC).

Por isso, a base de cálculo do ITCMD é a herança líquida[7], ou seja, é a parte do patrimônio que efetivamente é transmitida ao herdeiro. Essa posição, além de confirmada por vários tribunais estaduais[8], também já foi validada pelo Supremo Tribunal Federal[9].

Logo, considerada a herança líquida, o único critério material do ITCMD possível é a transmissão causa mortis concreta aos herdeiros do patrimônio, verificada com a expedição de formal de partilha em que se torna possível saber o quantum a ser transmitido e a quem será transmitido. Por sua vez, esse é o fato juridicamente relevante à tributação e apto a relevar o conteúdo econômico da obrigação tributária e a pessoalidade daqueles a serem submetidos à tributação.

Nesse sentido, a capacidade contributiva e a pessoalidade do contribuinte no ITCMD só será verificada com a apuração da herança líquida e a verificação dos efetivos herdeiros e legatários, sendo que, somente a partir desse momento se pode cogitar a ocorrência do fato jurídico tributário do ITCMD e o surgimento da respectiva relação jurídica.

Perceba que a ideia da saisine contida no artigo 1.784 do CC evidencia que não se tem a transmissão desde logo, mas apenas o início de procedimento de apuração para se verificar o que e para quem é transmitido. A transmissão não se dá desde logo, mas somente após os procedimentos existentes e legalmente previstos para a transmissão (como p.ex. a ideia contida no artigo 1.804 do CC).

Com base nisso, é que acreditamos que atribuir a data do falecimento do autor da herança como o critério temporal do ITCMD causa mortis não é o mais adequado, visto que a ocorrência desse fato é insuficiente para fazer surgir a relação jurídico-tributária, pois nem sequer é possível saber ainda, os sujeitos ativos e passivos e a base de cálculo dessa exação.


[1] Considerando que temos duas materialidades no ITCMD, causa mortis e doação.

[2] (i) TREVIZAN, Cláudio Aparecido Bonfim. A Regra Matriz Constitucional do ITCMD – Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, de Quaisquer Bens Ou Direitos. II Concurso Sinafresp de Monografias: Textos Premiados e Que Receberam “menção Honrosa”. São Paulo: SINAFRESP, 2006, p. 354-355; (ii) RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Imposto Sobre a Transmissão de Bens ou Direitos a Eles Relativos – Causa Mortis e Doações (ITCMD). Tratado de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 529. (iii) ICHIHARA, Yoshiaki. Imposto Sobre Transmissão “causa Mortis” e Doação, da Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD. Revista de Direito Tributário nº 85. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 374.

[3] O art. 155, §1º, incisos I e II da CF possui critérios distintos de localização e de identificação do Sujeito Ativo a depender se estamos diante de bens móveis ou imóveis.

[4] PIRES, Cristiane. O tempo e o tributo: estudo semiótico do critério temporal da regra-matriz de incidência tributária. São Paulo: Noeses, 2019, p. 133.

[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 10. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 205-206.

[6] Conforme ensina Paulo de Barros Carvalho[6], a base de cálculo tem “(…) a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o critério expresso na composição do suposto normativo”. Curso de direito tributário. 31.ed. São Paulo: Noeses, 2021, p. 364.

[7] REBOUÇAS, Rodolfo; FILHO, Cristiano Moreira do Amaral; BLANK, Otávio Gomes. A base de cálculo do ITCMD na sucessão causa mortis de imóveis. In: DIAS, Rodrigo Antônio; CASANOVA, Vivian. Temas atuais de tributação das atividades imobiliárias Vol. 2.  São Paulo: Ibradim, 2022. p. 273-299

[8] A exemplo: TJSP: Apelação / Remessa Necessária 1023527-72.2018.8.26.0053; Relator (a): Marrey Uint; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Data de Registro: 14/02/2019.

[9]  “(…) se o imposto é sobre transmissão de patrimônio, a base de cálculo deve ser uma medida do patrimônio (que será o patrimônio transferido). (…) Ao vedar as deduções, a lei estadual impede a tributação sobre a transmissão do patrimônio líquido (quantum efetivamente transmitido) e assim deforma a regra matriz de incidência. (…) a Corte já se posicionou no sentido de que a base de cálculo que é o monetante líquido da herança. (STF. Excerto do voto condutor do acórdão. AI 733976 AgR, Relator: Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 11/12/2012, acórdão eletrônico. DJe 25, divulgado em 05/02/2013 e publicado em 06/02/2013).

Autores

  • é sócio do Penna Marinho e Rebouças Advogados, mestre em Direito Tributário pela USP, especialista em Direito Tributário pelo IBET e MBA em Direito da Economia e da Empresa pela FGV.

  • é advogada no Penna Marinho e Rebouças Advogados, professora-seminarista do IBET e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

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