Segunda leitura

Corrupção na esfera privada, da tolerância à criminalização

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

25 de fevereiro de 2024, 11h41

A corrupção sempre é lembrada como algo condenável praticado por servidores públicos. Para dar-lhe combate, o Código Penal prevê no artigo 317 o delito de corrupção passiva. Leis especiais atacam tal prática ao permitir meios de prova não previstos no velho Código de Processo Penal. A principal delas é a Lei 12.850, de 2013 (Lei das Organizações Criminosas), que trata da delação premiada [1].

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Mas, paralelamente à corrupção dos servidores públicos contra os interesses da administração, outra a acompanha discretamente, mas nem por isso é menos nociva. Refiro-me à corrupção nas relações privadas, que pode ir desde uma gorjeta ao garçom em uma festa para ser melhor tratado, até um funcionário do um hospital de grande porte que cobra um valor expressivo para a escolha de uma empresa fornecedora de material cirúrgico.

A primeira, que no fundo indica a necessidade de demonstração de poder (tenho dinheiro, logo devo ser tratado melhor), desvirtua o trabalho garçom, leva-o à perda da dignidade. A segunda, mais grave evidentemente, pode prejudicar a saúde de milhares de pacientes que vêm a receber tratamento com material de menor qualidade. Além disso, interfere na livre concorrência, um dos pilares do capitalismo.

Ana Cecília Santos Chaves em oportuno estudo sobre o combate à corrupção privada no Brasil, observa que é: “Uma tarefa de grande complexidade, em razão da escassez de dados estatísticos e estimativas oficiais, bem como de pesquisas acadêmicas que versem sobre o assunto. Somada à quase ausência de dados e estudos, está a própria natureza do delito que, quase sempre, envolve uma teia bastante intrincada de sujeitos e meios de execução, dificilmente chegando a ser completamente desmantelada” [2].

Com efeito, além de inexistirem estatísticas oficiais, paira sobre o assunto uma tolerância enorme. A rejeição a tal tipo de procedimento exigiria uma conscientização cívica da qual estamos a uma distância semelhante à existente entre a Terra e a Lua.

No entanto, a nível mundial, já existem várias iniciativas nesta área. Um bom exemplo disto é a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção [3], que no seu Capítulo II, artigo 12, Setor Privado, dispõe: “1) Cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, adotará medidas para prevenir a corrupção e melhorar as normas contábeis e de auditoria no setor privado, assim como, quando proceder, prever sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas em caso de não cumprimento dessas medidas”.

No Brasil, a corrupção privada limita-se ao âmbito civil, com apenas duas exceções, como adiante se verá. São praticamente inexistentes decisões dos tribunais sobre tais casos. Um exemplo. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro repeliu ação indenizatória em que uma sociedade empresária autora afirmava ter sido coagida a devolver à ré, a título de propina, parte do que desta recebeu pela contratação de seus serviços, sob ameaça de rescisão do contrato. A corte concluiu que houve livre adesão àquele acordo, com benefício mútuo, e, portanto, a indenização pretendida não era devida [4].

Vários países têm previsão criminal por crimes praticados na iniciativa privada. Focando apenas em Portugal, país de nós tão próximo, a matéria é regulada pela Lei 20, de 2088 [5], que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no sector privado. Os artigos 8º e 9º dispõem a respeito da corrupção no setor privado, sendo que o primeiro de forma passiva e o segundo ativa.

No Brasil, tramita na Câmara dos Deputados, por iniciativa do deputado Kim Kataguiri, o Projeto de Lei 576, de 2023, que propõe a inclusão no Código Penal de quatro artigos (207-A, 207-B, 207-C e 207-D) com previsão de várias práticas de corrupção privada. Referido PL encontra-se na Comissão de Coordenações Permanentes desde 29 de abril de 2023 [6].

Houve, contudo, abertura para a criminalização por corrupção privada em duas hipóteses: A primeira, bem antiga, é a prevista na Lei 9.279 de 1996, que trata de direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Nela, o artigo 195, incisos IX e X, prevê a prática delituosa punida com três meses a um ano de detenção, ou multa, para aqueles que cometem concorrência desleal, dando ou prometendo dinheiro a empregado do concorrente para obter vantagem ou àquele que receba dinheiro ou outra utilidade com a mesma finalidade.

A segunda diz respeito a esportes, com foco maior no futebol. A Lei 12.299, de 2010, Estatuto do Torcedor, no artigo 41, C, D e E, considerou figuras penais a corrupção destinada a alterar o resultado da competição ou evento esportivo, nas suas formas ativa e passiva, e a fraude, que também pode ficar caracterizada independentemente de intervenção no resultado, culminando a pena — de dois a seis anos de reclusão e multa [7]. Recentemente, a Lei 14.597, de 2023, passou a prever no artigo 165, o crime de exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de organização esportiva privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou de omitir ato inerente às suas atribuições, com pena de dois a quatro anos de reclusão e multa.

Exposta a atual situação, resta saber se há intenção real da sociedade, através de seus representantes no Parlamento, de promover tão inovadora modificação de nossas práticas seculares. As múltiplas condutas que podem configurar corrupção nem sempre são vistas como condenáveis pela sociedade. Essa visão depende de um grau de cultura apurado, uma capacidade de perceber que o fazer ou não fazer algo nas relações privadas, com o fim de ter algum tipo de vantagem, causa prejuízo ao coletivo.

Na verdade, o combate à corrupção nada tem de fácil e nem sempre é compreendido. Há uma distância enorme entre o querer relações honestas e a realidade. Nada traduz essa situação com maior clareza e realidade do que o filme L’Ora Legale, dirigido e interpretado por Salvatore Ficarra e Valentino Picone [8].

Com a palavra os deputados federais, a quem cabe apreciar o Projeto de Lei 576, de 2023.


[1] O nome correto é colaboração premiada, mas delação é o nome pelo qual tal acordo é reconhecido e que prefiro adotar.

[2] CHAVES, Ana Cecília Santos. A Corrupção Privada no Brasil. Disponível em: file:///C:/Users/Usuário/Downloads/154- Texto%20do%20Artigo-410-1-10-20140117.pdf. Acesso em 22 fev. 2024, p; 243;.

[3] Nações Unidas. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf. Acesso em 22 fev. 2024, p; 243;.

[4] TJ-RJ, Apelação Cível 0004221-48.2005.8.19.0001, 17ª.Câmara Cível. Acesso em 23 fev. 2024.

[5] PGDL. Legislação. Disponível em: https://pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_ articulado.php?nid=983&tabela=leis. Acesso em 23 fev. 2024.

[6] Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2348959. Acesso em 23 fev. 2024.

[7] MELO, Cecília. Lei Geral do Esporte amplia tratamento para crimes de corrupção privada. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 27 mai. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-27/cecilia-mello-lei-geral-esporte-corrupcao-privada/. Acesso em 23 fev. 2024.

[8] Festival de cinema italiano. L´Ora legale. Disponível em: https://festivalcinemaitaliano.com/la-controfigura-o-duble/. Acesso em 24 fev. 2024.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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