Opinião

O Centro Principal de Interesses na insolvência transnacional

Autor

  • Isabela Dunaev

    é especialista em Recuperação Judicial e Falências pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e sócia do escritório Nascimento e Rezende Advogados.

25 de fevereiro de 2024, 6h37

A evolução dinâmica dos mercados globais e a interconexão crescente entre entidades empresariais de diferentes nações geram desafios aos operadores do Direito, se desdobrando em questões sensíveis ao sistema jurídico quando se trata de resolver a insolvência em um contexto transnacional.

Dentre as especificidades de um processo que envolva grupo econômico em múltiplas jurisdições, uma das principais dificuldades enfrentadas é a determinação do Centre of Main Interests (Comi) ou Centro de Interesses Principal (CIP).

O Comi, conceito fundamental em casos de insolvência, desempenha um papel crucial na determinação da jurisdição competente para conduzir procedimentos de insolvência de conglomerados empresariais e na coordenação eficiente de casos complexos e que envolvam diferentes territórios.

Além disso, é essencial para definir o procedimento principal e o não principal, a jurisdição aplicável, proteção dos credores e maximização do valor dos ativos, coordenação dos procedimentos legais e mesmo a aplicação das medidas de auxílio que acompanham o processo de reestruturação, como o stay period.

Noutro esteio, ressalta-se que a fixação do Comi tem efeitos explícito sobre direitos e obrigações contratuais, podendo impactar na interpretação e execução de contratos.

Contexto
Ao adentrarmos na análise do Comi na insolvência transnacional, é imperativo contextualizar não apenas sua base jurídica, mas também entender como as dinâmicas econômicas globais moldaram e desafiaram esse conceito ao longo do tempo — e continuam desafiando.

A fluidez das fronteiras empresariais, presença de ativos em diversas localidades e a heterogeneidade das legislações nacionais são elementos que compõem o pano de fundo desse tema.

Malgrado a importância do Comi, as normas gerais não são suficientes para uma definição assertiva e impassível de discussão. A Uncitral, através da Uncitral Guide of Enactment [1] buscou estabelecer alguns requisitos para o reconhecimento do Centro de Interesses, pautado em presunções em que os tribunais possam se debruçar, quais sejam:

(1) a sede estatutária, o local de atividade principal e a residência habitual e
(2) reconhecimento, pelos seus credores, do local em que o devedor administra os seus interesses.

Princípios e diretrizes
Aqui vale registrar que a Uncitral desenvolveu um conjunto de princípios e diretrizes gerais com intuito de harmonizar o direito transfronteiriço, facilitando a cooperação, comunicação e coordenação entre tribunais e demais autoridades envolvidas no procedimento de insolvência, pautado no princípio do universalismo modificado.

A adoção da Uncitral facilita as transações comerciais e investimentos para desenvolvimento da atividade econômica, ao passo que traz previsibilidade aos credores e investidores, representando um grande avanço para o instituto da insolvência.

De início percebe-se que as presunções estabelecidas pela Uncitral abrem margem para compreensão de locais distintos. Em outras palavras, a sede estatutária pode não ser o local reconhecido pelos credores como principal estabelecimento, ou ainda, é possível que nenhum dos locais estabelecidos como norteadores da fixação do Comi represente efetivamente o centro de principais interesses da companhia.

É exatamente pela imprecisão de se definir como regra o local do Comi que as diretrizes estabelecidas implicam na análise casuística do Poder Judiciário, ou seja, cabe ao juízo, impulsionado pelo pedido de soerguimento, proceder ao escorreito exame de qual elemento empresarial predomina sobre os demais para justificar a fixação da jurisdição.

A legislação americana, de igual forma, não apresenta requisitos absolutos para definição do Comi. Em que pese o Comi ser presumido como o local do registro estatutário, esta não é absoluta, devendo ser procedida a análise de fatores de localidade, tais como:

(1) sede;
(2) exercício da administração;
(3) principais ativos;
(4) maioria dos credores ou ainda a maioria dos credores que serão afetados pelo processo de reestruturação e
(5) jurisdição que se aplique à maioria das disputas do devedor.

Fórum Shopping e o caso Eurofood IFSC
A complexidade envolvendo o Comi não se limita somente à sua definição conceitual. Sua fixação é importante para que seja evitado o instituto conhecido como Fórum Shopping.

O Fórum Shopping refere-se à prática do devedor em escolher jurisdições favoráveis para maximizar vantagens estratégicas em litígios. No cenário de insolvência transnacional, empresas em dificuldades financeiras podem explorar diferentes sistemas legais para obter resultados mais favoráveis aos seus interesses.

Na prática, tornou-se evidente que é possível deslocar o Comi (quer seja através da mudança da sede social ou da administração central e financeira de uma empresa, ou de ambas) a fim de beneficiar o devedor em processos de falência ou de reorganização.

Tal medida é explicitamente desmotivada no Regulamento Europeu (2015/848), o qual estabelece que é necessário evitar que as partes sejam incentivadas a transferir ativos ou processos judiciais de um Estado-Membro para outro, a fim de obterem uma posição jurídica mais favorável.

Nesse contexto podemos rememorar o caso da Eurofood IFSC LTD, controladora do grupo Parmalat, no qual o Tribunal Irlandês e o Tribunal Italiano travaram uma disputa acerca da jurisdição competente para instituição do processo principal de reestruturação, tendo a Corte de Justiça da União Europeia, em 2006, baseado sua decisão no princípio da eficácia, mas considerou essa eficácia num sentido restrito (eficácia de entidade única), negligenciando em grande medida o contexto de uma empresa multinacional complexa, com dificuldades financeiras em várias jurisdições e que, ao mesmo tempo, tentava proceder a uma reestruturação em um único ponto de entrada.

O Tribunal Europeu foi alvo de críticas na medida em que não proveu diretrizes suficientes acerca da temática, mantendo a postura entity-by-entity, sem prestígio à coordenação entre as empresas e aperfeiçoando a maximização do valor dos ativos.

Sociedades virtuais
Atualmente a fixação do Comi encontra mais uma dificuldade: as sociedades essencialmente virtuais. Decerto que o avanço tecnológico aflorado que vivemos impacta diretamente no dia-a-dia comercial, descentralizando o mercado de consumidores, fornecedores e até mesmo jurisdicional.

A definição de um único local para representação do centro de interesses da sociedade torna-se tarefa árdua e demanda uma análise mais aprofundada do juízo e da comunidade jurídica para buscar estabelecer critérios mais flexíveis e abrangentes, garantindo uma abordagem justa e eficaz na determinação do Comi.

Não restam dúvidas que tais situações demandam uma maior integração entre juízos, tornando ainda mais importante a coordenação e cooperação, fatores que merecem máxima atenção dos aplicadores do Direito.

Contexto local
No plano brasileiro, a insolvência transnacional foi positivada com o advento da Lei nº 14.112/2020, por meio da inserção dos artigos 167-A a 167-Y na Lei nº 11.101/2005, incorporados com base na Lei Modelo da Uncitral, fato que trouxe maior segurança jurídica aos grupos empresariais. Já no que tange a definição do Centro de Principais Interesses, verifica-se que a legislação, em seu artigo 167-I, inciso III [2], definiu que, salvo prova em contrário, o centro de principais interesses, no caso de sociedades, será o país onde estiver localizada a sede estatutária.

A norma brasileira aderiu à presunção estabelecida pela Uncitral, resguardando ao Poder Judiciário, a partir da instrução do pedido de reestruturação, avaliar se a sede estatutária representa, de fato, o centro de principais interesses.

O Brasil já enfrentou alguns casos envolvendo conglomerados empresariais transfronteiriços: OGX, Grupo Oi e Constellation são alguns dos exemplos que trataram da temática.

Recentemente, após a entrada em vigor das alterações promovidas pela Lei nº 14.112/2020, o Brasil já efetivou dois reconhecimentos de processo estrangeiro como processos principais: Prosafe SE [3], pela 3ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro e Grupo Mercon [4], pela 3ª Vara Cível da Comarca de Varginha/MG.

O pleito dos cases acima indicados consiste no reconhecimento do processo de reestruturação requerido junto ao tribunal de origem, no caso, Singapura e de Southern District de Nova York (Estados Unidos) respectivamente.

No caso da Mercon, a sede brasileira integrou o polo ativo das demandas de reestruturação em consolidação processual, sendo estabelecido o Comi naquele país, eis que é onde ocorre o maior volume econômico-negocial e de onde emanam as decisões do grupo.

Diante do cenário, o magistrado Pedro Parcekian deferiu os requerimentos formulados pelo representante autorizado, Mercon Coffee Corporation, reconhecendo a existência do processo principal estrangeiro de insolvência do Grupo Mercon, em tramitação pelo Tribunal de Southern District de Nova York e suspendeu quaisquer processos de execução ou de medidas individualmente tomadas relativas ao patrimônio do Grupo Mercon no Brasil, especialmente relacionado ao patrimônio da Mercon Brasil Comércio de Café Ltda.

Já na Prosafe SE, representada por sua diretora financeira, Chang Chin Fen, nomeada pela Corte de Singapura, as sociedades buscaram a proteção dos bens localizados no país, já que desenvolvem suas atividades através da subsidiária Prosafe Serviços Marítimos Ltda., a qual não está abarcada no polo ativo do pedido de reestruturação ocorrido nos termos da legislação de Singapura.

Quanto ao Comi o magistrado Diogo Boechat asseverou: É dizer que o centro de interesses principais da sociedade requerente e, por consequência, do grupo econômico-empresarial, ou seja, o local em que celebra a maior parte de seus contratos e onde é reconhecida por seus credores encontra-se em Singapura.

Assim, o d. juízo garantiu a suspensão do curso de quaisquer processos de execução ou de quaisquer outras medidas individualmente tomadas por credores, relativas ao patrimônio da devedora, que inclui as embarcações safe notos, safe eurus e safe concordia; a suspensão do curso da prescrição de quaisquer execuções judiciais contra Prosafe SE; a ineficácia de transferência, oneração ou de qualquer forma de disposição de bens do ativo não circulante da devedora, realizadas sem prévia autorização judicial.

Em momento posterior, a 3ªVara Empresarial do Rio de Janeiro reconheceu ainda o plano de restruturação, o scheme of arrangement, produzindo efeitos no território brasileiro.

As decisões representam um grande avanço para o país, aplicando as normas modelo da Uncitral e, consequentemente, trazendo maior segurança jurídica ao instituto e às partes envolvidas. A partir disto, a coordenação, comunicação e cooperação com o juízo principal se torna mais efetiva, garantindo a maximização do valor dos ativos e alinhamento com os credores do grupo.

Conclusão
Percebemos, portanto, que a definição do Comi é vital para entender o curso do procedimento de insolvência, a coordenação e consolidação da administração dos ativos e passivos do devedor, evitando decisões contraditórias de várias jurisdições e proporcionando uma resolução justa e eficiente para todas as partes envolvidas. Garante ainda que o processo de insolvência seja conduzido na jurisdição mais próxima dos interesses principais do devedor.

É nesse sentido que, ao traçarmos o contexto do Comi na insolvência transnacional, buscamos não apenas decifrar as leis e regulamentações, mas também mapear as interseções cruciais entre o legal e o econômico. Afinal, a eficácia do Comi como guia na resolução de insolvências globais repousa na sua capacidade de se adaptar e evoluir em sintonia com as nuances de uma economia globalizada em constante transformação.

 

 


[1] Os requisitos ali estabelecidos coadunam com o conceito de Comi provido pelo Regulamento Europeu de Insolvência (Regulamento UE 2015/848).

[2] Art. 167-I; Independentemente de outras medidas, o juiz poderá reconhecer: III – o país onde se localiza o domicílio do devedor, no caso dos empresários individuais, ou o país da sede estatutária do devedor, no caso das sociedades, como seu centro de interesses principais, salvo prova em contrário.

[3] Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001. TJRJ. 3ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro/RJ.

[4] Processo nº 5017501-52.2023.8.13.0707. TJMG. 3ª Vara Cível da Comarca de Varginha/MG.

Autores

  • é advogada especialista em recuperação judicial e falências, pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Insol International - Foundation Certificate in International Insolvency Law e graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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