Opinião

Receita Federal cobra imposto revogando norma que permite sua cobrança

Autor

  • Daniel Branco

    é advogado e consultor tributário pós-graduado em Direito Empresarial com concentração em Direito Tributário pela FGV-Rio com mais de 20 de anos de experiência em Imposto de Renda.

23 de fevereiro de 2024, 9h14

No fim do ano de 2023, a Receita Federal surpreendeu o mundo tributário com decisões que, dizendo o mínimo, foram um tanto controversas.

No entanto, uma delas causou surpresa por ser um verdadeiro tiro no pé: A Solução de Consulta Cosit nº 245/2023 de 1º de novembro de 2023.

A decisão contida na solução de consulta chegou à conclusão de que era necessário pagar imposto de renda tornando inaplicável a norma legal que permite a cobrança do imposto.

Para entender tamanha estranheza, vamos descrever o caso: herdeiros receberam de herança cotas de um fundo fechado. Eles optaram por transferir as cotas pelo custo de aquisição que estava registrado na Declaração de Ajuste Anual de Imposto de Renda da pessoa que faleceu, conforme permite o artigo 23 da Lei nº 9.532/97.

O administrador do fundo, entretanto, entendeu que deveria haver a retenção e recolhimento de imposto de renda calculado sobre a diferença entre o valor de mercado das cotas e o valor de aquisição das mesmas.

Contra esse entendimento, os herdeiros apresentaram uma consulta fiscal para obter esclarecimentos da Receita.

Medida meramente de controle
Passando ao largo da discussão central, a Receita: informou quais são as alíquotas aplicáveis — coisa que ninguém questionou; o que deve se entender por alienação — outro ponto que ninguém duvidou; analisou se a transferência por herança é um tipo de alienação — outro ponto que não foi questionado; e indicou até quem é o responsável pelo recolhimento do imposto — o que também não foi discutido.

No entanto, ao chegar ao tema central, qual seja, a tributação da operação, a Receita Federal, com uma destreza argumentativa ímpar, foi buscar a exposição de motivos da Medida Provisória nº 1.602/97 (convertida na Lei nº 9.532/97) para entender qual é o alcance normativo da regra contida no artigo 23 da Lei nº 9.532/97.

Ao analisar a exposição de motivos, a Receita Federal, ao invés de transcrever todo o motivo, fez questão de transcrever apenas o trecho que lhe interessava que dizia o seguinte:

“A medida, como se vê, tem caráter meramente de controle, como forma de prevenir a evasão de imposto de renda, hoje comumente verificada nesses casos de sucessão sem, todavia, obrigar herdeiros ou doadores a dispor de bens para fazer face ao pagamento do imposto no ato da transferência.”

Ao citar esse parágrafo, a Receita concluiu que o artigo 23 da Lei nº 9.532/97 é inaplicável para o caso de transferência por herança de cotas de fundo fechado porque esses investimentos tem liquidez e, portanto, o administrador do fundo está certo em efetuar a retenção e recolhimento do Imposto de Renda Pessoa Física sobre a diferença entre o custo de aquisição das quotas e o valor de mercado delas.

Poderíamos passar um bom tempo descrevendo normas de interpretação de texto e de raciocínio lógico, demonstrando que uma medida com caráter meramente de controle não gera a cobrança de imposto.

Poderíamos ainda passar outro tempo, demonstrando que não existe qualquer poder atribuído à Receita Federal para afastar uma norma de uma lei plenamente em vigor, principalmente com base na exposição de motivos da medida provisória que a criou.

Concordemos, então
Embora a análise acima já seja suficiente para afastar a interpretação adotada pela Receita Federal, optamos por adotar uma linha de análise que terá pouca resistência por parte da Receita: concordemos com a interpretação do órgão.

Assim, vamos aceitar a conclusão de que o artigo 23 da Lei nº 9.532/97 é inaplicável para o caso de transferência de cotas de fundo fechado por meio de herança.

Reprodução

Agora vem a grande questão: Se o artigo 23 da Lei nº 9.532/97 não é aplicável, qual é a base legal para exigir a cobrança de imposto de renda na transferência por herança de cotas de fundo fechado? Ou, no mínimo, a adoção do valor de mercado para essa transferência?

Podem procurar em toda a consulta fiscal e em toda a legislação fiscal brasileira. Essa base legal não existe!

Estando tão aferrada ao interesse de arrecadar, a Receita simplesmente esquece quais são as bases legais que autorizam a cobrança do Imposto de Renda, decidindo por revogar as normas que permitem essa cobrança ao mesmo tempo em que se acha no direito de receber algum tributo.

Vamos voltar um pouco no tempo para entender o que a Receita Federal ignorou por completo ao emitir sua decisão.

Lei nº 7.713/88 e a isenção da herança
Em 1988, foi publicada a Lei nº 7.713/88 (que está em vigor até hoje) que prevê, em seu artigo 6º, inciso XVI, que são isentos do Imposto de Renda o valor dos bens adquiridos por doação ou herança. Reparem que a norma fala que o valor é isento.

Ou seja, não interessa qual é o valor. Qualquer que ele seja, ele estará isento de Imposto de Renda. Essa norma foi refletida, com a mesma redação, no Regulamento do Imposto de Renda de 1994 (Decreto nº 1.041/94, artigo 40, inciso XIV). E percebam que não existia qualquer tipo de restrição.

Isso começou a gerar um descompasso ao longo dos anos, porque, para fins do IR, todo o bem adquirido era declarado pelo seu custo de aquisição, enquanto que, no momento de processar uma herança, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis, de competência estadual, era calculado sobre o valor de mercado do bem.

Dessa forma, os herdeiros “atualizavam” o valor do bem recebido por herança sem pagar qualquer tipo de imposto para a União, pois pela regra vigente, o valor do bem adquirido por herança era isento de imposto de renda.

MP 1.602/97
De forma a fechar esse “buraco”, o governo federal decidiu promulgar a Medida Provisória nº 1.602/97 estabelecendo uma diferenciação que não existia na legislação até aquele momento: O valor que é isento de imposto de renda é apenas o valor de custo. Ajustava-se assim a norma prevista no art. 6º da Lei nº 7.713/88 sem lhe alterar a redação.

Tanto é assim que nos Regulamentos de Imposto de Renda posteriores à Lei nº 9.532/97, nomeadamente o RIR/99 (Decreto nº 3.000/99) e o RIR/2018 (Decreto nº 9.580/2018) ficou estabelecido textualmente que está isento o valor dos bens adquiridos por herança, observado o disposto no artigo 119 (RIR/99) ou 130 (RIR/2018).

O que tratam os artigos que devem ser observados? Exatamente a norma disposta no artigo 23 da Lei nº 9.532/97 que permite ao contribuinte escolher que a transferência seja feita a valor de custo ou a valor de mercado, sendo que no primeiro caso, há isenção de imposto de renda e no segundo caso, se permite que a Receita Federal cobre Imposto de Renda sobre a diferença positiva.

Se notarmos que a própria legislação que a Receita Federal cita na consulta (artigo 16, II, IN RFB nº 1.585/15) estabelece que os investimentos financeiros são tributados como os bens de qualquer natureza e que os bens de qualquer natureza estão isentos de Imposto de Renda (art. 6º, XVI, Lei nº 7.713/88) quando adquiridos por herança, verificamos de forma mais evidente a impossibilidade da tributação aventada pela Receita Federal na SC COSIT nº 245/2023.

Como se observa de forma cristalina, o art. 23 da Lei nº 9.532/97 é a norma legal que permite à Receita Federal efetuar a cobrança de Imposto de Renda sobre os valores de bens adquiridos por herança, caso sejam transferidos por valor de mercado. Antes desse artigo, todo valor recebido de herança era isento. Somente após essa norma, é que foi concedido à Receita o poder de efetuar a cobrança de imposto de renda dependendo da opção que o contribuinte fizer.

Dessa forma, se o contribuinte optar por transferir o bem pelo valor de custo, haverá isenção nos termos do artigo 6º da Lei nº 7.713/88. Mas se o contribuinte optar por transferir o bem pelo valor de mercado, a diferença entre esse e o custo deverá ser tributada pelo IR, como prevê o artigo 23 da Lei nº 9.532/97.

E a norma não poderia ser mais correta, porque quem adquire é quem determina o valor da aquisição. Logo, o adquirente é que vai estabelecer por qual valor está adquirindo um bem, para só então verificar se houve ou não ganho de capital na operação.

Não há base legal para cobrar IR
Essa mera recordação histórica e lembrança das leis que ainda estão em vigor no país, demonstra claramente qual era a intenção do artigo 23 da Lei nº 9.532/97: Permitir à Receita efetuar a cobrança de Imposto de Renda caso os herdeiros optassem por atualizar o valor dos bens havidos por herança.

Só que na Solução de Consulta nº 245/2023, a Receita Federal decidiu que o art. 23 da Lei nº 9.532/97 é inaplicável.

Ora, se é inaplicável o artigo 23 citado, não há base legal para cobrança de Imposto de Renda, pois volta-se à aplicação do artigo 6º da Lei nº 7.713/88 em sua inteireza e sem quaisquer restrições, ou seja, todo e qualquer valor de bem havido por herança é isento de Imposto de Renda.

Para que o entendimento da Receita Federal faça algum sentido é preciso ter como revogado não só o art. 23 da Lei nº 9.532/97 como também o art. 6º da Lei nº 7.713/88. Como as regras contidas nessas leis estão refletidas, ipsis literis, no Regulamento de Imposto de Renda, tem-se que não houve qualquer tipo de revogação.

Ainda que essa legislação não existisse, também não há qualquer norma que diga que toda operação de alienação deve ser sempre feita a valor de mercado, independentemente da intenção dos adquirentes.

Ao que se percebe, a Receita também se confunde com a enorme quantidade de regras fiscais existentes no país e termina por pegar apenas pedaços de normas sem atentar para sua aplicabilidade.

E nessa manobra, a Receita Federal tenta justificar toda a tributação baseando-se apenas na Instrução Normativa nº 1.585/2015, esquecendo das outras normas em vigor.

Ainda que Instrução Normativa seja válida, ela deve ser lida com as demais regras fiscais. Assim, cabe-nos lembrar que: o RIR/2018 é posterior à Instrução Normativa nº 1.585/2015 e nesse regulamento, a norma expressa no artigo 35, VII, c) é clara ao determinar que é isento de imposto de renda o valor dos bens adquiridos por herança.

Se a norma do artigo 23 da Lei nº9.532/97 é inaplicável, logo não é possível observar-se a parte final da alínea c), do inciso VII, do art. 35 do Regulamento que exige observância do disposto no art. 130 do mesmo RIR/18.

Exposição de motivos
Se ainda quisermos tratar de revogação de normas, por todos os critérios de validade das regras jurídicas, a opção da Receita Federal em defender a tributação com base na IN RFB nº 1.585/15 é completamente infundada pelos seguintes motivos:

  1. Pelo critério da hierarquia legal, a norma prevista em Decreto (RIR/18 – Decreto nº 9.580/2018) é superior à norma prevista em Instrução Normativa. Então a isenção na aquisição de bens por herança continua valendo.
  2. Pelo critério temporal, a norma prevista no RIR/2018 é posterior à norma da IN RFB nº 1.585/15. Validando mais uma vez a isenção de Imposto de Renda na aquisição de bens por herança.
  3. Pelo critério da especialidade, a norma prevista no RIR/2018 sobre bens havidos por herança é mais específica do que a norma da IN RFB nº 1.585/15 que trata da tributação de investimentos financeiros remetendo-a à tributação de bens de qualquer natureza. O que mais uma vez demonstra a aplicabilidade da isenção.

Como se vê, por todos os critérios conhecidos em Direito, a norma de isenção sobre o valor dos bens havidos por herança é superior, mais nova e mais específica que as normas gerais de tributação de investimentos previstas na IN RFB nº 1.585/15.

Do mesmo modo, não há qualquer lei que revogue o art. 6º, da Lei nº 7.713/88 ou o art. 35 do RIR/18 e nem norma que permite à Receita Federal a adotar um valor diferente daquele escolhido pelos adquirentes.

E chegando ao fim, caso ainda haja alguém que queira argumentar que o ponto central da SC COSIT nº 245/2023 é a alienação pelo espólio e não a aquisição pelos herdeiros, nos remetemos ao art. 22 da mesma Lei nº 7.713/88 (ainda em vigor) que estabelece que estão excluídos da determinação do ganho de capital, as transferências causa mortis (art. 22, III, Lei nº 7.713/88). Norma essa refletida no art. 132, I, do RIR/2018.

Diante disso tudo, como pode a Receita ainda estar aventando a possibilidade de tributação dessa operação?

Não conseguimos conceber que a Receita  efetuando a cobrança de imposto que deveria saber indevido. Logo, faltou ao órgão federal responder à pergunta gerada pela conclusão lógica de sua posição: se o artigo 23 da Lei nº 9.532/97 é inaplicável, qual é a base legal para efetuar a cobrança de Imposto de Renda sobre o valor de bens adquiridos por herança em face dos artigo 6º, inciso XVI e do art. 22, inciso III, ambos da Lei nº 7.713/88?

Autores

  • é advogado e consultor tributário, pós-graduado em Direito Empresarial com concentração em Direito Tributário pela FGV-Rio, com mais de 20 de anos de experiência em Imposto de Renda.

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