Direto do Carf

Recursos especiais contra decisões por voto de qualidade: é hora de jogar a toalha?

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

21 de fevereiro de 2024, 8h00

Uma das defesas de título de boxe do brasileiro Acelino Popó Freitas foi contra Barry Jones, que se arrastou até o oitavo assalto, quando o treinador do desafiante “jogou a tolha” — no jargão do esporte, o símbolo a desistência da luta. Nessa hora, a prática é que o árbitro encerre a luta, acatando o pedido do córner.

Aqui, não importa que o desistente tenha sido supremo em todos os rounds anteriores, vencendo-os por pontos consistentemente: as pontuações de cada etapa da luta são ignoradas e se reconhece a vitória do outro, encerrando a contenda.

Recentemente editou-se o artigo 25, §9º-A, do Decreto nº 70.235/72, que exclui a cobrança de multas na “hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”.

Com a novidade, quem tinha decisão desfavorável por voto de qualidade passou a cogitar a apresentação de desistência dos seus recursos especiais interpostos, afinal, por que arriscar uma decisão desfavorável, por maioria, na CSRF, se seria possível parar agora e gozar dos benefícios da nova legislação? O raciocínio, entretanto, merece uma melhor reflexão.

O ato de desistir é bastante relevante e regrado, nos processos judiciais e administrativos, podendo ter efeitos distintos nesses âmbitos, com impactos significativos sobre as estratégias pretendidas. Sobre isso nos ocuparemos nesse artigo.

A desistência e a renúncia no processo civil
No CPC/2015, há uma diferença bastante clara entre a figura da desistência, consistente no ato pelo qual autor ou o recorrente manifesta ao órgão judicial a intenção de que o produto seu exercício do direito de ação não seja julgado, sendo revogada a sua interposição [1] e extinguindo o procedimento, da renúncia à pretensão formulada na ação, medida que corresponde ao ato de disposição do pretenso direito subjetivo vindicado, reconhecendo o demandante não ser seu titular.

Em regra, tanto a desistência quanto a renúncia ao direito são atos de natureza unilateral e que podem se dar total ou parcialmente (art. 90, §1º do CPC).

Spacca

A esse respeito, a desistência pode ser apresentada até a sentença (art. 485, §5º do CPC), mas a legislação prevê a possibilidade tanto da desistência quanto da renúncia também na esfera recursal (artigo 998 e 999), ressaltando que tal ato independe da anuência da parte contrária (salvo na hipótese de apresentação da contestação — artigo 85, §4º, do CPC), e com a ressalva de que a desistência não impede a análise de questão que seja objeto de repercussão geral ou de recursos repetitivos (artigo 998, p.u. do CPC).

Apesar das semelhanças, trata-se de atos com efeitos distintos: a desistência tem como efeito a prolação de uma decisão homologatória sem resolução de mérito (artigo 485, VIII do CPC), ao passo que a renúncia gera a prolação de uma decisão homologatória com resolução do mérito, em desfavor do renunciante (artigo 487, III, “c” do CPC).

Desse modo, a desistência de um recurso interposto contra uma decisão tem como efeito a extinção do procedimento recursal, inclusive na hipótese de recurso adesivo (artigo 997, §2º, III do CPC), tornando-se logicamente preclusa essa via de insurgência e ocorrendo trânsito em julgado da decisão recorrida.

A renúncia, de sua feita, representa a disposição, por parte do recorrente ou do autor da ação, da pretensão material aduzida processualmente, cuja homologação pelo juiz resolve o mérito da causa contrariamente ao renunciante, produz coisa julgada material e atinge diretamente a relação jurídica que deu origem ao processo.

Nesse sentido, a decisão homologatória da renúncia, pelo seu conteúdo meritório, torna insubsistente todas a decisões anteriores, independentes do seu teor em relação ao renunciante, relativas à parcela objeto da renúncia — é o “jogar a toalha”, no jargão do boxe.

Um horizonte comum desses institutos é visto nas ações movidas contra a União, em razão do art. 3º da Lei nº 9.469/97, que determina que a anuência da desistência está condicionada à renúncia expressa do autor quanto ao direito sobre o que se funda a ação, dispositivo esse validado no julgamento do Tema Repetitivo nº 524, à luz do CPC/73.

Essa regra, entretanto, foi recentemente excepcionada nas hipóteses em que a desistência é apresentada no bojo da fase de execução (REsp. 1.769.643, Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma do STJ, j. 27/07/22).

A desistência e a renúncia no processo administrativo federal (PAF)
Diferentemente do que se poderia imaginar, o racional acima não é imediatamente aplicável ao PAF, pela existência de regras relativas à desistência no âmbito do Regimento Interno do Carf (Portaria MF nº 1.634/23 – Ricarf), que a priori afastariam a aplicação tanto do CPC/15 quanto da Lei nº 9.784/99.

Essas regras constam do artigo 133 do Ricarf e seus vários parágrafos, cujo caput proclama que “o recorrente poderá, em qualquer fase processual, desistir do recurso em tramitação”, e aduz no §2 que importam em desistência do recurso: i) o pedido de parcelamento; ii) a confissão irretratável de dívida; iii) a extinção sem ressalva do débito; ou iv) a propositura de ação judicial com o mesmo objeto (hipótese já contemplada no artigo 38, p.u. da Lei nº 6.830/80 [2]).

Entretanto, parece-nos que o dispositivo central para a compreensão da desistência e da renúncia no PAF é o artigo 133, §3, ao afirmar categoricamente que “no caso de desistência (…) [3] estará configurada renúncia ao direito sobre o qual se funda o recurso interposto pelo sujeito passivo, inclusive na hipótese de já ter ocorrido decisão favorável ao recorrente”.

A centralidade desse dispositivo decorre de ele trazer ao PAF o conteúdo do artigo 3º da Lei nº 9.469/97 de uma forma ainda mais forte: ao invés de exigir que a desistência seja acompanhada da renúncia, o art. 133, §3º do Ricarf equipara a desistência ao ato de renúncia ao direito material litigioso, ou seja, cria-se uma desistência normativamente qualificada, distinta daquela do CPC.

A parte final do dispositivo deixa claro também que os efeitos dessa desistência qualificada ocorrerão independente da ocorrência de decisões pretéritas favoráveis ou desfavoráveis ao recorrente (“inclusive na hipótese de…”). E que efeitos são esses?

Ora, o efeito dessa desistência qualificada, enquanto ato de disposição do direito discutido, é idêntico ao que se dá no CPC, sendo isso esclarecido no artigo 133, §§ 5º e 6º do Ricarf, ao afirmarem que a desistência gera a definitividade do crédito tributário (da parcela objeto da desistência, que pode se dar total ou parcialmente — artigo 133, §4º do Ricarf), “tornando-se insubsistentes todas as decisões que lhe forem favoráveis”.

O legislador regimental não se ocupou de referir expressamente às decisões desfavoráveis, mas a parte final do artigo 133, §3º evidencia que a insubsistência abrange quaisquer decisões anteriores relativas à matéria objeto da desistência qualificada, porque essa renúncia tem como efeito o reconhecimento material da correção do ato administrativo objeto de insurgência recursal.

Tanto assim é, que o Ricarf exige que a desistência qualificada seja homologada pelo presidente de Câmara (§5º) ou pelo Colegiado (§6º), que exararão ato declaratório da definitividade do crédito, dotado de conteúdo resolutivo do mérito da discussão, em decorrência da configuração da renúncia ao direito.

Nesse sentido, a decisão que homologa a desistência qualificada e declara a definitividade do crédito torna insubsistentes eventuais decisões anteriores (a respeito da parcela objeto da disposição do contribuinte e independente do seu teor), porque passa ele próprio a ter a eficácia resolutiva do mérito da demanda submetida ao Carf, pela manutenção do ato administrativo.

Tal qual a luta de boxe mencionada inicialmente, pouco importa o resultado obtido pelo contribuinte nos sucessivos rounds do litígio, pois a partir do momento em que ele “joga a toalha”, o ato de juiz que acata esse pedido do córner torna irrelevantes qualquer pontuação amealhada nas etapas anteriores, dando a vitória integral ao contendor — essa é a natureza dos efeitos da renúncia ao direito.

A desistência no PAF e a aplicação do artigo 25, §9º-A do Decreto nº 70.235/72
Tomemos de partida um exemplo singelo: antes da Lei nº 14.689/23, o contribuinte apresentou recurso voluntário contra um tributo acompanhado de multa qualificada, perdendo no mérito, pelo voto de qualidade, e afastando a qualificadora da multa, por maioria de votos.

Na hipótese de a Procuradoria da Fazenda (PFN) não apresentar recurso contra a decisão na parcela favorável ao contribuinte, essa parcela se torna definitiva, com a correspondente baixa do respectivo crédito pela unidade preparadora, na forma do artigo 42, II c/c artigo 45 do Decreto nº 70.235/72, sendo extinto o crédito nessa parte e saindo inclusive do âmbito de disposição do contribuinte (por sequer existir sobre o que dispor).

No caso, entretanto, tanto o contribuinte quanto a PFN apresentaram recursos especiais, relativamente às parcelas do crédito nas quais foram sucumbentes.

Enquanto aguardava a julgamento do recurso, adveio a Lei nº 14.689/23, que trouxe as benesses tributárias para aquele que tenha tido o processo resolvido desfavoravelmente pelo voto de qualidade. Em outras palavras, caso a hipotética decisão se torne definitiva, na forma do artigo 42 do Decreto nº 70.235/72, sendo ela i) desfavorável ao contribuinte e ii) resolvida pelo voto de qualidade, o contribuinte fará jus aos benefícios.

Diante disso, o contribuinte desiste do seu REsp, para “aproveitar” a sua decisão desfavorável, que exoneraria a integralidade da multa aplicada e, de quebra, pede que a CSRF não conheça o recurso especial da PFN (exclusivamente sobre a multa qualificada), por entender que ele estaria prejudicado em razão da futura exoneração própria do efeito extraprocessual do novo regime.

Como se vê, nessa lógica, a desistência do REsp do contribuinte prejudicaria o REsp da PFN. Entretanto, esse racional parte equivocadamente de uma distinção entre desistência e renúncia ao direito que é irrelevante no âmbito do PAF, como demonstrado anteriormente.

A 1ª CSRF se deparou com alguns processos em que a situação relatava acima ocorreu, e em todos os casos prosseguiu com o julgamento do REsp da PFN normalmente, entendendo caber à liquidação na unidade preparadora a verificação dos efeitos da nova legislação. Nesse aspecto, o I. Colegiado agiu corretamente.

Em rigor, não haveria qualquer prejudicialidade em relação ao REsp da PFN, pois com o ato de desistência qualificada no PAF, que tem por efeito a renúncia ao direito, o ato decisório que homologa a disposição põe fim ao litígio com resolução de mérito, substituindo-se a qualquer decisão anterior sobre aquela parcela da matéria, inclusive a decisão desfavorável tomada pelo voto de qualidade.

De fato, da própria redação do artigo 133, §§5º e 6º do Ricarf fica evidente que a definitividade do crédito tributário decorre do ato do presidente de Câmara ou do Colegiado que reconheceu a renúncia, e não da decisão desfavorável formada pelo voto de qualidade, que se torna insubsistente, em razão do efeito substitutivo dessa manifestação de conteúdo meritório.

Com isso, a pretendida aplicabilidade do artigo 25, §9º-A do Decreto nº 70.235/72 fica absolutamente impossibilitada.

Portanto, no exemplo acima, caso o contribuinte desista do seu REsp, se tornará definitiva a cobrança do tributo acompanhado da multa-base, restando-lhe litigar apenas no que se refere à qualificadora.

Conclusões
Como demonstrado anteriormente, há uma diferença significativa dos institutos da desistência e da renúncia no CPC e no PAF, não por serem institutos diversos, mas por uma opção do legislador regimental de promover uma vinculação entre ambos, estabelecendo que se configurará a renúncia sempre que o contribuinte apresentar desistência total ou parcial do seu recurso. A medida, como vimos, não é inédita, mas um “desdobramento” do que já dispunha o artigo 3º da Lei nº 9.469/97.

Não obstante, temos sérias ressalvas quanto a constitucionalidade e legalidade da regra regimental referida.

O instituto da renúncia diz respeito à disposição de direito material, ainda que no âmbito processual, o que demanda uma regulação por lei em sentido estrito, não cabendo ao regimento interno, veiculado por portaria ministerial e de infralegal, estabelecer tal equiparação aos efeitos da desistência.

Não estando tal tema no escopo da competência regimental, recair-se-ia na regra do art. 51 da Lei nº 9.784/99, que estabelece a possibilidade do interessado “desistir do pedido formulado ou, ainda, renunciar a direitos disponíveis”, ou na própria aplicação subsidiária do CPC (art. 15), que extrema tais institutos, como foi visto.

De lege ferenda, seria importante que sociedade sente com a PFN e com a Receita Federal para discutir a criação de uma regra de transição específica para regular as desistências de recursos interpostos anteriormente à Lei nº 14.689/23, como forma de prestigiar a intenção do legislador de encerrar os litígios resolvidos por voto de qualidade, sob pena de, ao invés disso, prorrogar o contencioso em casos nos quais o contribuinte estaria disposto à quitação do principal.

Busca-se aqui alertar àqueles que eventualmente estejam estruturando estratégias processuais na linha abordada no tópico anterior, que considerem as ponderações acima e o regime jurídico particular da desistência qualificada do PAF, para não correr o risco de ser surpreendido posteriormente com uma cobrança integral do crédito objeto de renúncia.

Por outro lado, verifica-se também que em sendo sucumbente por voto de qualidade, em uma discussão que não apresenta bom prospecto de reversão na CSRF, é muito melhor quedar-se inerte e aguardar a definitividade, do que interpor um REsp e eventualmente desistir dele, sob pena de configurar os efeitos regimentais desse ato de disposição do litigante.

Aos que já interpuseram seus recursos e pretendam se aproveitar da decisão desfavorável existente, resta torcer para que a escolha dos paradigmas não tenha sido bem-sucedida, para que o REsp não seja conhecido.

No processo administrativo tributário como no boxe, é preciso saber a hora de simplesmente não subir no ringue, pois uma vez que se sobe, ou bem se considera e assume as chances de vitória e derrota, ou se assume o pesado ônus de jogar a toalha, pondo pelo ralo o esforço empreendido nos rounds anteriores.

*Este artigo foi elaborado durante o período de estadia do autor como pesquisador visitante no Max-Planck-Institut für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen, em Munique, e o autor reconhece e agradece o amplo apoio institucional recebido.

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[1] Moreira, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 331.

[2] Art. 38 (…) Parágrafo Único – A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto.

[3] E nas demais hipóteses mencionadas no §2º, que não serão repetidas.

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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