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Proteger (e recompensar?) os denunciantes de boa-fé? (parte 2)

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12 de fevereiro de 2024, 8h00

Na parte 1 deste artigo, examinamos a origem histórica e a evolução dos programas de proteção a denunciantes no direito comparado, iniciando pelo direito estadunidense.

Nesta segunda parte, trataremos da proteção a denunciantes no direito da União Europeia e do panorama atual e da insuficiência de regulação do tema no direito brasileiro.

A proteção a denunciantes no direito da União Europeia
Na União Europeia, em 2019, foi editada a Diretiva (UE) n° 2019/1937 relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União. O diploma traz regras mínimas de proteção de denunciantes a serem transpostas pelos Estados-membros aos respectivos ordenamentos jurídicos. Dos 27 países que compõem o bloco, apenas a Estônia e Polônia ainda não adaptaram suas leis à Diretiva.

Um primeiro aspecto que merece ser ressaltado é o de que, diferentemente do que ocorre nos EUA, a Diretiva não prevê o pagamento de recompensa aos denunciantes. Os principais focos da norma são a garantia da confidencialidade e a proteção dos denunciantes contra retaliações – e não o estímulo financeiro à apresentação de relatos de ilícitos.

De acordo com o artigo 6° da Diretiva, a proteção se aplica aos denunciantes que tenham tido motivos razoáveis para crer que as informações sobre violações comunicadas eram verdadeiras no momento em que foram transmitidas e que estavam abrangidas pelo âmbito de aplicação da norma. A denúncia pode ter sido feita interna ou externamente, ou, ainda, mediante divulgação pública.

Em relação às denúncias internas, devem ser estabelecidos canais seguros — escritos ou verbais, por telefone, mensagem, reunião presencial ou virtual — para sua recepção, de forma a garantir que a confidencialidade da identidade dos denunciantes e dos terceiros mencionados na denúncia seja protegida, e a impedir o acesso de pessoal não autorizado.

O denunciante deve ser informado sobre o recebimento da denúncia em até sete dias e deve ter retorno sobre a investigação no prazo máximo de três meses. Deve ser designada pessoa ou serviço imparcial competente para dar seguimento às denúncias (artigo 9°).

Regras semelhantes, com algumas adaptações, aplicam-se às denúncias externas às autoridades competentes (artigo 11° e seguintes).

Haverá incidência do regime de proteção quando forem prestadas “informações, incluindo suspeitas razoáveis, sobre violações reais ou potenciais, que ocorreram ou que é muito provável que venham a ocorrer na organização em que o denunciante trabalha ou tenha trabalhado, ou noutra organização com a qual está ou tenha estado em contato por via da sua atividade profissional, e sobre tentativas de ocultação de tais violações” (artigo 5°, 2, da Diretiva). Portanto, é possível que se denuncie ainda antes da ocorrência efetiva da violação.

Cabe aos Estados-Membros assegurar que as entidades jurídicas dos setores privado — com ao menos 50 trabalhadores — e público estabeleçam canais e procedimentos para o recebimento de denúncias internas (artigo 8°, 1 e 3, da Diretiva). Entidades do setor privado com 50 a 249 trabalhadores podem partilhar recursos no que diz respeito ao recebimento de denúncias e à realização de investigações (artigo 8°, 4, da Diretiva).

A proteção ao denunciante compreende a proibição de retaliações, bem como de ameaças e tentativas de retaliação, incluindo medidas como despromoção ou não promoção; alteração de funções, do local ou do horário de trabalho; redução de salário; avaliação negativa do desempenho ou referência negativa para fins de emprego; imposição de qualquer medida disciplinar, admoestação ou outra sanção, inclusive financeira; coação, intimidação ou assédio; rescisão antecipada ou resolução do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços; entre outras (artigo 19°).

A realização da denúncia seguida de medidas contrárias ao denunciante gera inversão do ônus da prova, de modo que “deve presumir-se que o prejuízo corresponde a uma retaliação por ter feito a denúncia ou a divulgação pública”. Nesses casos, “recai na pessoa que tomou a medida prejudicial demonstrar que tal medida se baseou em motivos devidamente justificados” (artigo 21°, 5, da Diretiva (UE) n° 2019/1937).

Com relação às sanções, devem ser previstas para as pessoas físicas e jurídicas que: a) impeçam ou tentem impedir a denúncia; b) pratiquem atos de retaliação contra os denunciantes; c) instaurem processos vexatórios contra os denunciantes; d) violem o dever de manutenção da confidencialidade da identidade dos denunciantes.

Mas também devem ser punidos os próprios denunciantes “nos casos em que se tenha determinado que as pessoas comunicaram ou divulgaram publicamente, com conhecimento de causa, informações falsas” (artigo 23°).

Panorama atual e insuficiência da regulação no direito brasileiro
Já existem, também no Brasil, regras que conferem alguma proteção aos denunciantes.

A Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei nº 8.443/1992, por exemplo, autoriza qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato a denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o órgão (artigo 53, caput).

Além disso, garante o seu tratamento sigiloso (artigo 53, § 3º, e art. 55, caput) e confere imunidade ao denunciante contra qualquer sanção administrativa, cível ou penal, em decorrência da denúncia, salvo em caso de comprovada má-fé (artigo 55, § 2°).

Ainda na esfera pública, o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº 8.112/1990, estabelece como dever do servidor público a realização de relatos sobre eventuais irregularidades das quais tiver ciência em razão do cargo (artigo 116, VI). A mesma lei ainda protege o servidor público de eventuais condenações civil, penal ou administrativa em razão de relato sobre a prática de crimes ou atos de improbidade no âmbito da administração pública (artigo 126-A).

A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) incentiva a criação de um canal de denúncia pelas empresas, ao estabelecer que a existência deste mecanismo será levada em consideração na dosimetria de uma eventual sanção administrativa (artigo 7º, VIII).

A mais completa regulação do tema está na Lei nº 13.608, de 2018, cujo artigo 4° prevê que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos.

A lei prevê o pagamento de recompensa de até 5% (cinco por cento) do valor recuperado, quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a administração pública (artigo 4°-C, § 3º).

A despeito dessas previsões esparsas, o tema demanda um tratamento mais abrangente, em que todas as questões relevantes, especialmente as elencadas a seguir, sejam tratadas de modo uniforme, seguro e sistemático. É justamente a falta de segurança jurídica uma das principais razões pelas quais o instituto não ganhou ainda tração entre nós.

Vistas as semelhanças e distinções de tratamento da proteção de denunciantes nos EUA e na Europa, bem como a ainda parca regulamentação do tema no direito brasileiro, na terceira parte deste artigo ofereceremos nossa contribuição para o debate.

A nosso ver, a partir da experiência do direito comparado e do seu cotejo com a nossa tradição jurídica, já é possível enumerar um conjunto de diretrizes que devem orientar a elaboração da uma legislação efetiva de proteção aos denunciantes de boa-fé.

É o que faremos na próxima parte deste artigo.

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