Impactos jurídicos da reforma tributária sobre combustíveis
9 de fevereiro de 2024, 6h11
Em 20 de dezembro de 2023, o Congresso promulgou a reforma tributária (Emenda Constitucional 132/2023) e efetivou mudanças significativas ao cenário econômico brasileiro com repercussões no setor de combustíveis.
Embora o objetivo primário dessa reforma seja a simplificação do sistema tributário, as questões deixadas para depois podem gerar decisões equivocadas e criar obstáculos imprevisíveis para o desenvolvimento do país.
A EC 132 foi aprovada de forma surpreendentemente apressada, deixando boa parte de sua legislação para ser definida em um segundo momento, por meio da criação de leis complementares, leis ordinárias e atos infralegais. A cobrança dos tributos ainda será debatida no Congresso. Somente depois disso, será possível entender a verdadeira mudança que ela trará ao sistema tributário.
Em suma, a reforma tributária unifica cinco tributos sobre o consumo em três: Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), em um sistema de IVA Dual, e o Imposto Seletivo (IS). No aspecto geral, há avanços, mas o problema está nos detalhes, a começar pelas alíquotas e competências.
Estima-se que as alíquotas somadas da CBS e do IBS fiquem entre 27,5% e 30%, mas isso dependerá de cada ente federativo.
Um segundo ponto são as exceções criadas para setores, como educação, saúde e transporte coletivo, que podem resultar em desonerações de até 100% por conta de serem reconhecidos como serviços essenciais. Não há, até momento, uma definição sobre qual órgão decidirá o que é essencial e o que não é.
A definição do sujeito passivo, dos métodos e dos prazos para restituição de créditos do IBS e do CBS, assim como as condições para o aproveitamento do crédito ao recolhimento do tributo, será estabelecida por lei complementar, que ainda não existe.
Sobre derivados de petróleo e outros insumos energéticos, a reforma confere à lei complementar, ainda inexistente, a responsabilidade de instituir regimes específicos de tributação para combustíveis, lubrificantes, biocombustíveis e hidrogênio de baixa emissão.
O sistema monofásico para o setor de combustíveis foi mantido, mas deixou-se para uma lei complementar definições como o diferimento e a desoneração do imposto para regimes aduaneiros e para Zonas de Processamento de Exportação.
Há ainda indefinições sobre o impacto do Imposto Seletivo sobre o setor de combustíveis e sobre a aplicação de novos métodos de recolhimento que não tiveram experiência internacional comprovada.
O acúmulo de indefinições dificulta a avaliação de oportunidades e de ameaças que a reforma pode trazer aos contribuintes e aos consumidores.
Formato de incidência do IVA Dual
O regime tributário alterado para o sistema de IVA Dual promete uma dinâmica de não cumulatividade. Combustíveis e lubrificantes serão tributados uma única vez na cadeia produtiva – seja no refino ou na importação. As alíquotas variarão de acordo com o estado e o município de destino, o que criará um cenário desafiador para os participantes desse mercado.
A incidência do IVA Dual será ampla, incluindo bens e serviços, tangíveis ou intangíveis, exceto exportações. A cobrança “por fora” evitará a técnica de gross up, enquanto a exclusão da base de cálculo da CBS e do IBS garantirá uma separação clara dos tributos. O princípio do destino implica alíquotas variáveis conforme o estado e o município de destino, e a não cumulatividade plena permitirá o crédito do IVA na aquisição de bens e serviços.
Próximos passos da reforma
Neste contexto, foi publicada, no dia 12 de janeiro, a Portaria MF nº 34/24 que instituiu, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Programa de Assessoramento Técnico à Implementação da Reforma da Tributação sobre o Consumo (PAT-RTC).
Este programa contará com grupos técnicos para subsidiar a elaboração, pelo Poder Executivo, das leis complementares necessárias para, de fato, concluir a reforma.
A composição dos membros do PAT-RTC foi publicada pelo Ato Portaria nº 104, de 23 de janeiro de 2024, do Ministério da Fazenda. Dentre vários outros, o Grupo de Trabalho nº 5 (GT5) será o responsável por apresentar soluções para o “Regime Específico de Combustíveis e Biocombustíveis”.
Nos termos da Portaria nº 104/23, o GT5 será composto por dois representantes da Receita Federal, um representante da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), um representante da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP) e um representante da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (Sert).
Tal composição tem sido criticada justamente pela ausência de representatividade de acadêmicos e da iniciativa privada, ficando o estudo e a regulamentação da reforma tributária a cargo somente de representantes da Administração Pública. Isso pode suscitar uma legislação que contrarie o propósito de uma administração tributária democrática.
Esse ponto é alvo de debate em campos acadêmicos e nos meios de profissionais atuantes com o direito tributário com o objetivo de alertar para possíveis privilégios que poderão impactar a organização estrutural da reforma.
Juristas têm expressado inquietação diante da falta de representação de acadêmicos e do setor privado no grupo de trabalho (GT). Eles alertam que, caso mantida a exclusão destes públicos de interesse, há grandes chances de que os pontos de vista dos contribuintes e as perspectivas da sociedade civil sejam negligenciados.
Seria a perpetuação de um processo que, até o momento, marginalizou as opiniões divergentes às visões da Administração Pública.
Após a promulgação da reforma tributária, foi estipulado um prazo de 180 dias para o envio de projetos de leis complementares, com representação paritária da União e dos entes federativos.
Os grupos de trabalho têm a tarefa de elaborar, em 60 dias, anteprojetos para a regulamentação do IBS e da CBS.
O advogado Heleno Torres, professor titular de Direito Financeiro da USP, destaca a violação dos princípios democráticos ao não ouvir aqueles que pensam de maneira diferente e ao negar o direito de participação dos contribuintes. Ele alerta para o risco de leis favoráveis ao Fisco gerarem questionamentos judiciais no futuro, conforme expressado por outros advogados tributaristas.
Além disso, a regulamentação da reforma tributária está sob responsabilidade exclusiva de representantes da Administração Pública. Há também preocupações com possíveis privilégios regionais nas discussões, dado que apenas 2% da Câmara dos Deputados compõem o grupo de trabalho, totalizando 12 membros, com três do Amazonas, três de São Paulo e os demais representando os estados de Minas Gerais, Paraíba, Ceará e Goiás.
Este cenário levanta questionamentos sobre a representatividade efetiva no processo de elaboração da reforma.
Pontos sensíveis do Imposto Seletivo
Para além do IVA Dual, o IS, criado com o caráter extrafiscal, incidirá sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Sua subjetividade dá margem para a inclusão de combustíveis fósseis em seu rol de produtos tributados. A ausência de limites para a carga tributária e sua inclusão na base da CBS e do IBS — por ser cobrado “por dentro”.
O primeiro pode estimular desvios na utilização desse tributo, enquanto o segundo perpetua parte da complexidade tributária atual — notadamente no caso de disputas sobre a tributação.
Pode-se esperar um aumento significativo dos produtos impactados por esse imposto.
Futuro incerto
A complexidade do novo sistema tributário exigirá atenção constante e capacidade jurídica para garantir a adaptação adequada das empresas do setor de combustíveis.
O futuro desse mercado, assim como de outros setores, está intrinsecamente ligado a uma compreensão profunda das implicações legais da Reforma Tributária, que foi aprovada de forma açodada e que deixou muitas lacunas.
Tributação e obrigações excessivas sobre o mercado de combustíveis podem causar danos profundos, não só às empresas brasileiras, mas principalmente aos consumidores.
*artigo publicado originalmente no jornal O Dia
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