Contas à Vista

Risco fiscal da liberação do cigarro eletrônico alcança R$ 125 bi/ano

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

6 de fevereiro de 2024, 8h00

Há cerca de dois meses meu irmão morreu por infarto associado ao consumo do cigarro. Esta é uma coluna dedicada à sua memória, especialmente porque se encerra nesta sexta-feira, dia 9 de fevereiro, a consulta pública aberta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) acerca dos dispositivos eletrônicos para fumar (mais conhecidos como cigarro eletrônico ou vape).

A Consulta Pública nº 1.222, de 4 de dezembro de 2023, objetiva o “envio de comentários e sugestões ao texto da proposta de Resolução de Diretoria Colegiada – RDC que proíbe a fabricação, a importação, a comercialização, a distribuição, o armazenamento, o transporte e a propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar”. O formulário para participação de quaisquer interessados está disponível aqui.

Tristemente, a data de publicação de tal consulta pública coincidiu com a missa de sétimo dia do meu irmão. Ele lutava havia muito tempo contra a compulsão pelo cigarro tradicional, porque se viciou na adolescência quando ainda não havia Sistema Único de Saúde (SUS), nem política pública de combate ao tabagismo no Brasil. Tendo sofrido anteriormente dois outros infartos, ele sabia do risco que corria ao continuar a fumar e muitas foram suas tentativas de abandonar o vício até sua morte.

Dramas pessoais ilustram o conflito, mas não o resolvem. A bem da verdade, a morte precoce do meu irmão evidencia o quanto o consumo de cigarro é problema coletivo, que jamais pode ser reduzido a uma mera questão de escolha ou fraqueza pessoal.

Epidemia de tabaco
Conduzir o assunto pela senda da liberdade de consumo, ignorando os dados internacionalmente produzidos a respeito do tabaco ao longo das últimas décadas, é literalmente defender o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera como a “maior causa evitável isolada de adoecimento e mortes precoces” para a humanidade.

O tabagismo, aliás, é formalmente reconhecido como doença crônica relacionada à dependência da nicotina, na categoria de “transtornos mentais, comportamentais ou do neurodesenvolvimento” da Classificação Internacional de Doenças (CID11). Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) (agência internacional de saúde para as Américas que opera como escritório regional da OMS):

“A epidemia de tabaco é principal causa de morte, doença e empobrecimento. A epidemia de tabaco é uma das maiores ameaças à saúde pública que o mundo já enfrentou, sendo responsável pela morte de mais de 8 milhões de pessoas por ano. Mais de 7 milhões dessas mortes são resultado do uso direto do tabaco, enquanto mais de 1,2 milhão de mortes são resultado de não-fumantes expostos ao fumo passivo.

Quase 80% dos mais de 1,1 bilhão de fumantes em todo o mundo vivem em países de baixa e média renda, onde a carga das doenças relacionadas ao tabaco e morte é mais pesada. Os usuários de tabaco que morrem prematuramente privam suas famílias de renda, aumentam o custo dos cuidados de saúde e impedem o desenvolvimento econômico.”

É preciso reiterar insistentemente que a dependência causada pela nicotina é epidemia que ceifa mais de 8 milhões de vidas anualmente em todo o mundo, entre as quais 1,2 milhão são de fumantes passivos. A escala desses números mostra muito bem a dimensão coletiva do problema de saúde que o tabagismo traz. No Brasil, são quase 162 mil mortes anuais atribuíveis ao consumo do tabaco, ou seja, cerca de 443 vidas são perdidas diariamente em função do cigarro.

Tabagismo x Covid-19
Em termos comparativos, o tabagismo mata mais do que a pandemia da Covid-19, cujo enfrentamento tanto nos mobilizou em todo o mundo. Ainda que seja difícil mensurar, a OMS estima que as mortes associadas direta ou indiretamente à Covid-19 (indicador denominado como “excesso de mortalidade”), entre 1 de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2021, teriam sido de aproximadamente 14,9 milhões, ou seja, cerca de 7,5 milhões/ano.

Spacca

Diferentemente do caráter visível e extraordinário do auge pandêmico da Covid-19, a epidemia do tabagismo mata em larga escala, mas de forma silenciosa, rotineira e insidiosa. A naturalização e, por conseguinte, a ocultação desse fato são proporcionais aos interesses e danos econômicos envolvidos com o consumo do cigarro.

Os valores pecuniários implicados em cada qual dessas enfermidades trazem uma boa perspectiva do impasse. No Brasil, foram pagos créditos extraordinários de quase R$ 700 bilhões [1] durante o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus entre 2020 e 2022. Todavia a maior parte desse montante foi destinada ao pagamento do auxílio emergencial e apenas 10% (cerca de R$ 70 bilhões) foi aplicado diretamente no SUS, o que traz uma média anual de R$ 23,3 bilhões acrescidos às obrigações ordinárias da política pública de saúde.

Impacto fiscal
Em contraponto, os custos diretos e indiretos do combate às doenças relacionadas ao uso de produtos derivados de tabaco em nosso país seriam anualmente de cerca de R$ 125 bilhões, entre os quais R$ 50,3 bilhões adviriam expressamente dos tratamentos sanitários, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Significa dizer que, para o SUS, o impacto fiscal estimado do tabaco seria mais do que o dobro do custo anual médio verificado com a Covid-19.

Em termos de mortes e custo total de enfrentamento, o impacto da Covid-19 foi e ainda segue relativamente claro para a sociedade brasileira, mesmo após haver sido encerrada a emergência sanitária em abril de 2022. O mesmo nível de consciência não se sucede, contudo, em relação ao tabagismo.

A precificação dos danos causados pelo cigarro não é um problema discreto, tampouco se restringe à realidade brasileira. Como noticiado aqui, “a American Cancer Society estima também que a cada USD 6.36 (preço médio) gastos em uma embalagem com 20 cigarros, equivale a USD 35 gastos com doenças tabaco relacionadas”.

Lobby pró-vape
O contraste entre ambas as doenças é oportuno para mensurar os riscos envolvidos na pressão feita pela indústria tabagista em busca da regulamentação do cigarro eletrônico no Brasil. Os que advogam tal liberação, sustentam potencial anual de arrecadação em tributos de R$ 2,2 bilhões, todavia os lobistas da indústria tabagista ocultam seus impactos em termos de pressão de gasto para o SUS, de demanda de cuidados para as famílias dos doentes e de perda de produtividade na economia.

O risco não é apenas de prejuízo financeiro, na medida em que a maior perda para a sociedade brasileira viria do retrocesso regulatório e comportamental ao padrão pré-1988 no controle do tabaco. Seguindo as orientações da OMS [2], o Brasil, ao lado da Holanda, tornou-se exemplo mundial na redução do número de fumantes, com queda proporcional de 35% desde 2010. Trata-se de resultado lento e paulatino de uma política pública complexa, de implementação contínua e indispensável à densificação constitucional do direito à saúde.

O conquistado a duras penas ao longo de décadas, porém, não está garantido nos presentes e futuros dias. Todo esse sucesso histórico do SUS na redução do consumo de tabaco está em risco a partir do surgimento dos cigarros eletrônicos e seu comércio ilícito [3] no território nacional. Nos últimos seis anos, segundo noticiado pela Folha, houve o acréscimo de 690 mil novos fumantes de cigarros eletrônicos em 2023, totalizando 2,9 milhões usuários de tal produto, o que teria elevado a participação proporcional da sua incidência de 0,3% para 1,8% da população brasileira, algo equivalente a praticamente à densidade populacional do Distrito Federal.

Novos fumantes
Atualmente quem mais tem aderido aos vapes são as crianças e jovens, porque a tais dispositivos eletrônicos para fumar são acrescidos sabores e odores que disfarçam sua toxicidade, ao mesmo tempo em que potencializam a dependência química. Trata-se de uma estratégia diversionista da indústria do tabaco para formar novas gerações de fumantes, o que reclama urgentemente uma forte regulação estatal. A esse respeito, vale citar o exemplo da proibição completa recentemente noticiada pelo Reino Unido de venda desses dispositivos para os menores de 15 anos de idade:

“Ao lado do nosso compromisso de impedir que se possa vender cigarros legalmente para crianças que estão completando 15 anos ou mais novas, essas mudanças deixarão um legado duradouro protegendo a saúde de nossas crianças a longo prazo”, diz o comunicado.

Segundo o governo britânico, o tabagismo é a maior causa de mortes evitáveis no Reino Unido, e está associado a 1 em cada 4 mortes relacionadas ao câncer, cerca de 80 mil por ano. Em outubro, Sunak anunciou planos de aprovar uma lei para que qualquer pessoa nascida a partir 1º de janeiro de 2009 seja impedida de comprar tabaco pela vida toda.

Embora os vapes sejam promovidos pela indústria como ferramenta para quem quer parar de fumar, o governo britânico avalia com preocupação que eles podem estar impulsionando o vício em nicotina entre os jovens –certa de 9% dos adolescentes de 11 a 15 anos usam cigarros eletrônicos no país.”

Retrocesso intergeracional
Gerações se sucedem e os legados civilizatórios precisam ser defendidos proativamente. Como eu tive a sorte de me tornar adolescente no alvorecer da Constituição de 1988 e do SUS, o cigarro não exercia mais qualquer atração irresistível para os jovens da minha geração. Aludida proteção institucional infelizmente não amparou meu irmão e o mais preocupante é que ela pode não estar mais de pé para defender a atual geração de crianças e adolescentes das burlas e manipulações da indústria tabagista.

Acumulamos décadas de aprendizagem coletiva no Brasil no combate ao tabagismo. Neste momento, porém, a defesa dessa preciosa conquista do SUS necessariamente passa pela clara compreensão dos riscos e custos de possíveis retrocessos intergeracionais trazidos pelo cigarro eletrônico.

No pouco que posso tentar contribuir com a Consulta Pública da Anvisa acerca dessa temática, afirmo ser possível imputar a natureza de risco fiscal – na forma do artigo 4º, §3º da LRF [4] – à provável expansão de despesas com tratamentos sanitários em decorrência da hipotética regularização do consumo do cigarro eletrônico.

Aliás, quaisquer encargos que tiverem de ser absorvidos federativamente pelos estados, DF e municípios no âmbito do SUS, por causa de eventual liberação da Anvisa em relação aos vapes e congêneres, merecem ser impugnados à luz do artigo 167, §7º da Constituição [5], o qual foi acrescido pela Emenda 128, de 22 de dezembro de 2022.

R$ 125 bilhões de impacto anual é, por si só, um custo econômico exorbitante para fins de liberação de um nicho de mercado tão socialmente danoso. Nenhuma cifra, porém, é capaz de mensurar e repor a perda dos nossos entes queridos. Se constitucionalizar é civilizar e se o SUS é um dos nossos maiores legados civilizatórios da CF/1988, hoje venho, em homenagem à memória do meu saudoso e amado irmão, defender a permanência da proibição do cigarro eletrônico no Brasil.


[1] . A título de créditos extraordinários no âmbito do orçamento de guerra, foram pagos R$524 bi em 2020, R$121,4 bi em 2021 e R$20,8 bi em 2022, segundo dados do Painel de Monitoramento dos Gastos da União com Combate à Covid-19, do Portal do Tesouro Transparente https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-de-monitoramentos-dos-gastos-com-covid-19.

[2] Para aumentar a implementação das disposições da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, a OMS https://www.paho.org/pt/topicos/tabaco propôs as seguintes medidas: 1) monitorar o uso de tabaco e políticas de prevenção, 2) proteger a população contra a fumaça do tabaco, 3) oferecer ajuda para cessação do fumo, 4) advertir sobre os perigos do tabaco, 5) fazer cumprir as proibições sobre publicidade, promoção e patrocínio, bem como 6) aumentar os impostos sobre o tabaco

[3] É ilícito porque afronta a Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa – RDC Nº 46, de 28 de agosto de 2009, disponível em https://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/2718376/RDC_46_2009_COMP.pdf/2148a322-03ad-42c3-b5ba-718243bd1919

[4] Cujo inteiro teor é: “Art. 4º […] § 3o A lei de diretrizes orçamentárias conterá Anexo de Riscos Fiscais, onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem.”

[5] A seguir transcrito: “Art. 167. […] § 7º A lei não imporá nem transferirá qualquer encargo financeiro decorrente da prestação de serviço público, inclusive despesas de pessoal e seus encargos, para a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, sem a previsão de fonte orçamentária e financeira necessária à realização da despesa ou sem a previsão da correspondente transferência de recursos financeiros necessários ao seu custeio, ressalvadas as obrigações assumidas espontaneamente pelos entes federados e aquelas decorrentes da fixação do salário mínimo, na forma do inciso IV do caput do art. 7º desta Constituição.”

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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