Direito Civil Atual

A ideia-chave que sustenta a estrutura do Código Civil brasileiro

Autor

  • Augusto Cézar Lukascheck Prado

    é professor de Direito Civil. Assessor de ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

5 de fevereiro de 2024, 13h16

A coluna tem por objetivo apresentar, ainda que sumariamente, a ideia-chave que sustenta a estrutura do Código Civil brasileiro: a Dogmática Geral da Relação Jurídica [1].

A referida doutrina, desenvolvida pelos pandectistas ao longo do século 19, parte do pressuposto de que o exame do fenômeno jurídico pela perspectiva da relação jurídica possui a vantagem de colocar em evidência a situação fática concreta, isto é, a própria realidade social disciplinada pelo Direito.

Se o Direito busca regular a vida em sociedade, ter em mira as próprias relações travadas entre os sujeitos reduz a abstração e aproxima o intérprete de seu objeto. O conceito de relação jurídica, de fato, está “dotado de transparência e adequadação na expressão da realidade social disciplinada pelo Direito” [2], ou seja, este “não regula o homem isolado ou considerado em função das suas finalidades individuais, mas o homem no seu comportamento convivente” [3].

O objetivo dos juristas alemães era elaborar um modelo amplo e geral capaz de explicar e descrever todas as espécies de relações jurídicas.

Deve-se a Friedrich Carl Freiherr von Savigny, no seminal System des heutigen römischen Rechts, “obra mais influente de toda a literatura jurídica do século 19” [4], o desenvolvimento de uma noção completa de relação jurídica, erigindo-a a conceito-chave que confere unidade a todo o sistema jurídico.

Para o autor, a relação jurídica é definida como “uma relação entre pessoa e pessoa, estabelecida através de uma norma jurídica”, caracterizando-se por ser “uma esfera de domínio independente da vontade individual” [5].

Quatro elementos
O modelo abstrato e geral de relação jurídica é composto de quatro elementos, a saber: I) sujeitos; II) objeto; III) fato jurídico constitutivo; e IV) garantia [6].

Os sujeitos representam as partes, lados ou polos da relação jurídica. São, em síntese, centros de interesses responsáveis por definir os limites subjetivos da relação [7]. No polo ativo, encontra-se o sujeito ativo titular de poderes jurídicos e, no polo passivo, encontra-se o sujeito passivo a quem são impostos deveres jurídicos. O poder jurídico mais relevante é o direito (em sentido) subjetivo.

ConJur

O objeto da relação representa aquilo sobre o que incidem os poderes do titular da posição jurídica subjetiva ativa, podendo ser pessoas, coisas corpóreas ou incorpóreas, modos de ser da própria pessoa e outros direitos [8]. Nas relações jurídicas obrigacionais, por exemplo, o objeto é a prestação.

Já os fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais as relações jurídicas nascem, modificam-se e se extinguem. A título exemplificativo pode-se citar os contratos, os negócios jurídicos unilaterais (v.g. testamento, títulos de crédito) e os atos ilícitos. Cuida-se de noção fundamental para a apreensão do fenômeno jurídico por constituir a única fonte de eficácia jurídica.

A garantia, por seu turno, “consiste no conjunto de providências coercitivas que o direito predispõe para tutela da posição do sujeito activo” [9]. Trata-se do elemento em que se traduz a juridicidade da relação jurídica [10]. A mais significativa manifestação da garantia é o exercício da “ação”, entendida essa como o poder atribuído ao titular de determinado direito de recorrer ao Poder Judiciário para obter a sua tutela [11]. Pode-se citar, ainda, o desforço direto e imediato na proteção da posse.

Esse quarto elemento, a garantia da relação, encontrava-se esculpido no artigo 75 do Código Civil de 1916, segundo o qual “a todo direito corresponde uma ação que o assegura” [12].

Código Civil alemão
O Código Civil alemão de 1900 acolheu a referida doutrina, sistematizando as relações jurídicas em sua parte geral [13].

A partir daí, os efeitos do pensamento de Friedrich Carl Freiherr von Savigny se fizeram sentir no “modo de organização metodológica do Direito Privado, que se irradiou para outros países” [14], e a relação jurídica alçou o posto de conceito edificante da Ciência do Direito [15].

Em Portugal, após a germanização do direito civil em virtude dos estudos de Guilherme Alves Moreira [16], a adoção da categoria “relação jurídica” representou uma virada na ciência jurídica daquele país em direção à Pandectista no início do século 20 [17].

O Código Civil de 1966 atribui à relação jurídica posição de destaque como um dos títulos de sua parte geral, representando o alicerce do sistema jurídico de direito privado português [18].

No Brasil, fortemente influenciado pelos estudos de Friedrich Carl Freiherr von Savigny, Augusto Teixeira de Freitas adotou, como critério de organização da sua Consolidação das Leis Civis de 1858, a distinção fundamental entre direitos subjetivos pessoais e reais, o que, em última análise, representa uma sistematização com base na distinção entre as relações jurídicas: “as differenças inalteraveis das relações jurídicas determinão as naturaes divisões da legislação” [19].

Do mesmo modo, Conselheiro Joaquim Ribas, outro eminente jurista oitocentista, também já destacava, ao tratar de seu sistema preferível para a sistematização das leis civis, que a estruturação do Direito Civil deveria partir da noção de relação jurídica: “Para bem classificarmos os preceitos que constituem a legislação civil, methodo mais acertado e natural é indagarmos as differenças das relações regidas por estes preceitos, e donde eles emanam” [20].

A estrutura elaborada e empregada por Augusto Teixeira de Freitas exerceu forte influência sobre Clovis Bevilaqua e o Código Civil de 1916 [21] e, consequentemente, sobre o Código Civil de 2002.

Não por outro motivo, Benjamin Herzog considera o Código Civil brasileiro como um verdadeiro Código pandectístico [22].

Parte geral e especial
Assim, sob influência do sistema germânico, da tradição do Direito Civil brasileiro concretizada na Consolidação das Leis Civis, no Código Civil de 1916 e, até mesmo, do Código Civil português de 1966, o Código Civil brasileiro atual ancora seu fundamento e estrutura na Dogmática Geral da Relação Jurídica, dividindo-se em uma Parte Geral e outra Especial.

Do atento exame de sua estrutura é possível observar que, de fato, a classificação de sua Parte Geral adota como critério de organização os elementos das relações jurídicas, reunindo-se nela os traços comuns a todas as espécies de relações, representando, portanto, a sede da Dogmática Geral da Relação Jurídica. Como afirma Castro Mendes, a “teoria geral do direito civil é teoria geral da relação jurídica” [23].

A sua subdivisão em três livros (Das Pessoas, Dos Bens e Dos Fatos Jurídicos) enfatiza e denuncia que se está a tratar dos elementos que compõe toda e qualquer relação jurídica e não somente aquelas relações de direito civil.

A Parte Especial, por sua vez, é composta por um rol de relações jurídicas em espécie. São elas: relações jurídicas obrigacionais (Livro I), relações jurídicas de direito de empresa (Livro II), relações jurídicas de direito das coisas (Livro III), relações jurídicas de direito de família (Livro IV) e relações jurídicas de direito das sucessões (Livro V).

Não obstante o que se acaba de expor, é rara na doutrina mais difundida a menção a essa fundamental importância da Dogmática Geral da Relação Jurídica [24], que, se bem não pretenda explicar toda e qualquer realidade da vida jurídica, é conceito fundamental e basilar da dogmática jurídica, máxime civilista, porquanto, ao mesmo tempo em que exterioriza a alteridade do Direito, serve de fundamento para a sistematização do próprio Código Civil.

A elaboração do Código Civil é fruto de uma proveitosa solidariedade histórica. É o resultado de um amplo processo de amadurecimento do Direito Civil nacional; o ponto culminante de diversos projetos e debates travados na doutrina, no Poder Judiciário e no Poder Legislativo.

A interpretação e aplicação de seus dispositivos e institutos [25] não pode perder de vista, portanto, que o Diploma hauriu do pandectismo o seu fundamento e estrutura, acolhendo a Dogmática Geral da Relação Jurídica como ideia-força que confere unidade ao sistema jurídico privado.

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[1] Emprega-se a expressão “dogmática” no lugar de “teoria” em atenção às lições de Alcides Tomasetti Jr., que, na ingente busca da precisão técnico-jurídica, esclarece que a doutrina tem por função precípua convencer o interlocutor na medida de sua utilidade, ao passo que a teoria tem por função provar determinados fatos ou fenômenos. Assim, a construção doutrinária erigida ao redor da noção-síntese de relação jurídica deve ser adotada e empregada se – e somente se – demonstrar aptidão para explicar o fenômeno jurídico e solucionar os problemas da vida prática, motivo pelo qual acolhe-se a terminologia “Dogmática Geral da Relação Jurídica” e não “Teoria Geral da Relação Jurídica”.

[2] MOTA PINTO. Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra 1996, p. 21.

[3] MOTA PINTO. Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra 1996, p. 21. No mesmo sentido: FERNANDES, Luís A. Carvalho. Teoria Geral do Direito Civil. 2. ed. Lisboa: LEX, 1995. v. 1. p. 96.

[4] RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019. p. 2.

[5] SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema del Diritto Romano Attuale. v. 1. Tradução V. Scialoja. Torino, 1893. p. 336-337.

[6] ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1983. v. 1. p. 19.; PINTO, Carlos Alberto da Motas. Teoria Geral do Direito Civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra, 1986. p. 168; COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 7. ed. rev. e atual. Coimbra: Almedina, 1998. p. 123; MENDES, Castro. Direito Civil: Teoria Geral. Lisboa: Livraria Petrony, 1978, p. 140.; FERNANDES, Luís A. Carvalho. Teoria Geral do Direito Civil. 2. ed. Lisboa: LEX, 1995, v. I, p. 89; VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2005. p. 632; TAVARES, José. Os princípios fundamentais do Direito Civil: teoria geral do direito civil. v. 1. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1929, p. 61 e ss.

[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: pessoas físicas e jurídicas. t. 1.  Atual. por Judith Martins-Costa, Gustavo Haical e Jorge Cesar Ferreira da Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 210-216.

[8] MOTA PINTO. Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra, 1986, p. 182.

[9] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 7. ed. rev. e atual. Coimbra: Almedina, 1998. p. 127-128. No mesmo sentido: TELLES, Inocêncio Galvão. Manual de Direito das Obrigações. t. 1. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1965. p. 57.

[10] MENDES, Castro. Direito Civil: Teoria Geral. Lisboa: Livraria Petrony, 1978, p. 144.

[11] FERNANDES, Luís A. Carvalho. Teoria Geral do Direito Civil. 2. ed. Lisboa: LEX, 1995. v. 1. p. 91.

[12] O referido dispositivo legal foi objeto de múltiplas controvérsias doutrinárias que contribuíram para sua não repetição no Código Civil de 2002. Os juristas mais atentos, no entanto, observaram que o art. 75 do Código Civil de 1916 tratava do conceito de ação em sentido material, que se confunde com o conceito de garantia da relação jurídica. Não integra o escopo do presente texto o exame da figura da ação de direito material. Sobre o tema, consultar, por todos: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: eficácia jurídica, direitos e ações. t. 5. Atual. por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013; PEDROSA NOGUEIRA, Pedro Henrique. Teoria da Ação de Direito Material. Salvador: JusPodivm, 2008.

[13] MORAES, Bernardo B. Queiroz de. Parte geral: Código Civil: gênese, difusão e conveniência de uma ideia. São Paulo: YK, 2018, p. 95 e ss.

[14] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019. p. 5.

[15] BARBERO, Domenico. Sistema del Derecho Privado: introduccion, parte preliminar, parte general. v. 1. Traducción Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America, 1967, p. 153.

[16] MOREIRA, Guilherme Alves. Instituições do Direito Civil Português: Parte Geral. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1907, p. 121.

[17] HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 279-294, abr./jun. 2016. p. 291.

[18] MOTA PINTO. Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 3. ed. atual. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 20; FERNANDES, Luís A. Carvalho. Teoria Geral do Direito Civil. 2. ed. Lisboa: LEX, 1995. v. 1. p. 96.

[19] FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. 3. ed. augmentada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1896, p. LXII.

[20] RIBAS, Joaquim. Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983. p. 206.

[21] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 91.

[22] HERZOG, Benjamin. A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 7, n. 3, p. 279-294, abr./jun. 2016. p. 283.

[23] MENDES, Castro. Direito Civil: Teoria Geral. Lisboa: Livraria Petrony, 1978. p. 115.

[24] São exceções, por exemplo: TOMASETTI JR., Alcides. A “propriedade privada” entre o direito civil e a Constituição. Revista de Direito Mercantil industrial, econômico e financeiro, São Paulo, v. 126, p. 123, abr./jun. 2002.; MORAES, Bernardo B. Queiroz de. Parte geral: Código Civil: gênese, difusão e conveniência de uma ideia. São Paulo: YK, 2018. p. 123; NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JR., Nelson. Instituições de Direito Civil: teoria geral do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 350; AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 8. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 34; FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. 3. ed. augmentada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1896. p. LXII; RIBAS, Joaquim. Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983, p. 206.

[25] O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, em paradigmático precedente, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, utilizou aspectos da Dogmática Geral da Relação Jurídica para solucionar questão prática envolvendo a guarda e o direito de visitas a animais de estimação. Cf. STJ. REsp 1713167/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 19/06/2018, DJe 09/10/2018.

Autores

  • é professor de Direito Civil Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

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