Opinião

Fins da pena: limites à administrativização da multa criminal

Autor

  • José Gomes Sobrinho Júnior

    é graduado em Direito pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (Araçatuba-SP) pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio e analista jurídico do Ministério Público.

27 de abril de 2024, 11h45

De acordo com o jurista espanhol Jesús-María Silva Sánchez, “o direito penal, que reagia a posteriori contra um fato lesivo individualmente delimitado (quanto ao sujeito ativo e ao passivo), se converte em um direito de gestão (punitiva) de riscos gerais e, nessa medida, está ‘administrativizado'” [1]. Na visão de Sánchez, o direito penal, dentro de sua unidade substancial, contém dois grandes blocos de ilícitos.

O primeiro, o dos cominados com penas de prisão. O segundo, o dos que se vinculam a outro gênero de sanções. Trata-se do direito penal de duas velocidades. Nesse contexto, reconhecendo que a função racionalizadora do Estado sobre a demanda social de punição pode dar lugar a um produto que seja, de um lado, funcional e, por outro lado, suficientemente garantista, afirma Sánchez:

“Assim, trata-se de salvaguardar o modelo clássico de imputação e de princípios para o núcleo intangível dos delitos, aos quais se assinala uma pena de prisão. […] Mas, vejamos, à medida que a sanção não seja a de prisão, mas privativa de direitos ou pecuniária, parece que não teria que se exigir tão estrita afetação pessoal; e a imputação tampouco teria que ser tão abertamente pessoal. A ausência de penas ‘corporais’ permitiria flexibilizar o modelo de imputação” [2].

Feita essa introdução do que seja o fenômeno da administrativização do direito penal, cabe agora esquadrinhar os limites e as possibilidades de, no atual estágio do direito penal objetivo brasileiro (jus poenale), submeter-se o instituto da pena de multa ao regime proposto pela teoria do direito penal de segunda velocidade.

Sobre os fins da multa criminal, imperioso não confundir o interesse do Estado ao instituir a pena de multa no âmbito do chamado direito penal subjetivo (jus puniendi). Enquanto categoria jurídico-penal  a figurar no rol das penas principais (artigo 32 do CP), a pena de multa foi “instituída para impedir penas privativas de liberdade de curta duração — ou seja, aplicável à criminalidade média e leve” [3].

Sob a perspectiva da teoria geral da pena, extrai-se a função social da pena de multa dentro dos atributos da retribuição (caráter aflitivo ou retributivo) e da prevenção (natureza preventiva), consoante informa a teoria mista ou eclética adotada (artigo 59, caput, do CP). Na dicção de Anibal Bruno:

“Mas a maior parte da doutrina e sobretudo as legislações procuram um equilíbrio entre os dois objetivos atribuídos à pena. Adotam uma teoria mista que satisfaz a exigência da retribuição, pondo a severidade da pena em relação com a gravidade do crime e a culpabilidade do agente, mas, que, por outro lado, provê à prevenção dos fatos puníveis, em defesa da ordem do Direito” [4].

Pena pecuniária

Num viés pragmático, decorrente do aspecto pecuniário da pena de multa, observa-se que sua natureza é compreendida a partir de uma lógica meramente arrecadatória. Essa lógica do crédito que “abastece as arcas do tesouro nacional” —  para se utilizar de uma expressão de Basileu Garcia —, não pode infirmar o caráter essencialmente penal da multa, que foi recentemente acentuado pela Lei nº 13.964/19 (Pacote Anticrime).

Se o interesse público primário é a razão de ser do Estado democrático de direito contemporâneo, cabendo-lhe promover valores como justiça, segurança e bem-estar social (artigos 3º, I e III; 5º, caput; 6º, caput; 144, caput; e 170, caput, da CF), não se mostra legítimo que esse mesmo Estado valha-se da pena pecuniária com vistas a satisfazer seu exclusivo interesse patrimonial.

A esse respeito, com autoridade, pronuncia-se Basileu Garcia:

“Percebe-se, porém, certa nota de imoralidade nesse enriquecimento do Estado a expensas do crime, que lhe compete prevenir. Dir-se-ia que se locupleta invocando a sua própria ineficiência, para não mencionar a sua própria torpeza, conforme o brocardo proibitivo. Daí a impreterível necessidade de se canalizarem os proventos originários dessa fonte impura unicamente para as salvadoras funções da prevenção geral e especial, buscando com eles atenuar a criminalidade e sanar as chagas deixadas por esse flagelo no organismo social” [5].

A par disso, a defesa do fenômeno da administrativização da pena de multa, pelo qual esta passaria a ostentar natureza administrativa ou civil, com a possibilidade de mitigação de princípios político-criminais clássicos, não se coaduna com os princípios da inderrogabilidade da pena de multa e da independência ou autonomia das instâncias.

Spacca

Isso, precisamente porque, em nosso direito penal, a pena de multa figura como modalidade de pena principal, ao lado das penas privativa de liberdade e restritiva de direitos. Efetivamente, não temos um “direito penal periférico”, ao qual se vinculam gêneros diversos de sanções penais.

Da mesma forma, a tese não se harmoniza com as funções retributiva e pedagógica das penas em geral, também extensível às penas pecuniárias, na medida em que a coercitividade estatal poderia ser limitada em face de atos administrativos normativos impeditivos da cobrança da multa validamente imposta, desde que ela não ultrapasse um teto abstratamente preestabelecido, por exemplo.

Como sustentam Zaffaroni e Pierangeli:

“[…] sustentamos que o direito penal tem, como caráter diferenciador, o de procurar cumprir a função de prover à segurança jurídica mediante a coerção penal, e esta, por sua vez, se distingue das restantes coerções jurídicas, porque aspira assumir caráter especificamente preventivo ou particularmente reparador” [6].

Igualmente, é claro que a pena de multa constitui-se em instituto de direito penal material e, como tal, se subordina ao princípio da reserva legal (artigo 5º, XXXIX, da CF; e artigo 1º do CP). Assim, não podem os órgãos do sistema de justiça criminal, tampouco do Executivo, por meio de resoluções, provimentos, decretos ou portarias, de caráter simplesmente administrativo, disciplinar aspectos atinentes à individualização executória da multa criminal, sob pena de inconstitucionalidade formal por vício de usurpação de competência privativa da União (artigo 22, I, da CF).

Nesse sentido, Nucci vem alertando que a administrativização da execução penal retira, indevidamente, o seu forte aspecto jurisdicional. Conforme seu ensinamento: “Segundo nos parece, esses atos administrativos, que têm sido aceitos pelo Judiciário, ferem o princípio da legalidade, com reflexos diretos na individualização executória da pena” [7].

Ela Wiecko V. de Castilho também pontifica: “O princípio da legalidade na execução penal importa na reserva legal das regras sobre as modalidades de execução das penas e medidas de segurança, de modo que o poder discricionário seja restrito e se exerça dentro de limites definidos” [8]. Na mesma linha, citando Alberto Silva Franco, acentua José Eduardo Goulart: “O princípio da legalidade envolve, deste modo, uma garantia executiva já que a ‘pena vive na execução'” [9].

De igual sorte, o argumento da administrativização da multa criminal também não se compraz com o princípio da intranscendência da pena, albergado pelo artigo 5º, XLV, da CF, pelo qual a pena de multa só pode ser dirigida à pessoa do autor da infração penal, quer dizer, é personalíssima e intuito personae, não podendo ela alcançar amigos ou familiares do criminoso, ressalvada a obrigação de reparar o dano e a pena de perdimento de bens.

Cessão de débito

Com efeito, sendo a pena de multa personalíssima e intuito personae, uma vez transitada em julgado a condenação e extraída a respectiva certidão de sentença (artigo 50, caput, do CP), não pode haver a cessão do débito ou assunção de dívida, seja por ato causa mortis, seja por ato inter vivos (artigos 299 e 1.997, do CC), sob pena de ofensa ao postulado da intranscendência. Portanto, na cobrança da multa criminal, veda-se em absoluto a responsabilidade de terceiros.

Hoje, a intensificação da violência e da criminalidade no mundo moderno, a massiva atuação do crime organizado, suas conexões internacionais, os altos índices de corrução pública, como diz Paganella, “quebraram a consistência, ao que nos parece, das elucubrações desenvolvidas em sentido radicalmente oposto pelos abolicionistas, que preconizavam, evolucionariamente, décadas atrás, o fim do direito penal e a introdução de outros mecanismos de controle social, predominantemente administrativos” [10].

Ademais, a administrativização da pena de multa tem potencial para torná-la absolutamente ineficaz [11], já que a lógica da inderrogabilidade é invertida pela lógica da oportunidade e dos argumentos estritamente consequencialistas. Como bem afirma Bitencourt, com apoio em Jescheck: “A eficácia político-criminal da pena de multa depende decididamente de que se pague ou de que, em todo o caso, se a cobre” [12].

Por fim, a despeito das vantagens e desvantagens ínsitas ao instituto da multa criminal, a doutrina tem reconhecido que “os inconvenientes apontados não superam as enormes vantagens. Há fórmula que permite o pagamento de multa em parcelas ou através da prestação de trabalho de utilidade comum, o que afasta a observação de que nem todos podem pagá-la” [13].

A esse propósito, Dotti apregoa:

“Na atualidade, domina a ideia de que a multa é uma das importantes alternativas para a prisão. Devidamente corrigida em seus valores, essa forma de sanção cumpre os objetivos reservados às penas em geral, segundo uma perspectiva de bases imprescindíveis à sua dignidade. Ela pode retribuir a culpa e cumprir os fins da prevenção. É humana e personalíssima” [14].

Vale dizer, o STF, recentemente, deu passo rumo à revitalização da pena de multa, ao conferir, ao artigo 51 do CP, interpretação conforme à Constituição, no sentido de que, cominada conjuntamente com a pena privativa de liberdade, o inadimplemento da pena de multa obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade, salvo comprovada impossibilidade de seu pagamento, ainda que de forma parcelada[15].

Diante desse contexto, há de se reconhecer que o fenômeno da administrativização da multa penal provoca repercussões nas esferas penal e de execução penal. Em termos dogmáticos, e porque legem habemus, tal fenômeno tem o condão de esmaecer os fins da pena de multa enquanto sanção punitiva de caráter patrimonial, expressamente prevista na Constituição e revigorada por diversas reformas legislativas, cuja finalidade primordial é a repressão do crime.

É válida a constatação de que a “inexigibilidade ou inexequibilidade é a maior causa da ineficácia de qualquer norma jurídica, e não só da pena de multa” [16]. Afinal, aos que opõem a crítica de que a multa não tem cunho reformador, Prado contrapõe a seguinte indagação: “E a pena privativa de liberdade de curta duração tem o condão de ressocializar alguém? Contudo, é fora de dúvida que a pena de multa não constitui obstáculo algum à readaptação social do delinquente” [17].

 


[1]SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. – 3. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 148.

[2]SILVA SÁNCHEZ. Op. Cit. p. 190-191.

[3]SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito pena: parte geral. – 3. ed. – Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p. 549.

[4]BRUNO, Anibal. Das penas. – Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 22

[5]GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, v. 1, tomo II. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 65.

[6]ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo: Thompson Reuters RT, 2019, p. 96.

[7]NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal. – 4. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 07.

[8]CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Controle da legalidade na execução penal (reflexões em torno da jurisdicionalidade). – Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 25.

[9]GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito da execução penal. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 93.

[10]BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 8. ed., rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2020, p. 85.

[11]Permanece atual a observação de Bentham: “[…] esta pena é positiva, é uma ideia, que o Legislador não deve perder de vista no estabelecimento de uma pena pecuniária” (BENTHAM, Jeremias. Teorias das penas legais e tratado dos sofismas políticos. – São Paulo: Edições Cultura, 1943, p. 206).

[12]BITENCOURT, Cézar Roberto. Falência da pena de prisão – Causas e alternativas. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 271.

[13]PRADO, Luiz Regis. Multa penal: doutrina e jurisprudência. – 2. ed. rev. atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 95.

[14]DOTTI, René Ariel. Bases alternativas para o sistema de penas. – 2. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 389.

[15]STF. Pleno. ADI 7.032/DF, Rel. Min. FLÁVIO DINO, julgamento finalizado em 15 a 22 de março de 2024.

[16]BITENCOURT. Op. Cit. p. 271.

[17]PRADO. Op. Cit. p. 96.

Autores

  • é graduado em Direito pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (Araçatuba-SP), pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio e analista jurídico do Ministério Público.

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