Opinião

Racismo no futebol: formas de vitimização e desafios no Direito Penal

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

10 de novembro de 2023, 18h16

No último dia 20 de outubro, um torcedor do Sevilla imitou um macaco, gesto direcionado ao brasileiro Vinícius Júnior. Por óbvio, não se trata de um caso isolado, uma vez que a imprensa já noticiou mais de uma dezena de oportunidades em que o jogador foi vítima de crimes raciais. Talvez o mais emblemático e lamentável caso tenha ocorrido no fatídico domingo de 21 de maio de 2023, oportunidade em que o Yomus, um grupo de ultras do Valencia, no estádio Mestalla, praticaram uma série de insultos racistas contra o atacante do Real Madrid.

Do ponto de vista vitimológico, jogadores negros como Vinícius tem experimentado as três formas de vitimização conhecidas. A vitimização primária refere-se aos danos causados à vítima como resultado direto da prática do crime. Isso inclui os diversos tipos de danos, sejam eles materiais, físicos ou psicológicos. Sem dúvidas, o brasileiro foi vítima de sucessivos crimes raciais (vitimização primária) durante as partidas do campeonato espanhol de futebol.

Divulgação

Já a vitimização secundária, também conhecida como sobrevitimização, ocorre devido às instâncias formais de controle social durante o processo de registro e investigação do crime. Nesse caso, a vítima enfrenta um sofrimento adicional devido à dinâmica do sistema de justiça criminal, que pode envolver o inquérito policial e o processo penal. Essa forma de vitimização está relacionada à interação da vítima com o sistema de justiça criminal e pode incluir revitimização, estigmatização e falta de apoio adequado.

Souza et al. (2015) investigaram casos de injúria racial no futebol brasileiro, envolvendo jogadores como Daniel Alves, Arouca, Aranha, Tinga, Roberto Carlos e o árbitro Márcio Chagas da Silva. Utilizando informações da mídia, os autores analisaram como o fenômeno do racismo repercute além da injúria racial imediata. O incidente com Tinga também foi abordado por Lise et al. (2015), que examinaram o ocorrido durante uma partida entre Cruzeiro e Real Garcilaso, do Peru.

De acordo com Souza et al. (2015), embora as ofensas racistas sejam comprovadas pela mídia, as autoridades tendem a minimizar os casos e considerá-los de pouca importância, classificando-os como “casos isolados”. Isso resulta na falta de medidas efetivas para combater manifestações racistas. Laruccia e Martyniuk (2016) afirmam que o futebol brasileiro reflete as relações sociais do país, e a ideia de democracia racial é fortalecida pelo fato de o esporte ter servido como meio de ascensão social para negros e mestiços, o que acaba encobrindo o racismo cotidiano na sociedade brasileira.

A dificuldade em estabelecer punições adequadas para casos de discriminação racial parece ser um problema global. Doidge (2015), ao abordar as situações vividas pelo jogador Mario Balotelli no futebol italiano, destaca a brandura das punições aplicadas aos clubes envolvidos nos casos e a falta de mecanismos institucionais para combater o racismo nos estádios italianos. Isso ressalta a necessidade de endurecer as punições, como multas, suspensões de torcidas ou até mesmo a exclusão dos clubes de competições.

Renfrew e Snyder (2016), em outro artigo sobre o racismo no futebol europeu, analisaram o caso envolvendo o jogador uruguaio Luiz Suárez e o francês Patrice Evra. Suárez, que jogava pelo Liverpool FC. Suárez foi punido por utilizar ofensas raciais contra Evra durante uma partida da Premier League, a primeira divisão do campeonato inglês de futebol. Os autores destacam que a injúria racial é crime no Reino Unido e que muitos observadores ficaram surpresos com esse tipo de comportamento no futebol do país.

Outro caso que chamou atenção no futebol inglês foi o incidente ocorrido em 2011, durante um jogo entre Chelsea e Queens Park Rangers (QPR), envolvendo o então capitão do Chelsea, John Terry, e o jogador Anton Ferdinand, do QPR. Gavins e Simpson (2015) analisaram o desenrolar do julgamento de Terry, ressaltando que, inicialmente, ele foi considerado inocente, mas após um ano o caso foi julgado novamente e o jogador foi condenado, multado e suspenso. Os autores enfatizam que fatores externos, como a análise feita pela mídia da expressão utilizada por Terry, podem ter influenciado a opinião pública e o posicionamento das instituições responsáveis pelo futebol inglês.

A vitimização terciária diz respeito à falta de amparo das instituições públicas às vítimas. Nesse contexto, a própria sociedade pode não acolher a vítima e, muitas vezes, até desencorajá-la de denunciar o crime às autoridades competentes. Isso leva ao que é chamado de cifra oculta, que se refere à quantidade de crimes que não chegam ao conhecimento do Estado. A vitimização terciária destaca a falta de apoio institucional e social às vítimas, resultando em impunidade e falta de justiça para os afetados.

No caso de Vinicius Junior, as sucessivas omissões nas respostas das autoridades e a falta de apoio e acolhimento de considerável parcela da sociedade espanhola em relação às denúncias de racismo e aos incidentes sofridos pelo jogador, são formas evidentes de vitimização secundária e terciária.

Jon Garland e Michael Rowe (2014) elaboraram uma importante análise criminológica do estado atual do combate ao racismo no futebol inglês, fazendo uma retrospectiva dos últimos 20 anos. Os referidos autores apontam que durante a década de 1990 se intensificaram as discussões sobre o racismo no futebol, à medida que surgiam tendências mais amplas, que redefiniam a cultura das torcidas em um contexto pós-hooliganismo. A luta antirracista no futebol se desenvolveu em conjunto com uma nova cultura de fanzines, iniciativas de democracia nas torcidas e sensibilidades mais críticas em relação aos estereótipos antigos de fãs e à comercialização do futebol, que estavam em estágios iniciais naquela época.

No estudo de Jamie Cleland (2014), que buscou compreender o pensamento dos torcedores de futebol inglês, por meio da análise do discurso em comentários racistas nas redes sociais e fóruns relacionados ao esporte, observou-se que o alvo principal desses discursos é o multiculturalismo e o islamismo, frequentemente evocando o imaginário de uma “raça pura”. O autor destaca que essas manifestações dos torcedores nessas plataformas não são proibidas, podendo receber contestação ou apoio, embora a maioria dos comentários subsequentes seja contrária ao racismo. O programa Show Racism The Red Card, criado pela Federação Inglesa de Futebol, também enfrentou desafios financeiros devido ao crescimento do conservadorismo global, mas a mídia e o multiculturalismo no futebol inglês fortaleceram a mensagem antirracista (Dixon et al., 2016).

Nesse terreno, a vitimização terciária é sedimentada pelo chamado “racismo recreativo”, conceito introduzido por Adilson Moreira (2019), em seu livro Racismo recreativo, referindo-se ao uso de “humor” e “brincadeiras”, que envolvem ofensas raciais. Essas práticas são parte de um projeto de dominação que busca manter relações de poder assimétricas entre grupos raciais. O racismo recreativo contribui para a reprodução da hegemonia branca ao encobrir a hostilidade racial por trás do humor racista. Um exemplo citado é o caso do jogador Edílson Capetinha, em que ele atribuiu o empate de um jogo de futebol à raça do goleiro, afirmando que o time teria vencido se o goleiro fosse branco. Os comentaristas brancos presentes riram histericamente, demonstrando como o racismo recreativo é reproduzido e reforçado.

Campbell (2021) demostrou como a mídia trata homens negros de forma diferente dos homens brancos no contexto do racismo no futebol. Seu estudo demonstra o tratamento diferenciado que os jogadores recebem na imprensa, citando exemplos recentes de relatórios sobre investimentos imobiliários de jogadores, como Marcus Rashford e Phil Foden. No caso de Rashford, jogador negro do Manchester United, ele foi retratado como um jogador extravagante, rico e gastador. Já Foden, jogador branco do City, foi descrito como um rapaz local de Stockport que cuida de sua família. Isso ilustra as disparidades na forma como a mídia retrata e interpreta jogadores de diferentes origens étnicas.

Um estudo recente sobre estereótipos raciais nos comentários de partidas de futebol revela diferenças significativas na maneira como jogadores negros e brancos são descritos (CAMPBELL & BEBB, 2022). Durante a Copa do Mundo da Fifa em 2018, foram analisados 1.009 elogios feitos a jogadores em 30 horas de cobertura da BBC e ITV, abrangendo 20 partidas. Os resultados mostraram que os jogadores negros eram frequentemente elogiados por sua habilidade física e destreza natural, enquanto os jogadores brancos eram elogiados por sua inteligência e caráter. Ao classificar os elogios por atributo, constatou-se que 69,8% dos elogios a jogadores negros se referiam a características físicas, enquanto 47,9% dos elogios a jogadores brancos eram relacionados a atributos adquiridos. Esses dados sugerem que os comentaristas não estavam apenas relatando objetivamente o que viam no jogo, mas sim destacando certos atributos com base na raça dos jogadores.

Esses estereótipos raciais no esporte podem ser rastreados até as teorias pseudocientíficas que surgiram no século XIX, como o darwinismo social. Essas teorias afirmavam que os brancos eram superiores em termos de intelecto e caráter, enquanto os negros eram vistos como menos evoluídos e mais adequados para atividades físicas. Essa visão reducionista reforça a ideia do “atleta negro natural”. Essa representação prejudicial tem um impacto negativo, pois limita a percepção e a valorização do talento negro, reduzindo-o apenas a atributos físicos. Ao seguir essa lógica, os jogadores negros seriam vistos como profissionais do futebol apenas por sua força, velocidade ou habilidades físicas, ignorando suas capacidades cognitivas e outros atributos.

Em outros termos, o chamado racismo institucional, entendido como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica” (CRI, 2006:22), promove um ambiente propício para as vitimizações secundária e terciária, na medida em que as práticas discriminatórias e a falta de resposta adequada das instituições podem agravar o sofrimento e dificultar a busca por justiça das vítimas. Além disso, a falta de amparo por parte das instituições e da sociedade em geral contribui para a vitimização terciária, perpetuando a sensação de desamparo e a subnotificação dos casos de discriminação racial. No caso de Vinicius Junior, existem evidências de que La Liga, como instituição, adotou deixou de adotar práticas ou políticas, que contribuíram para o racismo, ao não oferecer proteção adequada ao jogador brasileiro contra os sucessivos crimes raciais.

O futebol tem uma relação intrínseca com a política, contradizendo aqueles que acreditam que essas áreas não se misturam. Grupos ultras extremistas, como Irriducibili (Lazio), La Família (Beitar Jerusalem) e Landskrona (Zenit), disseminam ideologias de extrema-direita nos estádios de futebol, especialmente na Itália e na Espanha. Eles estão ligados a diversos clubes e promovem o ódio aos imigrantes, o racismo, a xenofobia e a islamofobia. Esses grupos são politicamente organizados e violentos, com uma visão clara de sociedade e alvos específicos. Apesar de ações anunciadas pelas autoridades, há uma tendência em minimizar o problema e equipará-lo a outros conflitos sem motivação política.

Ao longo dos anos, ditadores utilizaram clubes para promover suas agendas, presidentes financiaram estádios e torcedores encontraram no esporte uma forma de protestar contra governantes. Como forma de reação social ao racismo no futebol merece destaque a emergência das “torcidas antifas”. Além dos clubes alemães Borussia Dortmund e St. Pauli, merece destaque o chamado Triangle of Brotherhood, uma aliança entre das três torcidas antifascistas: Commando Ultras 84 (Olympique de Marselha), Brigate Autonome Livornesi 99 (Livorno) e Original 21 (AEK) de Atenas, que tem como propósito promover campanhas antifascistas e combater o racismo nos estádios europeus.

No Brasil, o surgimento dos coletivos antifascistas nas torcidas é anterior aos acontecimentos recentes. Desde 2013, tem havido uma proliferação desses coletivos formados por torcedores de diferentes clubes em várias regiões do país. Alguns desses coletivos remontam a momentos anteriores, como a torcida Ultras Resistência Coral, do Ferroviário Atlético Clube, criada em 2004 em Fortaleza, considerada a primeira torcida antifascista do Brasil.

O racismo no futebol tem sido normalizado devido à falta de políticas eficazes contra o preconceito racial nesse esporte. No contexto do futebol, há uma tendência ao silenciamento quando se trata de racismo. Muitos jogadores negros que enfrentam essa situação optam por ignorar os ataques, temendo ter problemas em suas carreiras caso decidam se manifestar. É necessário combater o racismo no futebol e garantir que todos os jogadores possam atuar em um ambiente livre de discriminação.

Referências

CAMPBELL, Paul Ian. Racism in football: new research shows media treats black men differently to white men. The Conversation, May 14, 2021. Disponível em: https://theconversation.com/racism-in-football-new-research-shows-media-treats-black-men-differently-to-white-men-160841. Acesso em: 24 mai 2023.

CAMPBELL, Paul Ian; BEBB, Louis. ‘He is like a Gazelle (when he runs)’ (re)constructing race and nation in match-day commentary at the men’s 2018 FIFA World Cup. Sport in Society, v. 25, nº 1, p. 144-162, 2022. DOI: 10.1080/17430437.2020.1777102.

CLELAND, J.; CASHMORE, E. Football fans’ views of racism in British football. International Review for the Sociology of Sport, v. 51, nº 1, p. 27-43, 2013. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1012690213506585. Acesso em: 29 mai. 2023.

CRI. Articulação para o Combate ao Racismo Institucional. Identificação e abordagem do racismo institucional. Brasília: CRI, 2006.

DIXON, K.; LOWES, J.; GIBBONS, T. Show Racism The Red Card: potential barriers to the effective implementation of the anti-racist message. Soccer & Society, v. 17, nº 1, p. 140-154, 2016. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14660970.2014.919280. Acesso em: 30 mai 2023.

DOIDGE, M. ‘If you jump up and down, Balotelli dies’: Racism and player abuse in Italian football. International Review for the Sociology of Sport, v. 50, nº 3, p. 249-264, 2015. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1012690213480354. Acesso em: 29 mai. 2023.

Garland, J., Rowe, M. The Hollow Victory of Anti-Racism in English Football. In: Hopkins, M., Treadwell, J. (eds). Football Hooliganism, Fan Behaviour and Crime. Palgrave Macmillan, London, 2014.

GAVINS, J.; SIMPSON, P. Regina v John Terry: The discursive construction of an alleged racist event. Discourse & Society, v. 26, nº 6, p. 712-732, 2015. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0957926515592783. Acesso em: 29 mai. 2023.

LARUCCIA, M. M.; MARTYNIUK, V. L. Racism in football: a narrative path. Advances in Journalism and Communication, v. 4, p. 103-112, 2016. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3026973. Acesso em: 29 mai. 2023.

MOREIRA, A. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019.

RENFREW, D.; SNYDER, G. M. “When Said with a Sneer”: translating language, race, and culture through an English football race controversy. City & Society, v. 28, nº 3, p. 319-340, 2016. Disponível em: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ciso.12095. Acesso em: 29 mai. 2023.

SOUZA, M. T. O. et al. Injúria racial no futebol brasileiro: uma análise sócio-histórica de alguns casos (não tão) esporádicos ocorridos nos últimos anos. Motrivivência, v. 27, nº 46, p. 230-240, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/motrivivencia/article/view/2175-8042.2015v27n46p230. Acesso em: 29 mai. 2023.

Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!