Burla à Súmula Vinculante nº 24: uma velha novidade
18 de março de 2024, 17h19
O saudoso e sempre ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do HC 81.611/DF, alertou: “(…) com todas as vênias, o inquérito policial nunca substituirá o lançamento, nunca estabelecerá, definitivamente, a existência e o quantum do crédito tributário”.
O writ é representativo da controvérsia que resultou na edição da Súmula Vinculante nº 24 (SV nº 24), que dispõe que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
Sua Excelência também registrou, durante o julgamento, a preocupação de “não usurpar a competência privativa da administração para o ato de constituição do crédito tributário (CTN, artigo 142), sujeito ele mesmo, de resto, ao controle judicial de sua validade”.
Atualmente, a jurisprudência dos tribunais superiores sedimentou algumas exceções à SV nº 24, especialmente para a persecução penal antes do lançamento definitivo do tributo. São elas:
- quando há a conduta do inciso V do artigo 1º da Lei nº 8.137/90;
- quando há embaraço à fiscalização tributária;
- quando se perseguem outros delitos de natureza não fiscal, especialmente lavagem de dinheiro.
De fato, há necessidade de delimitação de critérios mínimos para as exceções criadas, pois a burla à SV nº 24 tem se tornado a regra, e não a exceção.
Quanto à inserção, em inquéritos e representações por cautelares, apenas do inciso V [1] do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, é imperiosa a análise de se não se narram, no caso concreto, as hipóteses dos incisos I a IV do mesmo artigo, que trazem crimes materiais.
O legislador, por lógica elementar, previu ações‐meio que são anteriores — quando não excludentes — à não emissão de nota fiscal: fraude, falsificação/alteração de documento relativo à operação tributável, omissão de informações. Em suma: se se narrar crime material, com efetiva sonegação fiscal, não há de se falar em dúvida sobre a tipificação, tal como decidido pelo Supremo Tribunal Federal no HC 180.567/MG.
Outra hipótese de mitigação da SV nº 24 é o embaraço à fiscalização tributária.
A administração tributária, no exercício da competência do artigo 142 do CTN, possui inúmeros poderes e prerrogativas, como aqueles previstos nos artigos 195, 196, 197 e 200 do CTN. A esse respeito, os códigos tributários dos entes políticos trazem critérios legais para a definição de “embaraço”.
O Código Tributário de Goiás, por exemplo, define em seu artigo 147 que caracteriza recusa ou embaraço à fiscalização o não atendimento, por parte do contribuinte ou qualquer pessoa sujeita à fiscalização, de notificação expedida pelo agente do Fisco.
Embaraço no Rio
No estado do Rio de Janeiro, há a previsão de que, caracterizado o embaraço, agentes do Fisco podem aplicar penalidade pecuniária e, até mesmo, solicitar providências junto à Procuradoria ou ao Ministério Público para que se faça a busca e apreensão judicial.

Em suma: o que não se pode permitir é que, sem o exercício de efetivos atos de fiscalização, com concreta resistência por parte do contribuinte, haja a redução da atividade fiscalizatória à busca por operações policiais. Mera observância da proporcionalidade em sentido estrito.
Quanto à última exceção, conquanto não se olvide que a investigação pela prática do suposto crime de lavagem de capitais independa de processo administrativo, fato é que, na maior parte dos casos, nem “sequer se discute a falta de prova do crime antecedente, mas, ao contrário, certa é a inexistência do crime, pois indispensável à configuração do delito de sonegação tributária é a prévia constituição definitiva do tributo” [2].
Ademais, ainda que se entenda que os valores não pagos ou repassados ao fisco, nos crimes tributários, são o produto do delito, a burla ao enunciado é caracterizada, já que, no mais das vezes: não se indica uma ocultação ou dissimulação distinta daquela que caracterizaria o crime contra a ordem tributária antecedente; não há a indicação de que os valores, supostamente ocultos ou dissimulados, são exatamente aqueles provenientes do suposto delito anterior; não é possível, sem o lançamento definitivo do crédito, demonstrar que esse ato de mascaramento se deu após a consumação do injusto prévio material.
Passados 20 anos do julgamento do HC 81.611/DF, os alertas feitos pelo ministro Sepúlveda Pertence não revelam uma obviedade, mas a antevisão que só surge na meditação demorada de uma mente capaz de perceber que “todo fenômeno é no começo um germe, depois termina por se tornar uma realidade que todo mundo pode constatar”[3]: chega‐se à atual realidade que precisa ser observada atentamente pelos tribunais de que, por vezes, a Polícia é quem faz as vezes do Fisco — e vice‐versa.
[1] Não se adentrará na discussão sobre a natureza formal ou material do delito, tampouco na de se o substrato do crime está no caput e/ou nas condutas‐meio dos incisos do artigo 1º da Lei nº 8.137/90.
[2] RHC nº 73.599/SC, relator ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 20/9/2016.
[3] Os 36 estratagemas — manual secreto da arte da guerra.
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