Opinião

PLS 3.649/20: regulamentação do professor de artes marciais e de esportes de combate

Autor

  • Elthon Costa

    é advogado trabalhista e desportivo membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do TST no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) mestrando em International Sports Law (Isde) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da Wako Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral (NTADT) da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF e membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF.

17 de abril de 2024, 20h56

“O exercício profissional dos professores de artes marciais e esportes de combate é uma realidade presente em nossa sociedade, com um número significativo de praticantes e estabelecimentos que oferecem essas atividades, no entanto, a falta de uma regulamentação específica para essa profissão resulta em uma série de desafios e limitações para esses profissionais, que não recebem o reconhecimento adequado.”

O trecho acima consta no texto do requerimento nº 22/2024 de autoria do deputado federal Júlio Cesar Ribeiro, que requer a realização de reunião de audiência pública, com o objetivo de discutir o Projeto de Lei 3649/2020 [1], que dispõe sobre o exercício da profissão de professor de artes marciais ou esportes de combate.

O objetivo primordial do PLS é definir que entidades teriam a competência para certificar o pretenso professor (ou instrutor) de artes marciais ou esportes de combate, se não, vejamos:

“Art. 1º O exercício da profissão de professor de artes marciais ou de esportes de combate se dará nos termos desta Lei.

§ 1°. Consideram-se artes marciais práticas físicas derivadas de técnicas marciais provenientes majoritariamente das culturas orientais, ou de defesa pessoal, que tenha por objetivo a proteção pessoal.

§ 2°. Consideram-se esportes de combate, práticas físicas que visem simular luta corporal que tenha por objetivo vencer um adversário, ainda que tal se dê, exclusivamente, por meio de pontuação;

Art. 2º Será considerado professor de artes marciais ou de esportes de combate todo aquele que for devidamente certificado como professor, mestre, técnico ou instrutor, por Confederação da respectiva modalidade em que atua, ou por Federação a esta filiada, por delegação da sua respectiva Confederação.

§ 1°. Ficam as Confederações e, subsidiariamente, as Federações, responsáveis, exclusivamente no âmbito de suas respectivas modalidades, por definir os critérios e condições necessárias à expedição da certificação de que trata este artigo.”

Da inconstitucionalidade da exigência de registro de professor de artes parciais pelo Confef

Gerou debate acalorado, em sessão da Comissão de Esporte da Câmara dos Deputados do dia 20 de março de 2024[2], a necessidade levantada pelo deputado federal Luiz Lima de diploma de professor de educação física para professores de artes marciais, sob o argumento de que o ensino de qualquer atividade física seria privativo de professor de educação física por força de lei (Lei nº 9.696/98 [3] e a Resolução Confef nº 046/2002).

Com a máxima vênia, ouso discordar do nobre deputado. Para tanto, trago à baila a legislação citada pelo parlamentar:

“LEI Nº 9.696, DE 1 DE SETEMBRO DE 1998.

Art. 1º O exercício das atividades de Educação Física e a designação de Profissional de Educação Física é prerrogativa dos profissionais regularmente registrados nos Conselhos Regionais de Educação Física.

Art. 2º Apenas serão inscritos nos quadros dos Conselhos Regionais de Educação Física os seguintes profissionais:

I – os possuidores de diploma obtido em curso superior de Educação Física oficialmente autorizado ou reconhecido pelo Ministério da Educação;

II – os possuidores de diploma em Educação Física expedido por instituição de ensino superior estrangeira, revalidado na forma da legislação em vigor;

III – os que tenham comprovadamente exercido atividades próprias dos Profissionais de Educação Física até a data de início da vigência desta Lei, nos termos estabelecidos pelo Conselho Federal de Educação Física (Confef).

(…)

Art. 3o Compete ao Profissional de Educação Física coordenar, planejar, programar, supervisionar, dinamizar, dirigir, organizar, avaliar e executar trabalhos, programas, planos e projetos, bem como prestar serviços de auditoria, consultoria e assessoria, realizar treinamentos especializados, participar de equipes multidisciplinares e interdisciplinares e elaborar informes técnicos, científicos e pedagógicos, todos nas áreas de atividades físicas e do desporto.”

Inicialmente, cumpre ressaltar que a Lei 9.696/98 previu, em seu artigo 2°, quem seria inscrito no quadro do CREF, havendo a necessidade de diploma valído e reconhecido. No entanto, o Confef, por mera liberalidade, resolveu descrever as especialidades do educador físico através da Resolução 046/02, se não, vejamos:

“Art. 1º. O Profissional de Educação Física é especialista em atividades físicas, nas suas diversas manifestações – ginásticas, exercícios físicos, desportos, jogos, lutas, capoeira, artes marciais, danças, atividades rítmicas, expressivas e acrobáticas, musculação, lazer, recreação, reabilitação, ergonomia, relaxamento corporal, ioga, exercícios compensatórios à atividade laboral e do cotidiano e outras práticas corporais -, tendo como propósito prestar serviços que favoreçam o desenvolvimento da educação e da saúde, contribuindo para a capacitação e/ou restabelecimento de níveis adequados de desempenho e condicionamento fisiocorporal dos seus beneficiários, visando à consecução do bem-estar e da qualidade de vida, da consciência, da expressão e estética do movimento, da prevenção de doenças, de acidentes, de problemas posturais, da compensação de distúrbios funcionais, contribuindo ainda, para consecução da autonomia, da auto-estima, da cooperação, da solidariedade, da integração, da cidadania, das relações sociais e a preservação do meio ambiente, observados os preceitos de responsabilidade, segurança, qualidade técnica e ética no atendimento individual e coletivo.

Art. 2º Fica aprovado o Documento de Intervenção Profissional que acompanha esta Resolução.

Art. 3º Esta Resolução entra em vigor nesta data.”

Entre as atividades descritas constam lutas, artes marciais, capoeira e outras. Verifica-se, nesta senda, que não foi regulamentada, através da resolução, a obrigação de professores dessas artes se registrarem no Confef, o que seria ilegal, ainda que previsto.

Spacca

A Resolução nº 046/02 não definiu quais seriam as atividades próprias dos profissionais de educação física, tendo sim arrolado quais os profissionais que deveriam se inscrever perante a entidade. E, se tivesse assim procedido, teria esbarrado na norma constitucional que garante o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, insculpida no artigo 5º, inc. XII, da Constituição [4].

O artigo 3º da Lei nº 9.696/1998 também não diz quais os profissionais que se consideram exercentes de atividades de educação física, mas, simplesmente, elenca as atribuições dos profissionais de educação física. Uma coisa é dizer quem exerce atividades de educação física, outra, dispor sobre as atribuições daquele que exerce essas atividades [5].

Importante relembrar que inscrição em conselho de classe, como já decidiu o STJ [6] e o STF [7], deve levar em consideração a atividade, principalmente, praticada. Nesse sentido, a redação dos dispositivos citados leva à conclusão de que as atribuições do profissional de educação física referem-se a atividades que visem, precipuamente, a atividade física e desportiva.

De consequência, inconstitucional a imposição de condições para o exercício da profissão que vem sendo feita, mormente no que respeita aos profissionais das áreas das artes marciais, todos englobados no dispositivo da resolução, mas que não se caracterizam, tecnicamente, como da área da educação física.

A diferença entre atividade física e educação física — o pretenso “monopólio do movimento”

Não bastasse, na ótica da Resolução do Confef, praticamente toda e qualquer atividade que envolva movimentos corporais é considerada atividade de educação física, confundindo-se dois conceitos diversos: educação física e atividade física.

A atividade física é apenas um meio para o exercício de uma arte que, em muitos casos, embora naturalmente envolvam movimentação corporal, não são atividades próprias do profissional de educação física.

A questão é que toda e qualquer atividade física teria que ser supervisionada por profissional da educação física, em razão do critério material utilizado pelos dispositivos citados para definir a área de atuação e competência do profissional de educação física, tendo este as atividades físicas através da quais se busca o exercício físico propriamente dito e/ou educação corporal físico/desportiva inseridas no âmbito de sua atuação.

No entanto, antes de atividade corporal, as artes marciais possuem ensinamentos teóricos que consubstanciam, até mesmo, um modo do artista marcial portar-se perante as mais diversas situações. Não é por acaso a denominação utilizada é arte marcial. Este tipo de artista não é um praticante de educação física, pois, na luta, não busca, em primeiro lugar um aprimoramento físico, mas sim portar-se de acordo com princípios próprios da arte, desenvolvidos em sua longa tradição.

O nome arte marcial está relacionado a questões holísticas e filosóficas, abrangendo outras concepções de corpo e de movimento [8].

A proposta das artes marciais é de oferecer evolução espiritual e física, integração harmônica entre corpo e mente. Cada arte marcial possui história própria cujos princípios foram sedimentados ao longo do tempo. Assim, o professor de artes marciais deve transmitir conhecimentos teóricos e padrões comportamentais, atividades estas que não visam o desporto e o condicionamento físico [9].

Portanto, não cabe ao Confef exigir inscrição desse tipo de profissional, pois o ordenamento jurídico brasileiro permitiu à Resolução 46/02 unicamente o papel de regulamentar a lei, esclarecendo o seu comando normativo, não podendo inovar, ampliar ou restringir direitos, sob pena de dar ao educador físico o “monopólio do movimento”.

A regulamentação do treinador esportivo profissional de combate à luz do artigo 75 da Lei Geral do Esporte

A Lei 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte), em seu artigo 75, prevê a regulamentação da profissão do treinador esportivo:

“Lei Nº 14.597/2023

Subseção III

Dos Treinadores

Art. 75. A profissão de treinador esportivo é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes constantes da legislação vigente, do respectivo contrato de trabalho ou de acordos ou convenções coletivas.

§ 1º. Considera-se treinador esportivo profissional a pessoa que possui como principal atividade remunerada a preparação e a supervisão da atividade esportiva de um ou vários atletas profissionais.

§ 2º. O exercício da profissão de treinador esportivo em organização de prática esportiva profissional fica assegurado exclusivamente:

I – aos portadores de diploma de educação física;

II – aos portadores de diploma de formação profissional em nível superior em curso de formação profissional oficial de treinador esportivo, devidamente reconhecido pelo Ministério da Educação, ou em curso de formação profissional ministrado pela organização nacional que administra e regula a respectiva modalidade esportiva;

III – aos que, na data da publicação desta Lei, estejam exercendo, comprovadamente, há mais de 3 (três) anos, a profissão de treinador esportivo em organização de prática esportiva profissional.”

Enquanto que a nova Lei Geral do Esporte trouxe os dispositivos regulamentadores da profissão do treinador esportivo profissional, o PLS 3.649/2020 versa sobre o professor ou instrutor de artes marciais ou de esportes de combate, nomenclaturas que não colidem, se tratando então do mesmo profissional (sempre que este treine atletas profissionais).

Desta forma, a Lei Geral do Esporte já define os meios pelos quais o professor pode ser reconhecido como profissional (inclusive dando a opção do diploma de educação física!). No caso das federações e confederações, a Lei Geral, que foi omissa nesse sentido, teria então como definir quem seriam as entidades capazes de ministrar o curso de formação profissional para certificar o professor ou instrutor de artes marciais ou esportes de combate, na medida em que o PLS 3649/2020 prevê que:

Art. 2º Será considerado professor de artes marciais ou de esportes de combate todo aquele que for devidamente certificado como professor, mestre, técnico ou instrutor, por Confederação da respectiva modalidade em que atua, ou por Federação a esta filiada, por delegação da sua respectiva Confederação.

§ 1°. Ficam as Confederações e, subsidiariamente, as Federações, responsáveis, exclusivamente no âmbito de suas respectivas modalidades, por definir os critérios e condições necessárias à expedição da certificação de que trata este artigo.

§ 2°. Para os fins do art. 2º, havendo mais de uma Confederação da mesma modalidade, somente poderá certificar e reconhecer certificações emitidas por Federações aquelas que estejam filiadas às Confederações Panamericanas e/ou Mundiais da referida modalidade e estejam constituídas ao tempo da vigência da presente lei. §3°. A expedição de Certificação para casos em que o exercício da profissão de professor de artes marciais ou de esportes de combate, envolva ou permita o emprego de mais de uma arte marcial ou técnicas provenientes de diferentes esportes de combate, deverá ser expedida, individualmente, pela Confederação ou Federação mais específica de cada uma das modalidades.

 Portanto,  o PLS 3.649/2020 se apresenta como uma opção para definição das entidades capazes de certificar professores, resolvendo também a controvérsia sobre quais seriam as entidades reguladoras de cada modalidade nos esportes de combate para efeitos de certificação, já que o texto do projeto prevê que “havendo mais de uma confederação da mesma modalidade, somente poderá certificar e reconhecer certificações emitidas por federações aquelas que estejam filiadas às confederações pan-americanas e/ou Mundiais da referida modalidade e estejam constituídas ao tempo da vigência da presente lei”.

O que precisa ser esclarecido é quem seria as entidades internacionais filiadas às entidades nacionais capazes de garantir esse registro. Ademais, a lei, mantida como está, em caso de aprovação, tornaria inválidas as certificações de professores de pequenas associações sem vínculos com federações ou confederações nos moldes que a lei exige, impedindo o exercício da profissão por parte dos professores de artes marciais que estejam vinculados somente a elas.

Essas questões ainda precisam ser discutidas.


[1] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Constituição (2022). PLS nº 3.649, de 06 de julho de 2022. Dispõe sobre o exercício da profissão de professor de artes marciais ou de esportes de combate. Projeto de Lei. Brasília, DF, Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1949863. Acesso em 10 abril. 2024.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/72115.

[3] BRASIL. Lei nº 9.696, de 1 de setembro de 1998. Dispõe sobre a regulamentação da Profissão de Educação Física e cria os respectivos Conselho Federal e Conselhos Regionais de Educação Física. Diário Oficial da União: seção1, 2/9/1998, Página 1.

[4] STJ. REsp: 1012692 RS 2007/0294222-7, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 26/04/2011, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/05/2011.

[5] Ibid.

[6] Ibid.

[7] “[…] ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA CONSELHO REGIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA DE SÃO PAULO-CREF/ SP. EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE INSTRUTOR DE CAPOEIRA. EXIGÊNCIA DE FREQUÊNCIA A CURSO DE NIVELAMENTO. RESOLUÇÃO CONCEF n. 45/ 2002. ILEGALIDADE. […] A Lei n. 9.696/ 98 não alcança os instrutores de capoeira, cuja orientação tem por base a transferência de conhecimento tático e técnico da referida luta e cuja atividade não possui relação com a preparação física do atleta profissional ou amador, como tampouco exige que estes sejam inscritos no Conselho Regional de Educação Física. Dessa forma, qualquer ato infralegal no sentido de exigir a frequência a curso de nivelamento como condição para obter registro no indigitado Conselho Profissional para poder exercer sua atividade profissional padece de ilegalidade. […]. (STF-ARE: 949536 SP-SÃO PAULO 0002157-07.2003.4.03.6115, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 25/ 02/ 2016, Data de Publicação: DJe-041 04/ 03/ 2016)”.

[8] RUFINO, Luiz Gustavo Bonatto; DARIDO, Suraya Cristina. O ensino das lutas nas aulas de Educação Física: análise da prática pedagógica à luz de especialistas. Revista da Educação Física (UEM), Maringá, v. 26, n. 4, 4. trim. 2015.

[9] STJ. REsp: 1012692 RS 2007/0294222-7, Op. cit.

Autores

  • é advogado trabalhista e desportivo e diretor jurídico do Conselho Nacional de Boxe (CNB), da Confederação Brasileira de Kickboxing (CBKB), da World Association of Kickboxing Organizations Región Panamericana (Wako Panam) e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo (CBMMad) .

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