Opinião

UFC e lutadores entram em acordo para encerrar processo nos EUA

Autor

  • Elthon Costa

    é advogado trabalhista e desportivo membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do TST no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) mestrando em International Sports Law (Isde) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da Wako Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral (NTADT) da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF e membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF.

29 de março de 2024, 19h22

No último dia 20 de março, foi anunciado que os autores da ação [1] (os lutadores) em ambos os casos antitruste do UFC [2] chegaram a um acordo com o réu (UFC/Zuffa) no valor de US$ 335 milhões — que acabará sendo dedutível dos impostos da organização [3].

Nenhum outro detalhe foi divulgado além de uma suspensão de 50 dias do caso (para aprovar o acordo) e uma ordem para que ambas as partes apresentem um relatório de status até 1º de maio de 2024.

O acordo ainda não foi finalizado, e ainda há muitos detalhes a serem apresentados. O fato de as partes terem concordado com o acordo não significa que elas podem simplesmente encerrar o processo, pois essa é uma ação coletiva certificada e o próprio tribunal deve aprovar o acordo.

No processo civil federal americano, desde que atendidas algumas condições específicas previstas na Regra n° 23 (Rule 23) das Federal Rules of Civil Procedure (como um grupo numeroso, a existência de uma questão comum, o fato de as demandas serem características e típicas da classe, e a representação adequada), há possibilidade de propositura de ações coletivas (class actions), em que alguns indivíduos podem propor ação na qualidade de representantes de um grupo ou categoria numerosa (de dezenas, centenas, milhares ou até milhões de trabalhadores) [4].

Esse modelo de ação norte-americano inspirou a ação civil pública brasileira e as linhas iniciais do processo coletivo. Baseia-se no conceito de que, nas ações de classe, o comparecimento de todas as partes em juízo causaria tumulto e atraso no processo.

Deu-se ao tribunal, analisando o caso, a discricionaridade para dispensar o comparecimento de todas as partes e de verificar se as partes presentes tinham condições de representar adequadamente todos os interesses dos ausentes [5].

A jurisprudência originária adotava a cláusula opt in, estribada na teoria do consentimento, no sentido de que a representação adequada, para efeitos da extensão subjetiva da coisa julgada, somente seria possível se consentida expressamente [6].

Rule 23

Com a rule 23 instalou-se a regra do opt out, cujo consentimento é presumido pela falta de manifestação em sentido contrário do interessado ausente que, notificado, não optou pela sua exclusão do processo [7].

Divulgação

Pelo sistema vigente, “um ou mais membros da classe podem demandar ou ser demandados” como legitimados no interesse de todos. Assim, um indivíduo também pode demandar um grupo, tendo seus representantes legitimidade passiva para defender os interesses coletivos (defendant class action) [8].

São quatro os pressupostos da ação coletiva, em que o grupo figure ativa ou passivamente: a categoria ser tão numerosa que a reunião de todos os membros se torne impraticável; 2) haver questões de direito e de fato comuns ao grupo; 3) os pedidos ou defesas dos legitimados serem idênticos aos pedidos e defesas da própria classe e, 4) os litigantes atuarem e protegerem adequadamente os interesses da classe [9].

As partes agora se apresentarão ao tribunal e dirão que gostariam de fazer um acordo com base nesses termos, e o tribunal deverá então realizar uma audiência preliminar para decidir se está inclinado a aprová-lo. E em caso afirmativo, todos os membros da classe deverão ser notificados sobre essa proposta de acordo.

Em seguida, será marcada uma audiência final, e qualquer um desses membros da classe (os lutadores) tem a chance de se opor ao acordo proposto. Se não gostarem ou acharem que é injusto, eles informam ao tribunal e este deve decidir se o acordo é adequado e representa os interesses de todos. Quando concordam que é adequado, o acordo é finalizado.

Importante ressaltar que, embora ir a julgamento pareça agora mais vantajoso diante do valor final (os atletas estavam pedindo mais de US$ 1 bilhão em perdas), os advogados estavam cientes dos possíveis perigos de ir a julgamento. Mesmo que as provas pareçam favorecer os atletas, o júri poderia chegar a um veredicto totalmente diferente.

Provável modus operandi do pagamento

Em ações coletivas nos EUA, quando há acordo ou condenação em dinheiro, é formulado um plano de distribuição dos recursos que será aprovado pelo juiz. Muitos integrantes do grupo podem não aparecer para receber seus créditos. Neste caso, surgem algumas alternativas.

Uma delas é o denominado fluid recovery, que consiste no pagamento correspondente aos membros que compareceram. E o restante é distribuído para o grupo como um todo ou a uma entidade que favorecerá o grupo no futuro por proporcionar remédio aproximado ao da violação no passado [10].

A segunda possibilidade é denominada cy pres, que é utilizada quando a reparação do dano é inviável ou impossível. Isso pode ocorrer quando o total a ser distribuído entre os membros do grupo se torna insignificante, considerando o alto número de pessoas, o que faria jus cada um depois de descontado o custo para o recebimento do dinheiro poderia reduzir ainda mais o valor ou mesmo superá-lo.

Assim, o juiz pode aprovar a destinação a uma entidade que, por exemplo, promova o acesso à justiça de pessoas vulneráveis[11].

Provavelmente o pagamento será rateado com base nos ganhos dos lutadores, porque nem todos têm o mesmo valor de mercado. Por exemplo, Conor McGregor tem um valor de mercado maior do que alguém que chegou e foi cortado depois de duas lutas.

Diante desses fatos, o dinheiro deverá distribuído com base em uma porcentagem de quanto os lutadores ganharam. E nem todos receberão a mesma quantia. Isso será revelado assim que as partes apresentarem seu pedido ao tribunal para a aprovação do acordo.

Consequências da homologação do acordo pelo Juízo

 A principal questão no julgamento teria sido se as práticas comerciais da Zuffa eram pró-competitivas ou anticompetitivas. A Zuffa argumentou no processo que o uso de contratos e a exclusão da concorrência faziam parte da construção de seus negócios e da superação de concorrentes que não eram tão bem-sucedidos.

Os demandantes argumentaram especificamente que os contratos do UFC eram restritivos e impediam que os lutadores pudessem ganhar dinheiro [12]. Devido à profundidade de seu plantel, ele sufocava outros concorrentes, já que as promoções não tinham estrelas e (indiscutivelmente) os melhores talentos do MMA porque eles estavam no UFC.

Os e-mails, textos e outras evidências, incluindo o possível testemunho do ex-combatente Joe Silva e de Dana White, teriam sido fundamentais [13]. Esse é um dos motivos pelos quais a Zuffa provavelmente quis fazer um acordo para evitar que Silva ou White testemunhassem no banco dos réus.

Supondo que a corte aprove o acordo e que ela não inclua nenhuma mudança substancial na estrutura dos contratos do UFC, a questão será se algo mudou para os lutadores.

Provavelmente a resposta é não. A liberdade e a remuneração dos lutadores continuam sendo um grande problema que teria sido abordado nesse julgamento. No entanto, dez anos depois, os lutadores se encontram na mesma situação em que estavam quando essa ação foi movida.

O dinheiro melhorou com o tempo. Há mais organizações. Mas as restrições contratuais permanecem. Além disso, conforme apontado pela Zuffa em um de seus processos, outras organizações adotaram os mesmos contratos [14].

Assim, mais lutadores estão presos, não apenas ao UFC, mas a outras organizações de luta. A remuneração dos lutadores, que tem sido o centro de grande parte da controvérsia, continua sendo um problema. De fato, pode-se argumentar que, com mais comissões estaduais americanas deixando de divulgar o pagamento dos lutadores, a visão pública da falta de pagamento se torna menos conhecida.

O UFC evita a comparação com outras ligas. Na preparação para o julgamento, o UFC estava sendo comparado às principais ligas esportivas com poder de negociação coletiva.

Assim, enquanto os jogadores da NBA, NFL e NHL compartilham a receita com os proprietários em uma proporção mais próxima de 52-48 a favor dos donos, a remuneração média de um lutador do UFC é inferior a 80% da receita gerada [15].

Não é uma boa imagem para o UFC se você não souber nada sobre a empresa ou suas práticas comerciais. Com o acordo, as comparações provavelmente desaparecerão da mídia.

Se não houver nenhuma medida cautelar decretada pelo Juízo, o UFC estará basicamente isento de todas as suas práticas comerciais a partir de 2010 e, depois, no futuro, todos os seus lutadores assinarão acordos, dizendo que não participarão de ações judiciais coletivas.

Se esse for o caso, eles estão conseguindo um ótimo negócio para si mesmos, sendo que as ações da TKO dispararam no momento em que a notícia do acordo se tornou pública [16].

O UFC nunca poderá se isolar totalmente do escrutínio antitruste. Mesmo que resolvam as reivindicações dos lutadores, eles ainda estarão vulneráveis a um processo antitruste de promotores concorrentes.

Se eles resolverem a ação judicial dos lutadores e se derem alguma imunidade nessa frente a partir de 2010, terão feito um grande favor a si mesmos.

 


[1] COSTA, Elthon José Gusmão da. A AÇÃO CIVIL DE CLASSE CONTRA O UFC E SEUS NOVOS ANDAMENTOS. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, 1 dez. 2023. Disponível em: https://ibdd.com.br/a-acao-civil-de-classe-contra-o-ufc-e-seus-novos-andamentos/?v=19d3326f3137. Acesso em: 23 mar. 2024.

[2] Cung Le, et al. v. Zuffa, LLC d/b/a Ultimate Fighting Championship and UFCNo. 2:15-cv-01045-RFB-BNW (D. Nev.). e Kajan Johnson, et al. v. Zuffa, LLC, et al., No. 2:21-cv-01189 (D. Nev.).

[3] https://x.com/heynottheface/status/1770477876774670736?s=20.

[4] FERNANDES, João Leal Renda. O Mito EUA: Um País sem Direitos Trabalhistas. 2ª. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 324.

[5] COOPER, Flávio Allegretti de Campos. Tutela jurisdicional coletiva. São Paulo: LTr, 2010, p. 41.

[6] COSTA, Elthon José Gusmão da. O opt-out na ação de classe contra o UFC. Consultor Jurídico, 17 dez. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-17/o-opt-out-na-acao-de-classe-contra-o-ufc/. Acesso em: 23 mar. 2024.

[7] Ibid.

[8] COOPER, op. cit., p. 41.

[9] Ibid.

[10] PEREIRA, Ricardo José Macedo de Britto. Ação civil pública no processo do trabalho. São Paulo: Mizuno, 2022, p. 318.

[11] Ibid.

[12] COSTA, Elthon José Gusmão da. Cláusula arbitral e renúncia a direitos trabalhistas nos contratos do UFC. Consultor Jurídico, 31 out. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-31/elthon-costa-clausula-arbitral-renuncia-contratos-ufc/. Acesso em: 22 mar. 2024.

[13] COSTA, Elthon José Gusmão da. A competência da Justiça do Trabalho para julgar questões de dano moral entre atleta da luta e eventos. Migalhas, 23 fev. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalha-trabalhista/402306/jt-para-julgar-questoes-de-dano-moral-entre-atleta-da-luta-e-eventos. Acesso em: 23 mar. 2024.

[14] COSTA, Elthon José Gusmão da. Escravidão? O polêmico contrato do One Championship. In: GIORDANI, Francisco Alberto da Motta Peixoto et al, (org.). Temas intrigantes do direito desportivo Volume II. Campinas, SP: Lacier, 2024. p. 83-89.

[15] https://gitnux.org/average-ufc-fighter-pay/.

[16] https://markets.businessinsider.com/news/stocks/tko-group-holdings-a-strong-buy-following-favorable-lawsuit-settlements-1033182498.

Autores

  • é advogado trabalhista e desportivo e diretor jurídico do Conselho Nacional de Boxe (CNB), da Confederação Brasileira de Kickboxing (CBKB), da World Association of Kickboxing Organizations Región Panamericana (Wako Panam) e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo (CBMMad) .

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