Opinião

Cláusula arbitral e renúncia a direitos trabalhistas nos contratos do UFC

Autor

  • Elthon Costa

    é advogado trabalhista e desportivo membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do TST no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) mestrando em International Sports Law (Isde) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da Wako Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral (NTADT) da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF e membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF.

31 de outubro de 2023, 6h34

O processo de ex-atletas do UFC (Ultimate Fighting Championshipcontra a promoção [1] gerou impacto ao longo dos anos nos contratos entre os atletas do plantel e o evento, supostamente em resposta ao processo antitruste [2].

Ao que parece, o UFC introduziu essas mudanças em seus contratos em algum momento de 2017, uma data que agora divide os dois processos atuais que estão sendo enfrentados. O período da primeira ação [3] abrange de 16 de dezembro de 2010 a 30 de junho de 2017, enquanto uma segunda ação movida em 2021 [4] abrange todos os lutadores que tiveram uma luta no UFC a partir de 1º de julho de 2017 em diante.

Antes disso, de 2011 a 2016, os contratos padrão do UFC permaneceram notavelmente semelhantes ao que foi divulgado no processo de Eddie Alvarez com o Bellator [5], promoção rival do Ultimate Fighting Championship.

Recentemente, o site esportivo norte-americano Bloody Elbow trouxe à tona algumas cláusulas [6] controversas de contratos do UFC com os atletas, que aparentemente vêm se tornando padrão.

Agora, de acordo com a reportagem, se os lutadores tiverem alguma discordância com o UFC sobre qualquer coisa em seus contratos, em vez de levá-los ao tribunal, eles agora são obrigados a resolver por intermédio de arbitragem, senão, vejamos:

"Quando as partes aqui presentes buscarem a resolução de quaisquer questões relacionadas ou decorrentes deste Contrato, do Contrato de Combate e de qualquer interação ou relacionamento entre a Zuffa e o Lutador, ambas consentirão expressamente com a arbitragem, em vez de procedimentos judiciais, para resolver as Reivindicações Cobertas (conforme definido abaixo).
A arbitragem é o processo pelo qual um terceiro neutro toma uma decisão vinculativa relacionada a uma disputa. A Lei Federal de Arbitragem (9 U.S.C. Seções 1 e seguintes) regerá este contrato de arbitragem, bem como a lei de arbitragem estadual aplicável somente na medida em que não seja substituída pela Lei Federal de Arbitragem. Este acordo de arbitragem é em consideração ao contrato do Lutador com a Zuffa. Tanto a Zuffa quanto o Lutador entendem que, ao usar a arbitragem para resolver disputas, eles estão abrindo mão de qualquer direito que possam ter a um juiz ou julgamento por júri com relação a todas as reivindicações sujeitas a este acordo de arbitragem."

A menos que uma das partes solicite três árbitros, a arbitragem deverá ser feita perante um único árbitro neutro e administrada pelo Judicial Arbitration and Mediation Service (Jams) em Clark County, Nevada. Exceto conforme disposto neste contrato, as regras e procedimentos abrangentes de arbitragem da Jams em vigor a partir do início da arbitragem ("Regras da Jams") regerão os procedimentos de arbitragem. (tradução nossa)

Além da arbitragem, a seção XXV do contrato em tela inclui uma renúncia de ação coletiva:

"Renúncia de ações coletivas, de classe e representativas. Até o limite máximo permitido pela lei aplicável, as partes concordam que nenhuma reivindicação poderá ser iniciada ou mantida com base em uma ação coletiva, ação de classe ou ação representativa, seja em tribunal ou arbitragem. Isso significa que nenhuma das partes poderá servir ou participar como representante ou membro de ação coletiva, de classe ou representativa em qualquer processo relativo a Reivindicações Cobertas, seja em tribunal ou em arbitragem."
"Reivindicações não cobertas. As reivindicações que não são cobertas por este acordo de arbitragem são, na medida do aplicável: reivindicações que não estão sujeitas à arbitragem pré-disputa obrigatória e vinculativa de acordo com a lei federal ou estadual aplicável, incluindo reivindicações trazidas de acordo com a Lei dos Procuradores Gerais Privados da Califórnia e reivindicações atualmente pendentes no processo intitulado Le v. Zuffa, LLC, Processo nº 15-cv-01045 no Distrito de Nevada."

Destarte, um lutador que assinar esse contrato não poderá ser membro de qualquer ação coletiva, mesmo que o lutador atenda a todos os critérios para ser classificado como membro.

Se os danos forem concedidos por um júri ou acordo (os autores estão pedindo centenas de milhões de dólares em danos, potencialmente bilhões se forem triplicados), os lutadores que assinaram este acordo não terão direito a eles.

Analisando o processo de ex-atletas do UFC contra a promoção à luz da legislação trabalhista brasileira, mais parece estarmos diante da subordinação integrativa em relação à configuração de vínculo empregatício entre atleta e UFC, devido ao foco nas atividades do atleta perante a empresa, estando ambos de acordo com as atividades-fim, e estas somadas às circunstâncias do atleta não ter salário próprio da organização da empresa (porque só recebe bolsas quando luta), não assumindo verdadeiramente riscos de perdas e ganhos, não sendo proprietário dos frutos do seu trabalho, que pertencem originalmente à organização produtiva para a qual presta a sua atividade, tratar-se-ia então de um contrato de trabalho [7].

Ademais, embora o atleta de MMA não seja reconhecido como empregado para efeitos da legislação trabalhista norte americana [8] (sendo tratado como contratado independente), tal cláusula arbitral, caso seja mantida (muito embora haja previsão na decisão recente no primeiro processo de atletas contra o UFC, no sentido de que os contratos podem ter as cláusulas revistas), teria impacto mesmo em futuros contratos trabalhistas, se os atletas assim forem considerados.

Isso ocorreria muito pelo fato de que, no caso Epic Systems Corp. v. Lewis U.S., 138 S.Ct. 1612 (2018), ao entender válidas cláusulas em contratos individuais com previsão de resolução de disputas ocorrendo somente por meio de arbitragem individual, por cinco votos contra quatro, a Suprema Corte decidiu que o direito de participar em procedimentos coletivos não constituiria uma forma de "outra ajuda ou proteção mútua" (other mutual aid or protection) objeto de especial proteção na Seção 7 do NLRA  entendimento que importa no reconhecimento da possibilidade de renúncia prévia ao direito de participação em ações judiciais coletivas ou em arbitragens coletivas (por tal motivo, essas cláusulas são frequentemente referidas como class waiver arbitration agreements ou simplesmente class waivers[9].

A decisão desse caso Epic Systems passou a ser considerada um verdadeiro obstáculo para o acesso à justiça e a efetivação de direitos trabalhistas, já que grandes empresas nos EUA já vinham usando reiteradamente tais cláusulas em seus contratos de trabalho. 

Isso torna improvável que essas novas adições aos contratos do UFC possam ser contestadas sem uma nova legislação.

É digna de destaque, ainda, a cláusula de renúncia de direitos trabalhistas nos contratos do UFC, disponível para consulta pública no Procedimento Comum Cível nº 5023009-13.2021.8.24.0005, o qual traz um modelo de contrato de atleta que atuou no Dana White Contender Series (DWTNCS), a famosa "peneira" do CEO do UFC, Dana White, na qual ele seleciona atletas para assinarem contratos com o UFC caso consigam surpreender o empresário com boas performances. O contrato prevê que, ao ser selecionado, o atleta estende seu vínculo para o UFC ao passar pela "peneira".

Quanto à cláusula de renúncia, esta obriga o atleta a reconhecer o status de contratado independente (autônomo), sem que este possa no futuro pleitear qualquer direito como empregado, se não, veja-se:

"SEÇÃO XIX
STATUS DE CONTRATADO INDEPENDENTE
19. DWTNCS e Lutador reconhecem que o sucesso do UFC depende de uma rede de indivíduos altamente talentosos, como o Lutador, criando uma série de lutas memoráveis, competitivas e marcantes entre lutadores. O Lutador concorda que este modelo é necessário para maximizar a receita dos lutadores sob contratos de combate, incluindo os do próprio Lutador. O Lutador reconhece que todas as regras aqui referidas são reconhecidas como necessárias e práticas para aumentar as receitas do DWTNCS e do Lutador relacionadas aos Combates e a este Contrato. O Lutador reconhece ainda que as disposições deste Acordo foram concebidas para maximizar as receitas dos contratantes-contratados ao longo do tempo. Portanto, o Lutador reconhece e concorda que o Lutador é um contratado independente e não um empregado.
(…)
19.3 Nada contido neste Contrato será interpretado para tornar o Lutador um empregado da DWTNCS ou para nomear a DWTNCS como agente do Lutador, e a DWTNCS não terá nenhum interesse financeiro (além dos direitos de compensação) na compensação devida ao Lutador por se envolver em qualquer Luta nos termos deste documento. Pretende-se que o Lutador continue sendo um contratado independente, responsável por suas próprias ações, despesas e quaisquer impostos locais, estaduais, federais ou internacionais, incluindo, mas não se limitando a, contratação, dispensa, benefícios e custos de todos os afiliados do Lutador e instalações de treinamento, equipamentos, associações profissionais, taxas de sanção, despesas médicas, seguros (exceto conforme exigido por uma Comissão Atlética aplicável), impostos de seguridade social, impostos da Lei Federal de Contribuições de Seguros (FICA) e impostos da Lei de Desemprego (FUTA).
19.4 O Lutador não será elegível, sob este Contrato, para participar de quaisquer férias, cuidados médicos em grupo, compensação trabalhista ou seguro de vida, invalidez, participação nos lucros ou benefícios de aposentadoria ou quaisquer outros benefícios adicionais ou planos de benefícios oferecidos pela DWTNCS aos seus funcionários e a DWTNCS não será responsável por reter ou pagar qualquer renda, folha de pagamento, Previdência Social ou outros fundos federais, estaduais ou impostos locais, fazer quaisquer contribuições de seguro (exceto conforme exigido por uma Comissão Atlética aplicável ou de outra forma aqui previsto), incluindo desemprego ou invalidez, ou obter seguro de acidentes de trabalho em nome do Lutador. O Lutador será responsável e indenizará a DWTNCS por todos esses impostos ou contribuições, incluindo multas e juros. Quaisquer pessoas empregadas pelo Lutador em conexão com a execução dos serviços prestados pela Lutador nos termos deste documento serão funcionários do Lutador e o Lutador será totalmente responsável por tais pessoas."

No Brasil, em relação à cláusula arbitral, a discussão acerca da indisponibilidade e irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas é o argumento mais aceito e debatido pela doutrina especializada, sobretudo porque o artigo 1º da Lei nº 9.307/96 (Lei da Arbitragem) sinaliza que a arbitragem apenas pode ser utilizada para resolver litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

 No passado, o colendo TST já se posicionara contrariamente quanto à inaplicabilidade da arbitragem em contrato individual de trabalho [10], isso antes do advento da Lei 13.467/2017 que incluiu o artigo 507-A na CLT, fixando então a possibilidade legal de celebração de cláusula compromissória de arbitragem no contrato individual de trabalho. Porém, o artigo 90-C da Lei n° 9.615/98, trouxe prescrição específica sobre a possibilidade das partes recorrerem à arbitragem para solucionar os conflitos decorrentes do vínculo entre elas estabelecido pelo contrato especial de trabalho desportivo, só podendo a arbitragem ser prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho e só sendo possível a sua instituição após a concordância expressa de ambas as partes, mediante cláusula compromissória ou compromisso arbitral.

Dessarte, caso algum atleta que tenha contrato com o UFC pleitear, no Brasil (considerando que este aqui tenha lutado alguma vez [11]), o reconhecimento de vínculo empregatício por fatores atinentes à sua relação com o evento [12], a cláusula arbitral poderá ser anulada, valendo citar entendimento recente do TST [13] em caso que tratava de contrato de atleta profissional, no qual a corte declarou a invalidade de cláusula compromissória de arbitragem diante da inexistência de previsão de arbitragem em acordo ou convenção de trabalho [14].

Diante do exposto, pergunta-se: como exatamente o UFC, uma empresa que está sendo processada por abusar de seu poder de mercado ao forçar termos contratuais unilaterais, pode agora forçar termos contratuais que impedem seus atletas de resolverem seus litígios junto à justiça comum?

Ao que parece, a companhia está se antecipando à uma possível reclassificação dos seus atletas: a de empregado.

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Referências
PINHEIRO, Paulo Henrique Silva. Jurisdição desportiva trabalhista: a efetividade na resolução de conflitos. 1ª. ed. Brasília: Venturoli, 2023.

 


[1] COSTA, Elthon José Gusmão da. Atletas x UFC: Os novos desdobramentos do processo contra o Ultimate e o possível fim do monopólio no MMA. Lei em Campo, 14 ago. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/atletas-x-ufc-os-novos-desdobramentos-do-processo-contra-o-ultimate-e-o-possivel-fim-do-monopolio-no-mma. Acesso em: 20 out. 2023.

[2] COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023. p. 109-112.

[3] Cung Le, et al. v. Zuffa, LLC d/b/a Ultimate Fighting Championship and UFC, No. 2:15-cv-01045-RFB-BNW (D. Nev.).

[4] Kajan Johnson, et al. v. Zuffa, LLC, et al., No. 2:21-cv-01189 (D. Nev.).

[5] SNOWDEN, Jonathan. The Business of Fighting: A Look Inside the UFC‘s Top-Secret Fighter Contract. In: Bleacher Report, 14 maio 2013. Disponível em: https://bleacherreport.com/articles/1516575-the-business-of-fighting-a-look-inside-the-ufcs-top-secret-fighter-contract. Acesso em: 6 set. 2023.

[6] TABUENA, Anton. Major changes to UFC contracts add more restrictions, waiver to prevent class action lawsuits. Bloody Elbow, 10 fev. 2023. Disponível em: https://bloodyelbow.com/2023/02/10/major-changes-to-ufc-contracts-add-more-restrictions-waiver-to-prevent-class-action-lawsuits. Acesso em: 20 out. 2023.

[7] PORTO, Lorena Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho. In: TEIXEIRA, Marcelo Tolomei; GUSMÃO, Xerxes. A prova da relação de emprego à luz da teoria crítica. Campinas, SP: Lacier, 2023. p. 43.

[8] COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023. p. 112.

[9] FERNANDES, João Leal Renda. O Mito EUA: Um País sem Direitos Trabalhistas. 2ª. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 201.

[10] E-ED-RR-25900-67.2008.5.03.0075, relator ministro: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 16/04/2015, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 22/05/2015

[11] O artigo 651 da CLT determina que em regra, a competência para ajuizamento da ação é o do local da prestação de serviços. Não obstante a reclamação trabalhista dever ser proposta no local da prestação de serviços, o atleta da luta pode ter participado de vários eventos ao redor do Brasil. Nesse caso, a ação poderá ser promovida na localidade do Brasil em que o UFC tem filial.

[12] COSTA, Elthon José Gusmão da. A exclusividade nos contratos de lutadores profissionais de MMA: há prestação de trabalho intermitente?. Lei em Campo, Site, 10 abr. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-exclusividade-nos-contratos-de-lutadores-profissionais-de-mma-ha-prestacao-de-trabalho-intermitente. Acesso em: 6 out. 2023.

[13] Ag-AIRR-11013-87.2019.5.15.0001, 1ª Turma, relator ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 28/11/2022.

[14] Cumpre ressaltar que os atletas de esportes de combate profissional no Brasil não tem sindicato, muito embora possam se reunir para tanto.

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